“When a dog bites a man that is not news,
but when a man bites a dog that is news”.
(Charles A. Dana, jornalista americano)
Foi isso que aprendemos no Curso de Jornalismo da UFRJ, assim mesmo, em inglês. Se um cachorro morde um homem, isso não é notícia, acontece sempre, mas se um homem morde um cachorro, aí sim, é notícia. Notícia é a novidade, o inusitado. Tal lição importada dos Estados Unidos era ensinada, em 1966, pelo nosso professor Danton Jobim, autor do Espírito do Jornalismo, um espírito de porco que continua baixando ainda hoje nas redações, especialmente se o mordido for um índio e não o filho do dono do jornal.
No domingo vasculhei os dois jornais que assino - um do Rio, outro de São Paulo - para confirmar a notícia dos disparos feitos no sábado (29/8) por pistoleiros pagos que mataram o guarani-kaiowá Simeão Vilhalva, 24 anos, e feriram dez outros índios, incluindo crianças da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu (MS). Nada encontrei. "Não houve tempo hábil de noticiar" - pensei, já que a edição dominical dos jornais fecha cedo no sábado e o corpo de Semião foi encontrado por volta das 15h, no córrego Estrelinha, onde foi atingido na cabeça quando bebia água.
Esperei a segunda-feira e passei um pente fino nos dois jornais. Inútil. Sequer uma notinha. O velório com as rezas de despedida, o caixão sobre banco de madeira ao lado de um galpão, o choro dolorido do filho e da esposa Janaína só apareceram nas redes sociais. A mídia nacional ignorou olimpicamente as mordidas dos "cães raivosos" do agrobanditismo, considerando, afinal, que aquilo não era novidade. Novidade seria se um índio mordesse um desses "cachorros".
No news
Se índios são assassinados sistematicamente nos últimos cinco séculos, isso é tão corriqueiro que deixou de ser notícia, assim como não é notícia o motivo pelo qual se mata: disputa por terra. No caso, esta área indígena demarcada e homologada pelo presidente Lula, em 2005, teve a homologação suspensa pelo ministro do STF Gilmar Mendes a pedido dos fazendeiros que a ocuparam ilegalmente. Permanece engavetada até hoje, alimentando o conflito, que é silenciado pela grande mídia, mas que bombou nas redes sociais em compartilhamentos indignados.
Os dois jornais de circulação nacional não deram uma vírgula ao longo da semana sobre os desdobramentos do crime: velório, enterro, protestos, ação policial e ministerial. Na terça, negaram aos seus leitores a notícia sobre o enterro. Lá poderiam entrevistar a professora guarani-kaiowá Inaye Gomes Lopes, testemunha do crime: "Houve massacres em dois lugares. Um na fazenda de Roseli, presidente do Sindicato Rural e o outro na fazenda de Dácio Queiroz, onde ocorreu a morte. Os fazendeiros com os pistoleiros deles chegaram atirando".
Quarta-feira, nas redes sociais circularam notas de protestos de várias entidades, entre outras a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), além de uma Carta Aberta dos Servidores da Funai de Campo Grande/MS, mas os dois jornais de circulação nacional nem seu souza. Se a morte de Semião não foi noticiada, como publicar notas exigindo a punição dos assassinos?
As notas lembraram outros líderes assassinados como Marçal de Souza e Dorvalino Rocha, condenaram a ação planejada dos ruralistas em ataque paramilitar premeditado, denunciaram o uso de munição própria das forças de segurança pública e exigiram o julgamento dos mandantes e dos executores, além da regularização da terra. O líder guarani Anastácio Peralta disse que Mato Grosso do Sul virou "o maior faroeste, o país perdeu a soberania, quem manda lá é pistoleiro e fazendeiro. Um boi vale mais que uma criança. Eles matam nós como animais".
Cantos da terra
As notícias fervilhavam nas redes sociais sobre o velório simbólico em frente a Praça das Águas, em Campo Grande (MS) para protestar contra a bancada ruralista que dá apoio político ao agrobanditismo, exibiam também fotos de outra manifestação dos Guarani em frente ao STF e ao Palácio do Planalto, em Brasília, para onde levaram um caixão. Mas nem a ação na Esplanada dos Ministérios, nas fuças do Poder e dos repórteres, arrancou uma palavra dos dois jornais.
Quinta-feira (3/9), a mídia nacional não deu um pio sobre a viagem do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que se reuniu na quarta com o governador Reinaldo Azambuja em Campo Grande para atuar como bombeiro. O governo federal autorizou o envio imediato de tropas do Exército a quatro municípios de Mato Grosso do Sul, deixando em estado de alerta tropas da Marinha e da Aeronáutica. O CIMI anunciou que vai levar o caso de Semião ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suiça.
No entanto, a dimensão e a repercussão dos fatos, assim como o interesse humano nele contido não comoveram os dois jornalões que assino, que permaneceram em silêncio escandaloso ao longo da semana. Nós, leitores, fomos privados da informação de tanto interesse para o Brasil, que foi comentada por dois professores de renome internacional da Universidade Federal da Grande Dourados, Graciela Chamorro e Walter Marschner:
"Nós, Walter e eu, participamos de um estudo sobre a bacia do Rio Apa e estivemos várias vezes na comunidade que tenta há décadas recuperar suas terras e ter acesso ao rio.Conhecemos o homem assassinado, a família enlutada e muitos moradores do local. Ñande Ru Marangatu em língua kaiowá quer dizer "A Bondade do Nosso Pai", esse é o nome de um morro dentro da área em litígio, onde o Ser Criador amarrou os cantos da terra".
Comparando as redes sociais com o silêncio da mídia, fica claro que noticia, na realidade, é aquilo que os jornais não publicam, o resto é propaganda, matéria paga. Desconfio que não vou renovar minha assinatura dos dois jornais, transformados em panfletões dos donos da grana. Eles contribuem para a invisibilidade dos índios no cenário nacional. A publicação dos fatos certamente evitaria outros crimes. Diante do silêncio "se faz um nó na garganta e se espalha em vários nós por todo o corpo" - como sinaliza Graciela Chamorro, que conclama:
- Em nome de A Bondade de Nosso Pai, quem escreve, escreva; quem canta, cante; quem toca, toque; quem pinta, pinte; quem reza e ora, reze e ore; quem prega, pregue; que os operadores do direito operem com justiça para que a impunidade dos crimes cometidos contra indígenas tenha um ponto final.
Señor perro
Um ponto final e um basta aos cachorros que estão mordendo índios há mais de cinco séculos, sem que isso seja noticiado. Foram poucos os cronistas - os repórteres do século XVI - que registraram a existência de cães musculosos, com mandíbulas em forma de alicate, adestrados para estraçalhar índios e dilacerar a carne de suas vítimas. Um deles, “Becerrillo”, de tamanho descomunal, dentes afiados e olhos de Satanás, ficou célebre e temido por sua ferocidade. Sua ração era melhor que a dos soldados.
Bartolomé De Las Casas conta a história de uma velha índia, a quem um encomendero entregou um papel velho, como se fosse carta, para levar a uma légua de distância. Por pura diversão. Depois que a índia partiu, eles soltaram Becerrillo, que saiu em furiosa disparada para despedaçá-la. A velha índia, tremendo de medo, ficou parada e falou em sua língua:
“Señor perro, yo voy a llevar esta carta a los cristianos, no me hagas mal, señor perro”.
Ela estendia a mão, mostrando-lhe o papel. O cão levantou a pata e mijou na velha como se fosse uma árvore. Mas não a matou. Sabemos da existência de Becerrillo e do seu filho Leoncico porque as duas feras viraram, finalmente, notícia, dando razão aos americanos e ao Danton Jobim. Os índios, finalmente, mataram as feras a flechadas, ou seja, "morderam" os cachorros. Aí sim viraram notícia.
P.S. 1) LAS CASAS, Bartolomé de. Historia de las Índias ahora por primera vez dada a luz por el Marqués de la Fuensanta del Valle. 5 tomos. Madrid. Imprenta de Miguel Ginesta. 1875 (p.284 t.III). 2) PEREIRA, Levi Marques e EREMITES, Jorge. Ñande Ru Marangatu file:///C:/Users/admin/Downloads/Nande%20ru (laudo antropológico e histórico sobre essa terra indígena).