CRÔNICAS

Foucault e o bonjour amazônico

Em: 29 de Novembro de 2015 Visualizações: 28132
Foucault e o bonjour amazônico

A canoa vai de proa /e de proa eu chego lá,

Rema, meu remo, rema / Meu remo, rema.

(Fafá de Belém - Indauê Tupã)

Confesso um pecado academicamente mortal: não conheço a obra de Michel Foucault. O único livro dele que li de cabo a rabo foi A História da Loucura escrito ainda no início dos anos 1960. Tomei conhecimento dos demais só através de resenhas, entrevistas, citações em dissertações e teses em cujas bancas me envolvi. Um amigo querido, ex-professor da UFF, que era vidrado no filósofo francês e não dizia um "oi" sem citá-lo, morreu sem perdoar meu pecado. Se ele ainda estivesse vivo, agora sim, me absolveria porque, para me redimir, eu o cumprimentaria assim citando Foucault:

- Bonjour, Armando, como disse Foucault a Edna Castro numa manhã de sol na praia do Maraú em Mosqueiro, antes de encarar uma maniçoba arretada (Foucault, 1976: 12 hs).

É que somente agora, em Belém, tomei conhecimento das peripécias de Foucault nas duas ocasiões em que esteve na Amazônia. Sua passagem pelo Pará está registrada no belo documentário de 20 minutos que foi exibido nesta semana na abertura do 2º Colóquio Internacional Mídia e Discurso na Amazônia (DCIMA II),  organizado por Ivânia Neves e Agenor Sarraf, professores da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Arqueologia do tacacá

Fiquei morrendo de inveja dos paraenses. Imaginem só: Foucault passou também por Manaus na primeira viagem, em maio de 1973, convidado pela Aliança Francesa, mas nós, amazonenses, não fizemos qualquer registro disso, pelo menos que eu conheça. Nem mesmo a velha rixa Amazonas x Pará estimulou a Universidade Federal do Amazonas a buscar as pegadas do filósofo francês na Barelândia. Parece que ele não gostou da capital amazonense, já em processo americanalhado de maiamização.

Com Belém, foi diferente. Foucault gostou do Pará. Tomou tacacá e não se esqueceu mais de lá. Veio ao Pará, parou. Bebeu açaí, voltou. Na segunda viagem em novembro de 1976 e aí - não quero fazer fofoca não -  arbitrou a interminável polêmica amazônica, sentenciando que o Teatro da Paz é mais bonito que o Teatro Amazonas. O documentário dirigido por Ivânia Neves, Maurício Correa e Nassif Jordy não dá trelas a essa fofoca que acabo de inventar, mas fotos na praia de Mosqueiro, exibidas no documentário, reforçam  depoimento de Benedito Nunes em entrevista a Adriana Klautau:

- Estávamos no período do regime militar, quando ele veio proferir algumas conferências no Pará a convite meu. Foucault foi extraordinário. Eu fazia a intermediação e traduzia as perguntas das pessoas. Depois, levamos Foucault à praia do Maraú, perto de Belém. Eu tinha um terreno lá, não tinha nem casa, era só o terreno. Ele amou. Era um brilhante nadador. Um atleta. Disse que era a primeira vez que o levavam a uma praia assim no Brasil. Ele nadou muito lá. Depois, fomos em um bar muito vagabundinho, tomamos banho lá mesmo e almoçamos.

Depoimentos sobre as três conferências e o curso que deu na UFPA mostram que Foucault já era Foucault, professor do Collège de France e celebridade internacional. Já havia escrito A Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir e História da Sexualidade. Militante dos direitos humanos, em Belém ele chutou o pau da barraca, com críticas ferinas às instituições sociais, martelando temas que o tornaram conhecido: clínica psiquiátrica, prisões, reforma penal, sexualidade, conhecimento, poder. E isso em plena ditadura militar, o que enfureceu os gorilas fardados.

Palavras e coisas

Mas suas conferências não foram publicadas, porque o gravador com sua fala foi roubado do carro estacionado em frente ao restaurante onde jantava com amigos paraenses. De qualquer forma, a repressão não se fez esperar:

- Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos "frequentadores" das aulas. Eu disse: Não dou a relação. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor que foi muito correto e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto - contou Benedito Nunes, segundo o filósofo Ernani Chaves, que há dois anos publicou um livro sobre Michel Foucault em Belém.

O documentário certamente pode interessar Heliana Conde, professora da UERJ,  que pesquisa as várias passagens de Foucault no Brasil, onde esteve cinco vezes entre 1965 e 1976. Ele participou de mesa redonda com o psicanalista Hélio Pelegrino e outros convidados. Num curso que ministrou na USP em 1975, compareceu à assembleia estudantil e se manifestou contra a prisão de estudantes, professores e jornalistas ocorridas naquele momento. Anunciou que, em solidariedade, suspenderia seu curso. Dois dias depois, o país soube do assassinato do jornalista Vladimir Herzog,

A abertura do documentário é feita com imagens do filme "Michel Foucault par lui même" e do Bye Bye Brasil com música de Fafá de Belém e uma animação de Otoniel Oliveira na qual o filósofo dá uma piscadela cúmplice para o espectador. Recupera em jornais locais notícias e fotos. Entrevista minha amiga, a socióloga Edna Castro que flanou com ele a tiracolo por Mosqueiro, numa Brasília amarela, acompanhada do advogado José Castro e do filósofo Benedito Nunes. Registra depoimentos do historiador Aldrin Figueiredo e da linguista e antropóloga Ivânia Neves, que entre outros dados, menciona o namorado paraense do filósofo.

Exibido no II DCIMA antes da palestra de Massimo Canevacci, o documentário deu início à programação que incluiu minicursos, oficinas, seminários e lançamentos de livros, com a participação, entre outros, de professores de outras universidades do Brasil que dialogam com os programas de pós-graduação da UFPA: Rosário Gregolin (UNESP-Araraquara), Vera França (UFMG), Helena Weber (UFRGS), Antônio Fernandes Júnior (UFG/UFSCar), Regina Baracuhy (UFPB), Lucrécia Ferrara (PUC- São Paulo) e Claudiana Narzetti (UEA).

Esses e outros pesquisadores que estudam as cidades a partir de diferentes campos do saber concentraram o foco sobre a cobertura da mídia e das próprias redes sociais, indagando em que medida as cidades, seus acontecimentos e seus enunciados são mostrados ou ocultados. O aniversário de 400 anos de Belém, que será celebrado em 2016, inspirou o debate para pensar o papel das cidades. "Com que processos midiáticos, históricos, étnicos, culturais, semióticos, discursivos estas cidades se constituíram e se constituem?" - indagaram os organizadores.

Numa das mesas sobre Etnicidades, Línguas, Mídias e Cosmologias mediada por Vera França (UFMG), Luciana Oliveira (UFMG) discutiu a situação dos Guarani Kaiowá, Ivânia Neves (UFPA) abordou a pluralidade étnica de Belém e este locutor que vos fala (UNIRIO-UERJ) refletiu sobre as cidades da Amazônia que são cemitérios de línguas. Em Belém e Manaus estão sepultados os últimos falantes de muitas línguas indígenas reprimidas e silenciadas pelo poder colonial, imperial e republicano, o que tem tudo a ver com a obra de Foucault que tenho vontade de conhecer.

P.S. - Informações mais detalhadas em https://www.facebook.com/II-DCIMA-1002117513140867/?fref=ts

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24 Comentário(s)

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Adriana Klautau comentou:
30/08/2018
Caro Bessa. Crônica de primeira. E lhe digo mais...ter ouvido esse depoimento do nosso Mestre Benedito Nunes... e ainda ter encontrado essa foto dentro de uma caixa com tantas outras fotografias... foi uma das maiores bênçãos que Deus me deu através do casal Nunes. Do mais, Foucault nadou nas águas da nossa ilha de Mosqueiro e amou. Gratidão e abraço. Adriana Klautau Leite.
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Marlene Moura comentou:
08/12/2015
Bessa, só agora li este texto sobre Foucault no Brasil. São memórias relevantes não só para a academia, mas também para a história do país que passa por momentos turbulentos de "loucura". O que diria Foucault sobre a loucura de Eduardo Cunha? Sobretudo dos senhores magistrados que não colocam este homem na cadeia com todas as provas que se tem contra ele? Só há uma explicação: ele não é do PT! (Não sou filiada a este partido).
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Ira Maciel comentou:
01/12/2015
Super legal a crônica, FOUCAULT E O BONJOUR AMAZÔNICO. Além de Heliana Conde na UERJ tem uma grande especialista, admiradora, mestra em Foulcault, a grande Esther Arantes. Nunca esqueci o seu relato de um acontecimento familiar. Quando a filha Esther (acredito que com 8 anos) queria fazer algo que era próprio de idade adulta, Esther como boa educadora, falou para a filha: está bem, você pode fazer, mas amanhã você vai trabalhar em meu lugar, já que você quer ser adulta. Clarice considerou: mãe não posso, não sei nada sobre Foulcault. Eu até rio do fato. Copio para Esther para que ela recorde do fato e leia esta bela crônica. Um abraço de Ira
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Múcio Medeiros comentou:
01/12/2015
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Abrahão Farias (via FB) comentou:
01/12/2015
Proporcionaram-lhe todas as experiências, tacacá, açaí e, finalmente kkkk, foi roubado !
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Simara Ferreira (via FB) comentou:
01/12/2015
Também me sinto péssima por até hoje só ter lido "Vigiar e Punir" e a biografia feita por Didier Eribon. Essa biografia me fez admirar ainda mais a trajetória desse grande intelectual!
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Delphine PIffeteau comentou:
01/12/2015
Estimado Prof. Bessa, yo tampoco conocìa la obra de Foucault, y redimì mi pecado gracias a un amigo comùn, profesor de filosofìa... De sus estancias en Brasil la verdad es que no sabìa nada. Estuve buscando el documental en la red pero no lo encontré, sabe si està previsto ponerlo en lìnea? Muchìsimos recuerdos
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jose bessa comentou:
02/12/2015
Pessoal, o Mauricio Neves Correa enviou o link para o documentário http://grupogedai.blogspot.com.br/2015/12/michel-foucault-em-belem-novo.html
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Maurício Neves Corrêa (via FB) comentou:
01/12/2015
Maurício Neves Corrêa Professor, o documentário será postado no YouTube ainda essa semana. Daí eu te passo o link.
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Netília Seixas comentou:
30/11/2015
Bessa, memórias sensacionais!!
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Jorge Villela comentou:
30/11/2015
E como se pode ver o documentário?
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Pilar Roca comentou:
30/11/2015
Professor, o senhor tem a pouco frequente capacidade de fazer interessante os temas mais distantes do meu campo de interesse e ao mesmo tempo me informar de coisas que nem sabia que acabariam me interessando. Será que acaberei sendo uma interesanda de Foucault? Obrigada!
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Claudiana comentou:
29/11/2015
Aliás, a sua fala na referida mesa foi riquíssima!
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Silvia Cárcamo comentou:
29/11/2015
Adorei a crônica, muito interessante o encantamento do Foucault com as formas simples da vida americana,descrito com ironia pelo autor da crônica. Ele soube captar,sem mitificar, mas com sincero reconhecimento, a visão inteligente do pensador francês. Contato de Silvia Cárcamo
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Gerusa Pontes de Moura comentou:
29/11/2015
Deve ter sido muito bom conviver mesmo pouco tempo com um mestre como Foucault.
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Thiago de Mello comentou:
29/11/2015
Maravilhoso de verdade, o teu Foucault, belo pretextto para que ensines aos atuaus escrfitores brasileiros como é que se deve respeitar e usar com amor a beleza do nosso idioma. Grande vontade de estar contigo. Recebeste o meu Acerto de Contas, com um poema que te dedico? Thiago
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Agenor Sarraf (via FB) comentou:
29/11/2015
O texto de José Bessa é uma confissão honesta e, ao mesmo tempo, um registro da importância e experiência vivida no II DCIMA.
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29/11/2015
Bessa, Ainda muito jovem estive na conferência ministrada pelo filósofo Michel Foucault na Universidade Federal do Pará. Eu era muito jovem e fui à convite do padre e filósofo padre Carlos Coimbra. Para dizer a verdade, como a palestra foi ministrada em francês, traduzida pelo professor Benedito Nunes, entendi muito pouco do que ele dizia. Mas, mesmo ainda bem jovem, já sabia da existência do grande pensador que ele era e que muito me ajudou a compreender as instituições prisionais, que eu, mais tarde, experimentaria quando fui preso no Presídio São José, hoje um museu, mas que ainda expõe numa de suas dependências os instrumentos de tortura usados pelos algozes da época. Belém, mesmo com toda a repressão dos anos da ditadura, era uma cidade rebelde, como se diz hoje. Benedito Nunes, um sábio homem simples, não era de grandes arroubos, mas engrandecia a cultura paraense. Edna Castro, que conheci bem cedo, pois minha professora de sociologia, como sua beleza e sabedoria teve (e tem) muita importância na cultura paraense. Fico imaginando ela e seu marido, servindo de anfitriã na bela e bucólica Mosqueiro, onde passávamos as ferias, acompanhando Foucault e tomando umas boas biritas. Eu não sabia desse roubo das fitas gravadas que foram roubadas (por acaso?). O meu Pará, terra onde nasci e passei parte de minha vida, mesmo com todas as barbaridades em que vive hoje, me orgulha e dá saudades. Na tua terra, Bessa, onde vivo hoje, também sou grato, mas tenho saudades de minha terra. Estar na conferência do filosofo francês durante a ditadura foi um presente inominável naquela época cinzenta do "vigiar e punir". Uma observação: o Hospital Juliano Moreira, onde se internavam os loucos, nessa época, ainda existia. Foucault soube disso? Contato de Benedito Carvalho Filho
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Ana Stanislaw comentou:
29/11/2015
Bessa, adorei as histórias de Foucault no Norte brasileiro. Inéditas, para mim. Gostei da foto no muro! Divertido, como sempre. Obrigada por mais essa imperdível crônica.
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Ale Marques comentou:
28/11/2015
Nossa, que interessante saber sobre essa passagem do filósofo. Foto ótima essa ao lado do professor de short e chinelos. Ri muito da sua confissão, sensacional.
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Idelber Avelar (via FB) comentou:
28/11/2015
Caramba, os milicos foram atrás do Professor Benedito!
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Sassá Sassá (via FB) comentou:
28/11/2015
José Bessa, Edna é minha orientadora aqui, ela tem outras fotos
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Elaíze Farias (via FB) comentou:
28/11/2015
E o Benedito Nunes de bermuda e sandália. Adorei,
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