Era uma vez um peixinho da família Bodó. Ganhou o apelido de Cascudinho porque tinha escamas ásperas e duras que formavam uma espécie de capacete protetor em volta de seu corpo. Quando as águas do rio baixavam, ele cavava buracos nos barrancos e morava ali, quase como um anfíbio, brincando de esconde-esconde até o rio encher outra vez. Chafurdava na lama e ficava com o casco embarrado.
Por isso, ganhou a fama de porco, de sujo e de feio. Um dia, sua foto, com o corpo todo enlameado, foi publicada no A-É-I-Ó-U DO CANDIRU, o jornal de maior penetração da Amazônia.
Candiru era um colunista social fofoqueiro, com olhos pequenos cor de grafite e cara de supositório. Tornava-se quase invisível na água, podendo desta forma se alojar facilmente na guelra de outros peixes para se alimentar do sangue deles, o que lhe valeu o apelido de "peixe-vampiro".
O "peixe-vampiro" mantinha um programa semanal na TV Aquário: o CANDIRU NU E CRU. Foi lá, que ele, muito furão, entrevistou a Piranha Doralice. Enxerida, ela exibiu a nadadeira dorsal avermelhada para as câmaras e, mostrando a fileira de dentes afiados e ameaçadores, mas podres e cariados, parecidos com um serrote desdentado, sentenciou:
- O Bodó é um peixe feio de dar dó.
Disse mais a Doralice: disse que feio é apelido: Cascudinho era horroroso como o pecado. Disse que era um bodó pira-pirento macaco-fedorento. Disse que fedia porque só comia porcaria. Disse que comeu quilos de seringa, não morreu, mas cagou um pneu. Disse que, de noite, escondia a cauda e virava sapo. Disse que se parecia tanto com uma chuteira que o diabo o calçou no dia em que perdeu as botas. Por isso, ficou conhecido como "sapato do capiroto".
- A ninguéam apraz, o sapato do Satanás - disse Doralice, a Piranha invejosa.
A fofoca ganhou manchete no diário Poranduba Pira - o porta-voz oficial dos peixes e se espalhou por todos os rios da Amazônia. Impiedosa, Doralice disse ainda:
- Ninguém ama o bodó-na-lama.
Cascudinho mandou uma carta indignada de protesto que o jornal não publicou, mas circulou nas redes sociais, onde atacava as invencionices de Doralice e o veneno do Candirú e recitava os seguintes versos:
- Quem tiver raiva de mim,/que não possa se vingar, meta a corda no pescoço / e me dê pra eu puxar.
Nem a velha Piranha nem o penetrante Candiru meteram a corda no pescoço. No entanto, embora existisse quem ouvisse o disse-me-disse de Doralice e suas invencionices, todo mundo reconhecia que Cascudinho nascera com um dom. Ele era dono de uma incrível imaginação. Sua fantasia não conhecia limites. Tinha uma capacidade infinita de criar histórias. Dominava a arte de narrar. Sabia contar histórias como ninguém. Incorporava os personagens que representava, explorando as qualidades retóricas com pausas estudadas, altura da voz modulada, expressão gestual, abrindo e fechando teatralmente a boca em forma de ventosa e mexendo a nadadeira dorsal para dar mais realismo às cenas.
Quem o escutava permanecia encantado e hipnotizado com a atmosfera de sonho e poesia que ele criava.
- O bodó tem borogodó - diziam nessas horas.
Diziam que quem é feio vira bonito quando conta história. Diziam que, além de bonito, Cascudinho ficava cheiroso, charmoso, sedutor. Diziam ainda que na hora de contar histórias Cascudinho soltava borbulhas de amor e sua cintura ficava bordada por algas e corais. Até mesmo um cantor, que ouviu suas histórias, não resistiu e cantou que queria ser um peixe. Mas na sala de aula, havia colegas que o criticavam, porque ele sempre chegava atrasado na Escola do Igapó. Foi lá que ele ganhou a fama de mentiroso, porque inventava histórias mirabolantes para justificar o seu atraso.
Depois de ouvir uma dessas histórias, o Aracu, que tinha o dorso roxo metálico, com escamas regulares e lisas, disse que Cascudinho era 171, mentia, mentia e mentia.
- Você é mentiroso? - perguntou ingenuamente o Pacu gordo e cevado.
Cascudinho, que havia feito uma promessa de nunca mais mentir, fitou bem dentro dos olhos amarelos, de pupilas azuis, do Pacu e confessou:
- Sim, sou mentiroso!
O silêncio constrangedor tomou conta da Escola do Igapó e foi quebrado pelo Pirarucu que gostava de filosofar:
- Ora, se o Cascudinho é mentiroso, isso significa que ele está mentindo na hora em que diz que é mentiroso, portanto, se ele está mentindo quando diz que mente, é porque o que ele conta é de verdade.
Pronto, a dúvida estava instaurada. Nessa confusão, o Tucunaré pigarreou, e fez um discurso, numa inesquecível peça de retórica que lembrava o sermão aos peixes do padre Antônio Vieira:
- Peixes, estou passado! Vocês não sabem ouvir histórias, estão ouvindo com os ouvidos errados. Ouçam o Eco das histórias de Baudolino, o maior mentiroso do mundo. Ele inventava coisas que não eram verdadeiras, mas depois que ele contava, elas passavam a ser verdades. Se uma história criada pela fantasia de alguém nos ajuda a compreender o que antes era incompreensível, se nos ajuda a ver aquilo que ninguém via, então ela é verdadeira, na medida em que passa a fazer parte do nosso mundo. Não importa se os fatos narrados aconteceram ou não. As histórias fazem parte do mundo da metáfora, do duplo sentido, da polissemia, da poesia. Uma boa história não é uma fotografia da realidade, mas uma pintura criada por alguém. Qualquer obra de arte é sempre uma mentira que nos aproxima da verdade, já disse um grande pintor.
Cascudinho não resistiu, pulou para a terceira margem do rio e de lá gritou:
- Narrar é resistir.
Depois se despediu:
- Era uma vez, a rainha Vitória, deu um peido e acabou-se a história.
P.S. Qualquer semelhança com peixes ou fatos da vida real é mera coincidência.
José R. Bessa Freire: Cascudinho, o Peixe Contador de Histórias. 1. ed. Rio de janeiro: Editora do Brasil, 2019. v. 1. 48p .