Por respeito à liberdade de opinião, cedo este espaço ao assessor de imprensa da Arquidiocese do Rio, Adionel Carlos da Cunha, ex-coroinha do Colégio São Bento. Ele não gostou da comparação feita aqui, domingo passado, entre dois bispos e contestou matéria que aborda uma questão da história recente do Brasil: um bispo lutou contra a ditadura, o outro foi cúmplice dela ou, no mínimo, omisso.
Sua nota, porém, excede o espaço que disponho. Reproduzo aqui apenas parte dela, remetendo o leitor ao texto integral publicado nos comentários do site Taquiprati (8/12). Adianto que, sem contra argumentar, Adionel usa qualificativos dirigidos à minha pessoa: "tendencioso", "infeliz articulista", portador de "miopia histórica e ideológica", autor de "inverdades devido a ódios não resolvidos". Vamos lá.
NOTA DE ESCLARECIMENTO
"A Assessoria de Imprensa da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, tomou conhecimento do artigo "Nenhum pombo pousou sobre o seu caixão", do jornalista José Ribamar Bessa Freire, publicado no jornal Diário do Amazonas, de 08 de dezembro de 2013, que faz um tendencioso paralelo entre a cobertura jornalística dos funerais de Sua Eminência Reverendíssima Dom Eugenio, Cardeal Sales e de Sua Excelência Reverendíssima Dom Waldyr Calheiros Novaes. Lamentamos que neste momento de solidariedade e fraternidade tenhamos que voltar a esse assunto iniciado pelo infeliz articulista".
O feliz Adionel, em dois longos parágrafos cheio de chavões, nos oferece em seguida uma versão açucarada da trajetória de dom Waldyr, cuja vida - segundo ele - foi "um eterno AMEN ALELLUIA". Faltou contar que o bispo nunca disse amem para a ditadura e nunca bajulou o Poder com aleluias. Imediatamente depois de apresentar dom Waldyr, Adionel abriu o parágrafo seguinte com uma conjunção adversativa para contrapô-la ao dito anteriormente, assumindo a defesa das autoridades e da mídia:
"No entanto, é importante que se esclareça algumas inverdades que o artigo citado acima sem conhecimento de causa acaba afirmando erroneamente. O Prefeito da cidade de Volta Redonda decretou, também, luto oficial de três [sic] pelo falecimento do bispo emérito daquela cidade (não deveria ser o prefeito da cidade do Rio de Janeiro)".
Adionel defende, sempre grafando com letras maiúsculas (só o cargo de Dilma é grafado com minúscula), Deputados Estaduais e Federais e o Governador do Rio. Elogia o Prefeito Eduardo Paes, pois a cidade do Rio "não tinha motivos para decretar luto oficial". Jura que na morte de dom Waldyr "houve expressiva cobertura pela imprensa" e dá como prova o noticiário restrito da "afiliada da Rede Globo local", equiparando seu alcance com o do Jornal Nacional.
Deslumbrado com a pompa do Poder Político e com a força da mídia, o ex-professor de piano Adionel cita ainda "telegrama da presidenta da República". Da mesma forma, reage a qualquer tentativa de passar a limpo o papel que desempenharam algumas figuras da hierarquia eclesiástica. De forma coerente, a nota exalta outra figura poderosa:
"Com relação aos ataques contínuos contra o Cardeal Eugenio Sales, ao contrário do que afirma o referido jornalista, a Arquidiocese do Rio de Janeiro possui em seus arquivos as testemunhos[sic] de que ele ajudou a mais de cinco mil refugiados na época do regime militar e negamos, com veemência, qualquer colaboração do Cardeal Sales com qualquer aparelho de repressão ou de violência, sendo que o saudoso purpurado sempre pautou a sua vida pela ajuda silenciosa e discreta a tantos quantos bateram em sua porta. Disso eu sou testemunha ocular, como Assessor de Imprensa desta Arquidiocese há quase cinquenta anos".
Saudoso purpurado
A nota assinada por Adionel atribui meu artigo a "ódios não resolvidos", reduzindo o que é um julgamento crítico à manifestação de sentimentos pessoais. Ele não percebe que se trata não de um ataque à pessoa do cardeal, mas de uma crítica aberta e explícita à figura pública do cardeal, a um tipo de comportamento, o que é normal nas relações democráticas entre as instituições.
A estratégia piegas de colocar no saco sentimentalóide o que é um juízo crítico é mais revelador de quem a usa para tentar desqualificar quem critica. Confundir crítica com ódio ou com falta de respeito é atitude de quem não está habituado ao exercício democrático do debate, da contradição, da busca pela verdade. Não tem como rebater as críticas e dá às de vila-Diogo ao debate.
Adionel faz um esforço hercúleo e patético para dizer tão pouco e para esconder tanto. Seu texto pomposo e cerimonioso marcado por palavrório vazio e brado retumbante abusa quantitativamente de palavras. Trai a memória do cardeal Sales que, afinal, em vida, se esforçou tanto para ser o que foi em seu "saudoso purpurado": um amante do Poder. Confesso que li entre irritado e divertido as piruetas verbais feitas para submergir o que está de bubuia: a cumplicidade ou, no mínimo, a omissão de Eugenio Sales com a ditadura.
O discurso de Adionel, de sintaxe duvidosa, está empapado de retórica vazia. O que ele escreve não contesta a tese do artigo. Cheia de pompa e cerimônia, a resposta adota o lado mais fútil da questão, revela uma perspectiva institucional burocrática, simbolizada pela figura de Saudoso purpurado, não sentado ao lado de Deus Pai, mas á direita, bem à direita dos poderosos. Das 58 linhas, a única referência de mérito está reduzida a uma linha contida, quase escondida que se aproxima da caracterização de D.Waldir: "sua luta em favor dos mais simples e humildes e a sua abalizada voz que se levantou clamando por justiça e paz".
A nota confunde 'verdade oficial' apoiada em blá-blá-blá com 'verdade histórica' amparada em fatos, cujo testemunho passa pelo crivo da perícia histórica e das Ciências Sociais. A repetição contínua de uma inverdade, sem que ninguém conteste, pode torná-la verdade? Adionel diz que os arquivos da Arquidiocese possuem documentos (que só ele viu), comprobatórios da ajuda do cardeal a mais de 5 mil perseguidos, mas não cita UM SÓ nome e quer que a gente acredite nele, como se fosse o mistério da Santíssima Trindade, quando temos pessoas com nome, RG e CPF que foram escorraçadas por dom Eugenio, no momento em que lhe pediram ajuda.
Se até a documentação manchada de sangue que a ditadura guardou com sigilo feroz começa a ser aberta, por que não nos permitem o acesso a tais documentos? Aliás, fica aqui sugestão para a Comissão da Verdade: vasculhar os arquivos da Arquidiocese do Rio.
O que incomodou Adionel, que adota um tom inquisitorial, foi o fato de meus comentários terem estabelecido uma diferença de opção pastoral e política entre dois bispos da Igreja. Posso? Dá licença? Ou vai me impedir como se fosse no século XVI, quando a Inquisição me calaria e tomaria providências mais drásticas?
O campo pastoral de dom Waldyr não é o mesmo campo de pastoreio de dom Eugênio e é isso que Adionel escamoteia. A diferença é a qualidade do diálogo, da tolerância, da complacência, do compromisso com os humildes e a escolha dos interlocutores, um com a ditadura, o outro com os perseguidos por ela. Alguns prelados rezaram missas solenes, Te Deum e De Profundis, agradecendo a Deus, em atos públicos, pela existência de Franco na Espanha, Pinochet no Chile, Médici no Brasil. Outros, como o cardeal Arns, dom Helder e dom Waldyr se recusaram usar a fé para tal fim.
Com fervor místico, Adionel Carlos defende as autoridades e a mídia, o que não é de sua alçada. Ele é pago pela Arquidiocese para defender a Igreja e não a Rede Globo, o Governador e o Prefeito (com maiúscula). Por exorbitar de suas funções, mandei-o, com todo respeito, catar coquinho. Tanta xaropada e bajulação ao Poder constituído demonstram que Adionel, que é Adionel desde que nasceu, é mesmo discípulo de dom Eugênio.