O Imperador da Floresta, Sua Majestade Leão XIII, concedeu à Hiena o título nobiliárquico de ‘Baronesa de Igarapé’, dando-lhe de presente brasão e castelo. Dias depois, a nova baronesa se apresentou diante do Imperador:
- Majestade – disse ela – é preciso que os vivos aprendam a respeitar os mortos. Para isso, quero submeter-vos um projeto de lei que eu mesma redigi. Se V.M. concordar com minha humilde forma de pensar, meu projeto terá força de lei em toda a floresta.
Leão XIII submeteu o projeto ao Senado Florestal, que o aprovou por unanimidade. Promulgou, então, a seguinte lei:
Considerando que o olho collorido do imperador suscita terror e medo em todos os animais e que sua vontade é lei; considerando parecer favorável dos senadores Gato Escaldado - marquês de Pericumã, e Jaboti de Casca-Grossa – conde de Abacatal; considerando que o Senado aprovou o projeto da Baronesa de Igarapé; o Imperador Leão XIII decreta:
Art. 1 – Fica proibido, sob pena de morte, exumar um cadáver enterrado para consumir sua carne.
Art. 2 – O presente decreto entra em vigor a partir de hoje.
Art. 3 – A Baronesa de Igarapé fica encarregada de fiscalizar o cumprimento da lei.
Dias depois de sua publicação no DOF – Diário Oficial da Floresta - a matriarca das hienas enfartou e bateu a caçoleta. Teve velório espetacular com funeral pomposo e pirotécnico, desfile de carro de bombeiros e pétalas de rosas atiradas de helicópteros.
Depois do enterro, a Hiena filha, apelidada de Baronesa de Bunda-Baixa, esperou que todo mundo dormisse e, no meio da escuridão profunda e tenebrosa, se dirigiu ao cemitério. Lá, desenterrou o cadáver da mãe, devorou a carne da velha e roeu-lhe os ossos. Um senhor banquete! Naquele momento, trovões e relâmpagos riscaram os céus. A Baronesa, se borrando de medo, arriou ainda mais a bunda e fez cocô. A coruja, que enxerga de noite, viu tudo, do galho de uma árvore.
Os acusados
No dia seguinte, a Baronesa se apresentou diante do trono de Leão XIII, registrando uma queixa:
- Majestade, minha pobre mãezinha foi desenterrada e devorada esta noite. solicito a aplicação da lei: pena de morte para os violadores!
O Imperador da Floresta nomeou juiz do caso a Meritíssima Anta, que havia cursado o doutorado na Floresta Negra, na Alemanha, com uma tese intitulada Die Zulässig keits voraussetzungen der abstrakten Normenkontrolle. A Anta mandou prender e algemar cinco suspeitos, convocando-os para audiências.
Vestida com a toga e com aquele chapéu de bolo-de-noiva na cabeça, a Anta abriu a sessão com um discurso:
“Em matéria de justiça sou plenamente in-de-pen-den-te. Não se dá independência ao juiz para ele ficar consultando qualquer sujeito da esquina. O juiz tem o dever de arrostar a opinião pública da floresta”.
Ele só não disse que era dependente de quem tinha poder. A audiência começou. Os cinco suspeitos entraram algemados: o Boi Garantido, o Tamanduá Abraçador, a Onça Pintada, o Mutum-de-Penacho e o Urubu-Cabeça-de-Piroca. Todos eles juraram dizer a verdade, nada mais que a verdade, somente a verdade.
O primeiro interpelado foi o Boi, que se garantiu, provando que o vampiro criminoso não podia ser ninguém da família dos bovídeos:
- Antes que a vaca vá pro brejo, é preciso lembrar que nós, ruminantes, só comemos erva, pasto, capim. A ausência de dentes caninos e de incisivos superiores prova que não comemos carne, e muito menos, carniça. A disposição de nossas patas comprova que a gente não tem condição de desenterrar um corpo. Nem que a vaca tussa”.
- “Mas o Tamanduá Abraçador tem unhas poderosas e com elas pode desenterrar um cadáver” – disse o juiz, liberando o boi e chamando o segundo suspeito.
O Tamanduá se defendeu, alegando que era um animal de grande porte sim senhor, mas de índole inofensiva e que se alimentava exclusivamente de formiga e cupim. Suas unhas serviam para arrancá-las dos formigueiros. Ponderou ainda que o tipo de estômago que tinha constituía prova de que não tem a menor condição de tragar e engolir carne.
- Sugiro ao meritíssimo juiz que procure os carnívoros – disse.
O juiz acatou a sugestão e chamou a Onça Pintada, que exibiu um atestado médico, comprovando que felinos se alimentam de carne, mas de carne fresca, de bife mal passado, sangrando.
“Além do mais – disse a onça – a carne de hiena é reimosa e dá curuba. Não comemos carne podre. Procure os abutres”.
- Vocês comem carne? – perguntou o juiz ao quarto suspeito, o Mutum-de-penacho que partiu para a delação premiada.
- Sim "meretríssimo", mas carne de borboleta, de caramujo, de gafanhoto, de lagartixa, no máximo de perereca, sempre de animais pequenos. De cadáver de hiena não. Não somos abutres que nem o urubu.
A sentença
O último acusado era justamente o Urubu Malandro.
– Confesse que você e sua família se alimentam de carniça e que do alto do céu podem enxergar uma carcaça – intimou o juiz. Diante da confirmação, acrescentou:
- Você fede, é pestilento, nauseabundo, horroroso. Está acusado de vandalismo e vampirismo, sujeito à pena de morte.
- Se precisa de um culpado, me condene, mas vai ter que explicar como é que com meu bico e minhas patas eu consegui desenterrar o cadáver – argumentou o Urubu. Nesse momento, entrou o policial Macaco Velho, apelidado de Japonês da Guarda Florestal, trazendo a Baronesa de Bunda-baixa algemada:
- A coruja é testemunha. Aqui está a culpada – disse o Japonês da Florestal.
A Meritíssima Anta, apoplética, mandou desalgemá-la, devido à sua condição de baronesa.
A Baronesa negou tudo e, através dos seus advogados famosos – Raposa Felpuda e Jacaré-na-lama, regiamente pagos – incriminou o urubu; este requereu que fosse tomado o depoimento da coruja e que o Laboratório VVB da Vovó Veadinha Bambi fizesse exame das fezes encontradas ao lado do túmulo para verificar as “impressões digitais”. Os advogados da Baronesa argumentaram que aquelas fezes estavam destinadas a estrume, deviam ser vendidas para pagar os advogados. Recorreram, solicitando que o depoimento da coruja fosse ultraconfidencial e corresse sob segredo de justiça. A Meritíssima Anta deferiu e, depois, mandou arquivar o processo porque as provas foram conseguidas “de forma ilegal” e a Baronesa de Bunda-Baixa tinha foro especial.
P.S.1 Escrevo do Acre, onde participo do II Colóquio Internacional sobre as Amazônias e as Áfricas. Inspirado pelo evento, adaptei à realidade atual brasileira esse conto do escritor africano Amadou Hampâté Bâ (1900-1991) publicado na França em 1999 com o título “A Justiça dos Poderosos”. Existem hienas no Brasil e na Amazônia como prova a decisão do TRE/AM que absolveu o prefeito de Manaus, Amazonino Mendes (PTB, vixe, vixe) das denúncias de abuso de poder econômico e de compra de votos.
P.S. 2 - Anos depois de publicado esse artigo em versão impressa, muitas hienas foram libertadas pela Anta, uma delas reassumiu inclusive a presidência do PSDBB - Partido Subornável dos Bundas-Baixas.