“Quiero escribir, pero me sale espuma / quiero decir muchisimo y me atollo”.
(Enviado de Lima, Peru) Esses versos do poeta peruano César Vallejo martelam minha cabeça, enquanto procuro um tema para a conversa de hoje. Tem que ser algo do meu e do teu interesse, exigente leitor (a). Acontece que ainda estou em Lima, onde passei a semana participando do VII Congresso Internacional de Etnohistória. Apresentei um trabalho sobre a história das línguas no Amazonas. Posso escrever sobre isso. Será que te interessa?
A língua falada pela maioria dos amazonenses até o século XIX era o Nheengatu. Essa situação só mudou no período da borracha, entre 1877 e 1914, quando 500 mil nordestinos, falantes de português, entraram na região. Foi aí que o português predominou e nós esquecemos o Nheengatu. Até aí, tudo bem: línguas nascem, crescem e morrem. O grave, porém, é que ninguém lembra mais que esqueceu. Pensamos que aqui sempre se falou o português. “O que se opõe à memória não é o esquecimento, mas o esquecimento do esquecimento”, sugere o filósofo francês Giles Deleuze.
Esquecemos que esquecemos. Embora a história desse esquecimento seja, para mim, apaixonante, e desperte interesse em pesquisadores de outros países, algo me diz que se abordo esse tema aqui, vou encher o saco de muita gente. Afinal, a língua é como Deus, está em todas as partes, mas ninguém vê. Precisa ter muita fé para acreditar nela. Abro meus e-mails e as cartas dos escassos leitores tocam num único assunto: a eleição para prefeito de Manaus. Mas estou sem cabeça para comentar fatos locais. Como Vallejo, quero escrever, mas só me sai espuma e acabo me atolando.
Busco, então, um tema peruano nos jornais e na televisão. Assisto no teatro Yuyachkani uma peça, onde os atores falam quechua, não entendi nada do quechua, mas compreendi tudo da peça, os vários quechuas resistiram ao glotocídio planejado pelos espanhóis. Visito a exposição ‘Purito Peru’ sobre a identidade peruana. Saio às ruas frias e cinzentas de Lima. Converso com pessoas gentis e discretas, em busca de inspiração. Mas para onde me viro, só vejo eleição para prefeito de Manaus. Acho que fui contaminado pela obsessão dos raros, mas fiéis leitores. A prova disso é a visita que fiz à catedral de Lima, na Praça de Armas, onde tem uma exposição de arte sacra.
Conversas na catedral
A exposição abre com um quadro do Sagrado Coração de Jesus, seu dedo indicador da mão direita chama alguém, com uma frase escrita: “Dejen que los niños vengan a mi, porque el Reino de Dios pertenece a ellos”. Por mais que eu tente evitar, é impossivel não lembrar o candidato do PMDB (vixe, vixe!) Omar Aziz, acusado de ter repetido essas mesmas palavras, embora em circunstâncias nada sagradas e em português: “Vinde a mim as criancinhas”.
Aí, outro quadro me faz lembrar o Negão (PTBesta, vixe, vixe!), porque mostra um lobão de dente arreganhado, com as presas gotejando sangue, mas disfarçado em pele de ovelha. A citação do Evangelho de São Lucas (6,43) não deixa dúvidas: “Tengan cuidado con los falsos profetas, que vienen a ustedes disfrazados de ovejas, cuando en realidad son lobos feroces. Ustedes lo conocerán por sus frutos”. É. É o Negão mesmo, querendo vestir o paletó do Jefferson Peres.
Saio da catedral, meio tonto. Na banca de jornal, a primeira página de ‘El Commércio’ denuncia um concejal de la Municipalidad de Miraflores, o vereador espertalhão quer que o governo municipal pague os gastos de saúde de cada um dos concejales. A notícia então, me transporta para Manaus no início dos anos 90, quando a Câmara de Vereadores, presidida por Omar Aziz, viveu o escândalo dos ressarcimentos.
Vocês lembram? Os vereadores de Manaus aprovaram lei que obrigava a Câmara a pagar todos os gastos médicos deles. Só deles. Era pessoal. Alguns apresentaram recibos falsos, outros incluiram familiares. Consultavam médicos em Miami e em Houston. Em 1994 um taquiprati intitulado ‘O vereador que ficou grávido’ comentava os gastos de Roubério Braga, o Berinho, com ginecologistas: uma nota preta. Omar Aziz também meteu a mão na bufunfa. Foi uma locupletação geral. A lei acabou sendo derrubada.
Um dos poucos vereadores que resistiu e denunciou a mutretagem, com muita coragem e determinação, foi Francisco Praciano. Jogaram até bomba na casa dele. Grande Praciano! Manaus teve alguns vereadores de quem todos nós podemos nos orgulhar pela integridade de caráter, pela honestidade, pela combatividade e pela inteligência. Vanessa Graziottin, Francisco Praciano, Serafim Corrêa e Jefferson Peres com certeza encabeçam a lista. Não podemos esquecer isso. Faz parte da memória política da cidade.
Abaixo o latinorum
Finalmente, abro parênteses para comentar notícia que não está vinculada à eleição para prefeito de Manaus, mas tem a ver com a aplicação da justiça e com o esquecimento. É sobre a juíza peruana Roxana Jiménez Vargas, titular da 43 Vara Civil de Lima. Ela é diferente de seus colegas juízes, porque decidiu abolir o formato tradicional das sentenças que usa palavras dificeis e citações em latim. “As sentenças devem ser elaboradas para serem entendidas pelo cidadão, pelo homem comum e não apenas por advogados”, declarou ela aos jornais locais.
Pode uma pessoa aceitar a decisão de um juiz se ela não entende o que diz a sentença? A juiza Roxana acha que o acesso de todos à Justiça implica transparência judicial, ou seja, que as decisões dos magistrados sejam claras e publicadas na internet. Essa clareza facilita, inclusive, o direito de criticar as resoluções judiciais. Ela acha que deve haver uma mudança na própria formação universitária, os estudantes de direito devem aprender a falar e escrever como gente. Orozimbus Nonatorum superatus est.
A juíza Roxana criou um modelo próprio de sentença muito comentado pelos jornais peruanos. Nada de latim, nem de ‘vistos’ e ‘considerandos’ que costumam encabeçar as sentenças. Em vez disso, ela escolheu subtítulos bem sugestivos como: Assunto, Petição, Exposição do caso, Contestação, Análise do caso. Usa frases curtas, parágrafos breves, palavras de fácil entendimento. “Uma redação enrolada – diz a juíza – muitas vezes oculta o desconhecimento do caso ou a intenção do juiz de favorecer injustamente a alguém”.
Fecho parênteses e concluo. Pensei em escrever sobre a história de um esquecimento. Na realidade, os esquecimentos são muitos. Nós esquecemos, porque outras histórias cabeludas surgiram, mas é bom que ninguém esqueça que esqueceu. Sobretudo na hora de votar. Deixo essas espumas para o leitor meditar.