.Aos três cavaleiros do Apocalipse – Terêncio, Jaci e Aldo – com toda a admiração.
Em 1919, no auge da crise econômica, um seringalista foi representar o falido estado do Amazonas em Londres, num colóquio internacional para analisar a situação da exportação do produto da seringueira. Ele já havia estado lá, em meados de 1914, na Exposição Internacional da Borracha. De volta, escreveu um relatório ao governador do Estado, que demonstra muito bem o “senso de realidade” da chamada “burguesia de igarapé”. Já faz algum tempo, encontrei o documento na biblioteca do Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, da Universidade Paris III (Sorbonne nouvelle). Coloco aspas, com as devidas ressalvas, pois vou citá-lo de memória:
- “O Amazonas terá um futuro glorioso e voltará a ser o maior produtor de goma elástica do mundo, apesar das episódicas plantações da Malásia e do Ceilão” – diz o relatório. E justifica: “O mundo vai precisar de tanta borracha, que a época de ouro do Amazonas vai voltar”.
Por que a borracha ia ser mais usada? Como?
Segundo o relatório de 1919, “o mundo na próxima década será todo construído de borracha. As ruas serão pavimentadas com borracha, bem como os pisos, as paredes, as janelas, as portas e o teto das casas. Os móveis também. Mesas, cadeiras, talheres, copos, canetas, pias e privadas, serão todos confeccionados de borracha. As mamadeiras, não apenas as chupetas, e os berços serão de borracha. Até mesmo os caixões de defunto serão de borracha. Do nascimento à morte, toda a vida do homem será dominada pela borracha, inclusive os vagões de trens serão fabricados com borracha”.
O relatório explica as vantagens do último produto: “Se houver um acidente com trens de borracha, o desastre não será tão catastrófico”.
Faz sentido. Imagina só, leitor (a), um trem bate de frente contra o outro na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, descarrila e sai quicando como uma bola pela linha de fundo, por cima das arquibancadas, pulando para a outra margem do rio, num patrocínio exclusivo da “XPTO – em garrafa ou barril, a melhor cerveeeeeja do Brasiiiil”. A Rádio Difusora em cima do lance: “Fala Moreira”. E o nosso maior comentarista radiofônico diz: “Exatamente, Bosco, o lance foi e-xa-ta-men-te como você falou”.
Convenhamos, a ideia é muito alucinada, mas tão interessante quanto uma fábrica de tijolos que, em vez de barro, usasse água. Uma casa de tijolos de gelo sairia baratinha no Amazonas, onde a matéria prima abunda. Seria agradável com a temperatura ambiental e dispensaria gastos com ventiladores e ar-condicionado. Além disso, as casas, transparentes, teriam iluminação interna natural.
Fazendeiro no ar
Historicamente, toda fração de classe social condenada a desaparecer, delira e esperneia como um doente sem fé à beira da morte. Sem projetos, perde toda a objetividade e mistura suas fantasias com a realidade. Mas o delírio dos agonizantes seringalistas, sonhando com um mundo todo emborrachado, é algo com que nem a imaginação fértil do nosso escritor Márcio Souza consegue competir. Só mesmo a fantasia de fazendeiro que, em vez de pé no chão, tem o pensamento na estratosfera.
Recentemente tivemos outra erupção de delírio vulcânico, desta vez originada pelo representante de uma espécie também condenada à extinção: o latifúndio improdutivo.
O fazendeiro Oder Brasil (pronuncia-se Breizil) cometeu um artigo publicado em “A Gazeta” de Boa Vista (09/11/87), onde as alucinações, os desvarios e a demência estão presentes até nos pontos e nas vírgulas, ultrapassando os limites do bom senso.
O delírio já começa pelo próprio título: “DOM ALDO MONGIANO, O SUBVERSIVO”. Atente bem, leitor (a), para o detalhe do artigo masculino definido. Com tantos guerrilheiros por aí, o M-19 na Colômbia, o Sendero Luminoso no Peru, o bispo dom Aldo não é apenas UM entre tantos subversivos. Ele é O próprio.
Em seu desatino, Oder Brasil compara dom Aldo e os tuxauas Terêncio e Jaci com os três cavaleiros do Apocalipse, cavalgando pelas pradarias de Roraima em seus cavalos coloridos – tololoc, tololoc, tololoc – incendiando as fazendas da savana, matando o gado e distribuindo hóstias envenenadas pelo lavrado.
Oder Brasil, concluindo o seu artigo com um “Graças a Deus”, demonstra que errou não apenas em chamar dom Aldo de subversivo, mas na própria referência bíblica, porque ao contrário dos três mosqueteiros, que na realidade eram quatro, os quatro cavaleiros do Apocalipse foram reduzidos a três na versão do Evangelho Segundo Oder Brasil, que quer ensinar padre nosso a vigário e se ferrou.
O termômetro mostra que a febre alucinatória de Oder Brasil não tem limites. Ele imagina também um mundo todo de borracha, cheio de subversivos na sacristia, debaixo de sua própria cama e até dentro de suas panelas. Segundo ele, dom Aldo “está criando, estimulando financiando a ação de guerrilha contra os fazendeiros (...) tendo como massa de manobra os cabocos que habitam o norte de Roraima”.
O caboco Oder Brasil (se pronuncia Breizil), cujo filho de chama Kapói, que significa lua em língua macuxi, não concede nem a indianidade aos próprios índios a quem chama de cabocos, porque pela Constituição índio tem direito de recuperar a terra invadida pelos fazendeiros, mas caboco não.
Oder jura de pés juntos que dom Aldo pretende “dividir o próprio Brasil”. Êpa, leitora! Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Só porque tem esse sobrenome de Brasil, ele confunde cinto com bunda e cipó com jerimum. Desta forma, amalgama os interesses do Brasil-país com os interesses da família Brasil, fundindo-os em um só bloco. Então, como acha que a segurança da propriedade da família Brasil construída em terra indígena está ameaçada, escreve que é a segurança nacional do Brasil-país que está correndo riscos.
Oder empunha a sua espada em defesa do Brasil (família), acusando os três cavaleiros do Apocalipse como “responsáveis pela subversão e ameaça à integridade nacional” (O “nacional” aqui deve ser lido como fazenda da família Brasil).
No final do artigo, dizendo que quase perdeu a fé (não diz fé em quê), Oder Brasil escreve, não sabemos se com fé de mais ou fé de menos, que “resta uma última esperança para os sofridos moradores deste rincão afastado do Brasil: a ação moralizadora das Forças Armadas”.
Quer dizer, seguindo o programa da UDR, Oder convida claramente os militares para que salvem o Brasil (família), em uma aventura golpista, esquecendo que muitos militares já perceberam que os interesses do Brasil (país) não são os mesmos do Brasil (família).
“Traição”
O delírio de Oder Brasil, assunto a ser tratado pelo psiquiatra Rogélio Casado, não resiste ao menor confronto com a realidade. Dom Aldo Mongiano, “o guerrilheiro que ataca os fazendeiros”, é um homem calmo, tranquilo, de fala mansa, considerado dentro da Igreja como um bispo conservador. E é. Conservador, mas honesto. Como ele percebeu que os fazendeiros querem abocanhar o último pedacinho de terra que sobrou para os índios, disse: “Não, assim também é demais. Deixem os índios em paz”.
Ah, Margarida, pra quê! Os fazendeiros ficaram malucos e possessos e se deixaram habitar pelo capiroto. Ele acha que a Igreja e os bispos devem abençoar todas as safadezas deles. Porque dom Aldo quebrou uma aliança histórica, eles o consideram um traidor, o que é verdade. Traiu os fazendeiros sim, mas não é subversivo. Esse é o maior elogio que podemos fazer ao bispo de Roraima: ele traiu um pacto corrupto, o que significa reafirmar um compromisso com o seu rebanho, cujas terras estão sendo pilhadas e que já não tem mais nem pasto para ruminar suas penas.
Já quanto aos outros dois cavaleiros do Apocalipse – Terêncio e Jaci – esse que batuca essas mal traçadas linhas conhece muito bem os dois desde 1978. São tuxauas, líderes de suas comunidades indígenas, mansos e humildes de coração, mas dispostos a lutar com coragem na defesa da sobrevivência e da identidade de seus parentes. Por isso, eles foram escolhidos no mês passado, em eleição direta, com mais de três mil votos, para dirigirem os destinos de seus povos.
Terêncio e Jaci são dois líderes indígenas reconhecidos, legitimados pelo voto da comunidade, o que nem Sarney conseguiu. Ambos são muito lúcidos, inteligentes, íntegros e não se venderam até agora ao Poder, o que deixa os fazendeiros mais malucos ainda. Terêncio, Jaci, junto com os povos indígenas de Roraima, querem apenas viver em paz em seus territórios, invadidos constantemente pelos fazendeiros.
O delírio de Oder Brasil só pode ser explicado dentro do contexto histórico em que vivemos. Todo mundo percebe, até mesmo os fazendeiros e a UDR, que a atual estrutura fundiária do Brasil está condenada a desaparecer mais cedo ou mais tarde (esperamos que mais cedo). Vai daí que os fazendeiros hoje, como os seringalistas ontem, piram e deliram incapazes de elaborar um projeto próprio e de encontrar um lugar no novo mundo que se desenha.
Nenhum argumento apocalíptico pode justificar tal absurdo: um indivíduo sozinho é proprietário de extensas áreas de terra, muitas vezes sem cultivar, enquanto milhões de trabalhadores rurais e milhares de índios não tem um pedaço de chão para plantar uma rocinha. O Brasil-país morre de fome, enquanto o Brasil-família, de barriga cheia, especula com a terra como uma mercadoria. Não tem diabo no mundo, nem mesmo a tortura, capaz de nos fazer acreditar que isso é justo.
P.S. – Três recados enviados por meus amigos que acompanham a luta indígena. O primeiro para Terêncio e Jaci. Não se impressionem com as baboseiras dos fazendeiros. Sigam em frente, serenos, mas firmes.
O segundo recado para dom Aldo: um bom pastor é aquele que cuida bem de suas ovelhas. Quem o está caluniando, cego de ódio, em uma campanha difamatória dirigida pelo jornal “Estadão” de São Paulo, é uma pequena parte podre desse país, interessada em que a opção preferencial da Igreja seja pelos fazendeiros.
O terceiro para Oder Brasil: tu não tem vergonha não, Oder? Tamanho homem escrevendo tanta leseira! Olha aqui, bicho, vai fazer algo de útil, vai plantar mandioca. Vai rezar, vai! Te arrepende de teus pecados que Deus te perdoa, como nós já te perdoamos. Vai enxugar gelo, vai. Vai enfiar flatulências num cordão! Vai te catar. Faz qualquer coisa, mas não enche o saco. Deixa os índios em paz, rapaz!