No ano passado, a TV Globo investiu na série intitulada “A Amazônia de Cousteau”, revelando os mistérios da região. Na época, em retribuição, criamos a “Expedição Priquita” ou “A França dos amazonenses”.
Organizada por cientistas brasileiros para pagar Cousteau na mesma moeda, a “Priquita” buscou pesquisar o tamanho do rio Sena, a magreza dos franceses, a semelhança entre Ajuricaba e Vercingetorix e como é que funcionam, nas praças de Paris, as tendas do “Projet Mon Fils? Ta gueule” organizado pelo ex-prefeito Jacques Chirac, inspirado no programa educativo de Amazonino Mendes, prefeito de Manaus, agora candidato a governador.
Se a TV Globo relançou ontem à noite a Expedição Cousteau, por que não podemos nós exumar a Priquita? Desta forma, penetraremos no “santuário do amor e da concórdia”, apelido gongórico que um candidato a deputado no Amazonas deu ao lar dos amazonenses.
Por que Priquita?
A “Expedição Priquita” recebeu tal denominação em homenagem ao candidato a vice-governador, aquele que de noite, dentro do barco, retirou de sua maleta um tubinho de “Cola Mil” e o utilizou pensando tratar-se do “Preparado H” para curar as suas hemorroidas. Talvez, por isso, no momento em que a roleta do destino está girando no horário gratuito do TRE, o candidato Amazonino oculta o seu vice, que fica sempre invisível.
Na hora em que Amazonino segura a periquita, faça uma experiência, leitor (a). Deite-se no chão no lado esquerdo do seu televisor e feche o olho direito deixando bem aberto o esquerdo. Você observará a ansiedade e o desejo estampado na cara de um homem de bigodinho, querendo desesperadamente segurar a periquita. Esse homem é o candidato a vice-governador.
A “Expedição Priquita” pretende, pois, homenagear o desprestigiado candidato “Cola Mil” que confidenciou aos correligionários sua frustração por não aparecer na propaganda eleitoral dizendo:
- Dá o pé, loura. Dá.
Amazonino não deixa Vivaldo meter os dedos nos pés da periquita, nem muito menos segurar a linha do papagaio para dar umas flechadas – dois prazeres infantis vinculados simbolicamente à volúpia do poder.
Já que custou
O êxito da “Priquita” depende de seguir a metodologia da “Expedição Cousteau”, para pesquisar os mistérios da França. Terça-feira à noite a GLOBO faz plim-plim e na quarta, nós revidamos pum, pum.
Quanto custou a expedição francesa? Por baixo, o equivalente a 40 bilhões de cruzeiros (40 milhões de cruzados). E já que custou tanto dinheiro, a população esperava ver um inventário sério. Se por alguns tostões o cineasta Silvino Santos nos deu “No Paiz das Amazonas”, qual Amazônia Cousteau nos mostrou com tanta grana?
A série passada começou com imagem sombreada, mostrando os contornos de uma figura humana. Quem será? Ainda bombardeado pelo horário gratuito do TRE, o telespectador imagina que pode ser ou Dutra ou Eduardo Braga que vai inaugurar um cano de esgoto no bosteiro do Morro da Liberdade, apresentando esse cocoduto como a obra do século, como se fosse as pirâmides do Egito.
Ledo engano. É o perfil do comandante Cousteau, com seu nariz aquilino de ave de rapina. Em off a voz anasalada de Sérgio Chapelain anuncia com contida emoção:
- Veja no próximo segmento Cousteau mostrar como as águas do rio Negro não se misturam com as do Solimões.
Desencontro das águas
Batata! Cousteau começa efetivamente a mostrar um fato impressionante que os índios vem observando há milênios e que deslumbrou, em 1542, frei Gaspar de Carvajal, o cronista de Orellana e centenas de viajantes e cronistas:
- O Negro é o Negro, o Solimões é o idem e suas águas não se misturam.
Os amazonenses sempre suspeitavam disso. Mas nunca tiveram dinheiro para anunciar esse fenômeno ao mundo. Um camelô da Feira da Panair confessaria depois que aqueles 4 minutos e 22 segundos de comerciais foram os mais longos de sua vida, que sua ansiedade para ver o encontro das águas só era comparável com a do candidato a vice para pegar na periquita. Um trabalhador rural do Careiro, lá na CEASA, chorava copiosamente e, entre um soluço e outro, confessa:
- Eu não sabia que era assim. Já vi o encontro das águas milhares de vezes, mas nunca colorido e narrado por Chapelain.
Uma criança do “Projeto Meu Filho” que nasceu no Xiborena agradecia a informação extracurricular:
- Parece o Governo e a Associação dos Professores (APPAM), se encontram, mas não se misturam.
Um candidato a deputado pela Aliança Democrática navegou naquela onda:
- Antes todo mundo falava equivocadamente em “encontro das águas”. Cousteau provou o contrário. Se eleito, apresentarei projeto modificando o nome para “desencontro das águas”.
Com uma papoula entre os dedos, o poeta Luiz Pucu poetava:
- Vê bem, Jacques, aqui se cruzam. Este é o Negro, aquele é o Solimões. Vê bem como este contra aquele investe à procura de um destino, como o Arthur Neto no debate com o Amazonino.
Cor de rosa
Novamente a voz gripada de Chapelain antecipa com estardalhaço:
- No próximo bloco. Uma descoberta sensacional: o boto cor de rosa. Veja o balé do até então desconhecido boto cor de rosa filmado por Cousteau.
Após nova avalanche de comerciais, o oceanógrafo faz profunda homenagem de 3 segundos ao golfinho rosado e ao folclore local. Só não tocaram a música “Foi Boto, Sinhá”, do Waldemar Henrique, porque a Globo e Cousteau ainda não descobriram o maestro e compositor paraense. No programa eleitoral gratuito, um candidato se compromete a dar o título de “cidadão amazonense” a Jacques Cousteau, por ele chamado de o Cristóvão Colombo da Botolândia.
Bem feito! O pescoço francês do prefeito! Bem feito para todos nós, que aqui moramos. É preciso vir um cara lá da caixa-prego para mostrar o nosso cotidiano.
Raimundo, o Mundico, prático do barco Santo Afonso, 35 anos de Solimões, indo-e-vindo de Manaus a Coari, confirmou derrotado:
- Eu já vi muito boto. O tucuxi, que é pequeno, preto ou cinzento, eu já vi. O vermelho ou malhado que é maior e menos arisco, eu já vi. Mas cor de rosa, nunca vi não. Quer dizer, ver eu já vi muitas vezes. Mas como o “homem” só descobriu agora, eu acho que não vi não.
Qualquer pessoa comum já teria se contentado com a glória das duas descobertas. Mas Cousteau não é uma pessoa normal. Depois de navegar pelos labirintos dos três poderes do Amazonas, ele filma piranhas com cáries nos dentes, lontras, ariranhas, pororocas, piracemas, pirarucus e jacarés, entronizados por eles como “reis do rio”.
Finalmente, a TV Globo foca cena patética. Jacques dialoga através da rádio do barco Calypso com seu filho Jean Michel, que estava lá nos Andes, nas nascentes, descendo com uma fita métrica para medir o tamanho do rio. Filho de Custeau, custôzinho é. Descobriu que o rio Nilo é menor que o Amazonas. Um coronel patriota, devoto de Santa Etelvina, propõe imediatamente que todas as cartilhas ensinem nas escolas que “o rio Amazonas é o maior rio do mundo”, exatamente como o Estomanol, que entra na tela anunciando ser eficaz contra a azia e a má digestão.
Difícil foi digerir o transcendental diálogo reproduzido pela Globo:
- Jean Michel?
- Oui, papa!
- Ça va bien.
- Oui, papa!
- Tu peux venir, mon fils. La picarétage est déjà finie.
- Oui, papa!
Sérgio Chapelain enxuga lágrima furtiva e proclama que a mãe de Jean Michel se deixa filmar pela primeira vez. Ela também chora. É a própria figura da Mater Dolorosa. Na despedida, a voz trêmula. Muitos espectadores não podem ver as últimas cenas impedidos pelos olhos embaçados. A finada Janete Clair, se viva, teria inspiração para uma telenovela.
No próximo capítulo da “Expedição Priquita revisitada” (II) veja a chegada dos nossos expedicionários amazonenses na França, a descoberta do queijo camembert e do vinho Bordeaux. Desça com eles os Champs-Elysées e estabeleça analogia com a avenida Eduardo Ribeiro. Veja, finalmente, como De Carli com seu currículo seria hospedado no “hotel” da Bastilha, caso essa última não tivesse sido destruída em 1789.