CRÔNICAS

Índios fotografam fotos: o corpo selvagem

Em: 06 de Dezembro de 2015 Visualizações: 31135
Índios fotografam fotos: o corpo selvagem

Quando um escroque, um delinquente chantagista que devia estar preso, ainda tem poder para definir os rumos do Brasil, prefiro me refugiar na toca do tatu, onde se respira ar limpo. É para lá que vou buscar 380 fotos de Eduardo Viveiros de Castro da exposição "Variações do Corpo Selvagem", com curadoria de Veronica Stigger e Eduardo Sterzi,  cujo encerramento se dará no dia 17 de dezembro no SESC Ipiranga (SP). Lá, Lívia Raponi, adida cultural do Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, encontrou índios com quem dialogou. Escreveu texto até agora inédito que publico neste Diário do Amazonas, com fotos de sua autoria. Aí vai. Publicada originalmente com o título "Cunha e a toca do tatu", que entrou aqui como Pilatos no Credo.

 

CONVERSA COM ÍNDIOS QUE FOTOGRAFAM FOTOS

Lívia Raponi

No pavilhão externo, passa o filme de Murilo Santos. Sento para assistir. Uma família se apodera do espaço inteiro da sala, faz barulho, tira selfies... não consigo ouvir a voz do narrador: “Quer uma foto artística?” - pergunta o marido à mulher. Quando se retiram, a fala pode finalmente voltar a juntar-se às imagens.

Pouco depois - continuo sentada - chega um pequeno grupo, reverentemente  silencioso: um casal de cerca de 60 anos, um homem nos seus 40, uma menina de 6 ou 7 anos, com traços parecidos aos dos protagonistas das fotografias, que muito respeitosamente sentam a meu lado nos banquinhos coloridos: Olho para eles, nos cumprimentamos. Assistem o filme, atentos e sem comentar.

Aquela presença concentrada à minha volta aumenta a intensidade da vivência, parece dar mais sentido à minha própria presença naquele lugar. É um estar ali juntos, diferente do que era antes, uma possibilidade compartilhada de enxergar os instantes?

Araweté

Na tela movimentada pelas cenas, novamente, os Araweté voltam de um dia de caça: naquele ponto, sinto um impulso súbito de me levantar e tirar uma foto dos quatro espectadores tão imersos na visão do filme. Me pergunto com quais palavras poderia pedir permissão para fazê-lo.

Porém, logo depois de pensá-lo, me censuro, me parecendo um gesto que pode romper o encanto, incomodá-los, ser mal recebido. Reflito também sobre meu olhar, o quanto haveria nele de contemplação estetizante e fascinada de "branca-mediterrânea" diante de um “exótico” ameríndio, ainda mais dissonante num lugar em que se produz o convite para um diálogo entre e através das múltiplas posições e pontos de mirada.

Continuo na sala, habitada e reconstruída pelas reproduções de mundos em que não há fronteiras fixas nem barreiras entre humano e não humano, com o smartphone na mão, não podendo deixar de tirar - às escondidas e me sentindo culpada - uma foto do grupo visto por trás e algumas outras dos trechos escolhidos para os textos de parede.

Depois de frugal refeição na cafeteria, dirijo-me à seção expositiva próxima da área de convivência, procurando a imagem numero 01, acompanhada pelas indispensáveis legendas. Ela está exatamente ao extremo oposto do que eu pensava.

É justamente ali que se aproxima de mim, com espontânea simplicidade, o senhor de mais idade do grupo de índios, me pede ajuda para tirar a fotografia de uma fotografia com o novo celular que, com pouco jeito, extrai do bolso. Me indica a imagem em que um homem está de cabeça para baixo, introduzindo-se num buraco no chão. Olha fixamente para aquela impressão, e o resto do grupo o acompanha...

Desentocando tatus

Me percebo sorrindo, pela alegria de poder, com o pouco que sei sobre o assunto, orientá-lo sobre os recursos de seu novo telefone. Digo-lhe que aquele celular, é parecido com o do meu pai.

Insiste para que eu tire a foto no lugar dele.

Pergunto o que está acontecendo na cena retratada, ele a resume sinteticamente. Depois, quer saber onde a fotografia foi parar, digo que está guardada na “galeria” e mostro o ícone; pergunta se há como cancelá-la e como voltar a poder fotografar, explico o percurso.

Convido-o a tentar fotografar sozinho, vamos para outras imagens que o interessam, as que contam sobre a escarificação de jovens mulheres. Ainda não está seguro, quer que seja eu a desempenhar a tarefa. Agora me pergunta se, depois de eliminar uma foto, ele pode recuperá-la.

Digo que não é possível, que precisa ter muita certeza que se queira cancelar, e que na dúvida, é melhor deixar a decisão para depois. Lembro que a exposição em breve acabará, e não será tão fácil ter acesso àquelas obras. Mas acrescento que, se guardar as imagens armazenadas no telefone, elas ali ficarão para sempre, quase como acontece num arquivo.

Parece positivamente surpreendido com esta possibilidade. Agora quer tentar fazer sozinho, me pergunta onde tem que apertar. Aperta. O processo de ir até a galeria de imagens e conferir o resultado já lhe parece familiar, sinto que não o esquecerá.

Já que conversamos bastante, com o homem mais novo sempre por perto, escutando silencioso, crio coragem para fazer perguntas pessoais, animada pela vontade de saber mais: de onde vocês vêm, são pai e filho, onde ficam em São Paulo, até quando? E, com medo de errar, “quais os nomes de vocês”? A hesitação faz sentido, são nomes difíceis para mim, e, logo depois de pronunciá-los, os perco. Mas gravo os lugares, regiões e aldeias de onde eles provêm.

Não se trata de uma única família. Não são pai e filho: o mais velho é da aldeia Tuba Tuba, do povo Yudjá (Juruna), no Xingu (MT). O jovem é do Solimões, de Tefé (AM). Ao ouvir estas duas silabas, que espanto! Tefé é a cidadezinha onde estive recentemente em busca de restos e rastros do doutor conde...Conto um pouco sobre Stradelli e sobre padre Antônio, o espiritano holandês, meu companheiro de pesquisa nas manhãs e tardes passadas no arquivo da Prelazia de Tefé.

Stradelli: mil estradas

Eis que surge, naquele momento, uma gigantesca borboleta preta, entra na roda, nos circum-navegando com insistência. Pousa na criança, vai embora, descansa na parede, retorna, pousa na minha perna direita, o homem do Xingu a afasta, volta para a mesma posição na parede, perto de onde a conversa começou, regressa mais vezes... Nunca vi uma borboleta assim em São Paulo. Na verdade, nunca vi borboleta tão grande na minha vida!

Penso nele: Ermanno Stradelli. Materializando-se talvez nesta roupagem, indo quem sabe ao nosso encontro, irônico e leve como ele foi e é.

Pergunto se gostam de São Paulo, me dizem que estão hospedados ali perto, na Casa do Apoio à Saúde Indígena: o casal do Xingu veio para o tratamento da esposa, fica até final de dezembro. O jovem pai amazonense acompanha cirurgia da filha: deu tudo certo, mas aguarda o exame final que irá dizer se podem voltar para casa.

Conto que encontrei certa noite, no Rio, o autor das imagens que acabamos de ver e que ele talvez ficaria contente em saber daquilo que está acontecendo, naquele momento, no espaço colorido da exposição.

O senhor de Tuba Tuba me pergunta se conheço Tania Stolze, lembra que foi ela, que também vive no Rio, quem o conduziu à exposição pela primeira vez.

Por fim, sinto que posso, sim, agora posso dizer: “gostaria de tirar uma foto com todos vocês aqui, como lembrança deste encontro”. No ato de dizê-lo, um ciclo se fecha de forma harmoniosa, a borboleta nos deixa. Sorriem, posam para mim, todos menos a esposa, que fica a alguma distância, quieta. O velho do Xingu, o homem do Solimões, a menina.

A esposa não está na fotografia (não quis ou não achou apropriado); porém posso vê-la ali, nitidamente, como se estivesse – e, de verdade, está - emoldurada por um retângulo rosa livre de imagens, esperando calma, composta, num vestidinho de domingo de flores de verão.

Ficam em mim, desta tarde de variações inesperadas, as constelações desenhadas pelas trajetórias dos que viajam, pelas borboletas, pelas crianças rindo-sorrindo-livres-brincando na floresta, circunscritas e protegidas, elas e eu, por um olhar aveludado, morno e sábio, de mulher.

P. S. - Nesta segunda (07/12), às 14 hs, na sala 01 do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO, haverá o exame de qualificação de Márcio Meira, ex-presidente da FUNAI, que prepara a tese "Memórias do extrativismo no Rio Negro: cruzando histórias e narrativas indígenas". Da banca fazem parte: Doutor Geraldo Andrello (Ufscar), Doutor Tonico Benites Avá Verá Arandu (Museu Nacional), Doutora Regina Abreu (Unirio) e José R. Bessa Freire - orientador (Unirio).

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16 Comentário(s)

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Chico Bento comentou:
12/12/2015
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Ismenia Vieira comentou:
09/12/2015
Como sempre, meu amigo Bessa, escrevendo como ninguém! Envolvente a leitura dessa crônica. Saudades de você e tempo de muito diálogo quando estivemos trabalhando junto na formação dos professores Guarani. Contato de Ismenia Vieira
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JTN comentou:
09/12/2015
A Lívia tem uma sensibilidade especial e sabe como captar esses momentos.
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Lúcia Sá comentou:
08/12/2015
Que bonito, Bessa! Obrigada!
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Olga Paiva comentou:
06/12/2015
Na delicada abordagem, a revelação de um mundo cuja lógica exige humildade e amor para ser compreendida. Como se eu estivesse com eles vendo a exposição. Como se esse mundo não estivesse tão ameaçado! Lindo texto! Prá guardar.
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André comentou:
06/12/2015
Me parece incrivel mas parece que a censura funciona bem no brasil da presidente dilma. Porque falo assim ? porque me diceron que tem no jornal satirico frances una charge contra os presentes do presidente do brasil. Por curiosidade trate de entrar no site y conseguir a dita imagen. Mas no fue possivel. Falei com amigos do asunto me diceron que no sabia usar a internet e tentaron, mas fui sem suceso; esta imagen é censurada por un governo de izquerda, increivel Gostaria una pagina de Taqui pra ti sobre este tema da censura hoje no brasil para entender melhor o que esta pasando
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Masria Hortênsia Andrade comentou:
06/12/2015
Vc. pode me dizer se essa escritora Livia Raponi tem algum livro publicado no Brasil? Gostaria muito de conhecer outras coisas escritas por ela.
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Isabelle Teixeira (via FB) comentou:
06/12/2015
Parabéns por publicar texto tão intensamente poético, fiquei curiosa em saber sobre os resultados da pesquisa nos arquivos da Prelazia, o que foi encontrado de novo sobre Stradelli
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livia raponi comentou:
13/12/2015
Olá Isabelle, que bom que você - assim como Masria e outras leitoras/es - gostou do texto. Tenho que agradecer ao Bessa pela receptividade e hospitalidade. Vi e ouvi o Ribamar, pela primeira vez, no documentário de Andrea Palladino, "O filho da serpente encantada" - quando ainda não tinha sido montado na forma final - falando sobre memória e esquecimento, de uma forma e com uma intensidade que não pude mais esquecer ( ! ). Tive o prazer de conhece-lo pessoalmente em 2012 no Rio de Janeiro, numa mesa redonda na Uerj sobre o "doutor conde", e de vê-lo novamente aqui em São Paulo no ano seguinte, numa Jornada de Estudos no CBEAL, sempre dedicada a Stradelli, que ajudei a organizar. Tudo pelo encanto do "filho da cobra grande", como também era chamado pelos índios. Ermanno Stradelli é tema do meu doutorado na Usp, existem sim algumas novidades do lado da pesquisa, espero poder divulga-las em breve, assim como minha leitura pessoal da trajetória amazônica deste extraordinário pesquisador ítalo-brasileiro. Quem sabe na forma de livro! Abraços Contato de livia raponi
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Gerusa Pontes de Moura comentou:
06/12/2015
UAU!!!! Professor, de fato o senhor consegue nos alegrar com passagens sempre de grande beleza, estamos passando momentos tão delicados, a desvalorização humana, mas aí, vem um mestre e sutilmente, diz pra gente calma que ainda tem coisa pra fazer nessa Terra.
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Ana Stanislaw comentou:
06/12/2015
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carmen junqueira comentou:
06/12/2015
Palavras delicadas como a enorme borboleta posando aqui e lá.
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Juliana Venturelli (via FB) comentou:
06/12/2015
que crônica linda, é poesia pura!
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Lori Altmann comentou:
05/12/2015
Bela crônica Bessa! E fantástico ter um doutor indígena integrando uma banca de exame de qualificação de tese de um ex-presidente da FUNAI! São novos tempos!Tinha que ser você o orientador!
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Eneida Simoes Fonseca comentou:
05/12/2015
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Roberta Andrade (via FB) comentou:
04/12/2015