Na capital de um país cujo nome não quero nem lembrar, um presidiário vestido de terno e gravata, com broche de deputado na lapela, saiu algemado do presídio, dentro de um camburão, sob escolta policial, entrou no plenário da Câmara de Deputados, ocupou a tribuna e falou durante 40 minutos. Foi ouvido em silêncio pelos seus - digamos assim - colegas, alguns dos quais discursaram em seguida, todos unânimes a favor da cassação dele. Mas na hora da votação secreta, mijaram fora do caco.
É que os que decidiram pela perda do mandato foram 233 deputados, mas mesmo assim o presidiário escapou da degola por 24 votos, já que encapuzados com o manto do voto secreto se manifestaram a favor dele 131 parlamentares, outros 41 se abstiveram e 104 deixaram de votar, dos quais 50 estavam presentes à sessão. Tudo somado, noves fora, zero.
O resultado surpreendeu até o próprio deputado-presidiário: "Não acredito" - ele clamou e, em gesto patético, se ajoelhou no plenário, agradecendo a Deus. Advertiu os seus pares:
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- Temos de ter cuidado com a voz das ruas. A voz das ruas crucificou Jesus. Creio em Deus e na Justiça. Sei que essa Casa é independente - declarou antes de retornar algemado e a bordo de um camburão às suas bases no Complexo Presidiário da Papuda, transformado assim no novo anexo do Congresso Nacional conforme sugeriu o Macaco Simão.
Natan Donadon eleito pelo PMDB (vixe, vixe) de Rondônia se tornou, assim, o único deputado-presidiário do mundo. Um fenômeno! Foi condenado pelo STF, em última instância, a mais de 13 anos de prisão, porque chefiou a quadrilha que roubou R$ 8,4 milhões dos cofres públicos, com contratos fraudulentos. Perdeu seus direitos políticos. Seus colegas decidiram que, assim mesmo, ele continua deputado. É o único parlamentar, em todo o planeta terra e quiçá nas três galáxias visíveis a olho nu, sem direitos políticos, requisito necessário para exercer o mandato.
Cachorro morto
Resultado tão absurdo não foi previsto por qualquer jornalista, nem sequer por Gerson Camarotti, aquele que acertou o nome do papa. Todo mundo dava como favas contadas a cassação do deputado-presidiário. A coisa começou a feder, quando Chico Alencar (PSOL-RJ) subiu a tribuna e teve seu discurso interrompido por representantes de diferentes partidos que gritavam: "Não chuta cachorro morto". "Cala a boca, Chico, o cara já está ferrado". Trataram o caso como se fosse um problema pessoal e não institucional.
Eram vozes de apoio que saíam da garganta de deputados com problemas na Justiça, legislando em causa própria: Jaqueline Roriz (PMN-DF), flagrada em vídeo colocando na bolsa dinheiro sujo; Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO), cupincha de Carlinhos Cachoeira; Sérgio Moraes (PTB-RS), o que se lixa para a opinião pública; Renan Calheiros Filho (PMDB-AL), suspeito de corrupção com mandato salvo duas vezes pelo voto secreto; o eterno Paulo Maluf (PP/SP), que dispensa comentários, mas também muita gente boa escondida detrás do voto secreto.
A mídia não acreditou muito no sucesso da operação realizada durante a semana por Melkisedek Donadon, irmão do deputado e ex-prefeito de Vilhena (RO). Ele, que é uma espécie de sumo sacerdote, deslizou com passos de felino pelos gabinetes de parlamentares da bancada religiosa angariando votos, sob o argumento de que Donadon é evangélico.
Ninguém acreditava que a Câmara de Deputados fosse capaz de ativar as vozes da rua e de berrar a plenos pulmões, convocando os manifestantes: "Me invade, me quebra, me bate, me xinga, me dá um sacode". Ninguém esperava. A jornalista da Folha de São Paulo, Eliane Cantanhêde, pediu desculpas na Globo News por ter se equivocado ao prever, na véspera, a cassação do deputado-presidiário. No dia seguinte, os jornais lamentavam: "inacreditável", "insano", "inimaginável", "absurdo", "incrível", "despautério", "incongruência constitucional".
Mas veio do jornalismo amazonense a reação que melhor expressa o sentimento da opinião pública de todo o Brasil, quiçá do planeta e das três galáxias, contra a decisão da Câmara. Só reação como essa foi capaz de demonstrar que os deputados, como Don Quixote, perderam o juízo e afirmaram "la razón de la sinrazón, que ni el mismo Aristóteles entendiera si resucitara para sólo ello".
Pega leve, Isac
Foi num telejornal local. A apresentadora Mariana Rocha, que é uma excelente jornalista, depois de dar bom dia aos seus colegas Amaral e Julieta, anunciou:
- O SBT Notícias começa noticiando a morte de um vigia num assalto a um Posto de Saúde no Bairro de Santo Antônio, Zona Oeste de Manaus. E olha, ontem, no Parque das Laranjeiras, ocorreu um acidente de trânsito grave, envolvendo....
Nesse momento, seu colega Isac comentou baixinho que a Câmara de Deputados havia decidido manter o mandato do deputado-presidiário, o que pegou de surpresa a apresentadora. Foi quando Mariana exclamou aquilo que estava engasgado na garganta de todos os brasileiros:
- Puta-que-o-pariu, Isac!
Não existe em língua portuguesa expressão mais adequada para manifestar indignação. O puta-que-o-pariu sonoro, inapelável, contundente, foi ao ar, ou porque ela esqueceu que estava ao vivo, ou por erro de edição que gravou e colocou o vídeo no ar. Constrangido, Amaral anunciou que ia resolver o problema, chamou informações de Parintins e deu às de Vila-Diogo.
O vídeo está ai para quem quiser ver, embora as coisas não tenham acontecido exatamente assim. Para falar a verdade, a gente contribuiu com a versão, enfeitou o fato, construindo um sentido patriótico e plausível para a intervenção de Mariana. Ficam aqui os parabéns à coleguinha Mariana, que merece toda nossa simpatia, pela sua competência, pelo seu humor, pela sua capacidade de rir (e pela sua beleza amazônica). O que ocorreu com ela já passou com Fátima Bernardes, Boris Casoy, William Bonner e com outros conhecidos apresentadores de telejornais do Brasil.
Isac, te cuida!