Rio – Milhares de cartas foram jogadas no lixo, em Manaus, atrás do Conjunto Tiradentes, pelos fura-greves contratado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT). No entanto, pelo menos uma delas escapou, chegou no Rio de Janeiro, aterrissou na rua Graça Aranha e pousou, com um certo atraso, sobre a mesa deste locutor que vos fala. Enfim, a carta de uma leitora assídua.
A missiva
“Meus dois escritores prediletos são o Demósthenes Lins, de Fonte Boa (AM), que escreve no Jornal do Comércio de Manaus textos que emanam energia, luz, paz e espiritualidade. Ele publicou “Diário de Minhas Memórias”. O outro escritor é você pelo humor e o riso que faz brotar em nossos lábios com suas “reportagens” (sic).
Assim começa a carta da leitora Maria Aparecida Lopes de Souza, professora, residente à rua Mem de Sá, no Conjunto Dom Pedro. Ela condena, porém, o que chama de “humor amargo e cáustico” em outro trecho da sua missiva (no caso é missiva mesmo).
“Prefiro o humor leve. O seu é corrosivo. Você só vê as coisas pelo lado negativo do deboche, quase nunca pelo lado positivo do amor. Por que? Tenho a impressão de que, criança rebelde, apanhou muitas surras de sua mãe para ficar assim tão amargurado, esquecido de que a natureza é bela, as flores desabrocham, os pássaros cantam e as crianças sorriem. Cante com o Louis Armstrong: “What a wonderful world”. Por que não encara a vida com otimismo? Por que? Por que? Faça um esforço e conseguirá”.
Bem que eu disse que era missiva. Ela termina com um apelo esperto, necessário e oportuno:
“Espero que você tenha a elegância de não ficar zombando sobre o que eu escrevi. Não esqueça: eu sou sua leitora”.
Vontade, confesso que tive. A missiva é um prato. Mas escravo da elegância, jamais farei gozação com uma leitora. Sinto-me obrigado, no entanto, a prevenir que quem não vai gostar da calúnia insinuada é a dona Elisa, essa santa que nunca levantou a mão para castigar um filho.
Quando quebrei o telhado da Leonor em busca de um papagaio que lá queidou, ouvi conselhos de um cabo de vassoura. Um cinturão me acariciou quando queimei a bunda do Fernando português que mijou na nossa fogueira de São João. Mas sua mão jamais foi levantada.
Ônibus fluviais
Faço um esforço? Atendo o apelo da leitora, o canto dos passarinhos e coisa e tal? Educo o meu olhar para ver o mundo com esperança, confiante na bondade humana? Por que não? Por que não?
Matutei e matutei. Decidi: de hoje em diante vou modificar o meu modo de vida, cantando como Roberto Carlos. E pra começar, me penitencio, mostrando hoje os aspectos positivos do Projeto Catraia, tão vilmente criticado na semana passada aqui nesse espaço.
Não é fácil encontrar vantagens no Projeto Catraia dos candidatos a deputado federal Manoel Ribeiro (PL vixe vixe) – já impugnado pelo TRE – Tribunal Regional Eleitoral e o Joaquim Alencar (PRN vixe vixe) – a ser impugnado pelas urnas, que pretendem revolucionar o transporte urbano em Manaus. Fácil não é. Mas não é de todo impossível. Por que não fazer um esforço, Por que? Por que?
Um estudo preliminar do Projeto Manoel-Joaquim nos mostra que o uso de barcaças ou ferry boat – ferro no Boto, como apelidamos – não vai mexer apenas no trânsito de Manaus, mas trará ainda benefícios sociais, econômicos, políticos, culturais e administrativos para a população.
Espicaçado pela leitora Aparecida, estamos em condição, agora, de provar que os ônibus fluviais podem melhorar o lazer, a alimentação e a saúde dos trabalhadores amazonenses.
Como? É simples. Caniços, anzóis, iscas, cuias e redes de dormir serão distribuídos a toda população pelo FEDEU DO TRANCO, isto é, o Fórum em Defesa do Usuário do Transporte Coletivo, que já existe em Manaus.
De manhã cedinho, o trabalhador sai de sua casa para o Distrito Industrial munido de todos esses apetrechos. Entra na barcaça Manoel-Joaquim e vai correndinho armar sua rede como nos motores de recreio, depois de ter lido a cartilha redigida pelo competente diretor da TV A CRÍTICA, Ruy Alencar, contendo instruções sobre a escolha do melhor local.
Abro um parêntese. Câmbio. (O Ruyzinho aprendeu a lição numa viagem pelo rio Solimões no barco-recreio Lord Nelson, quando armou sua rede embaixo daquela do prefeito de Coari, sofrendo o impacto do pipocar das ventosidades fétidas disparadas pela autoridade municipal. O bombardeio durou a noite toda, prejudicando no dia seguinte a programação da Rádio Coari elaborada por um Ruy traumatizado e insone. Depois disso, ele escreveu a cartilha “Onde armar sua rede no motor de recreio?).
Fecha o parêntese. Ok, Ruy? Confirma a história? Câmbio.
Escolhido o melhor local, o trabalhador viaja deitado na sua rede, prolongando o seu sono. Chega à fábrica descansado, o que aumenta a produtividade. Na volta, para compensar a gororoba intragável servida no almoço pelos empresários sovinas da Zona Franca, o usuário da barcaça, de dentro de sua rede, joga o anzol na água e fica com o caniço, esperando o peixe beliscar.
De noite, o nosso usuário chega em casa, descansado e cheiroso, com uma enfiada de jaraqui:
- Olha aqui, benzinho, o que eu trouxe para a janta! Está fresquinho, paixão.
Ele chegará cheiroso em casa, porque em vez de enfrentar um ônibus entupigaitado, com passageiros fedendo a cecê, o usuário da barcaça, munido de uma cuia, pode durante o trajeto, já ir tomando banho na popa do ônibus fluvial.
Secatraca
As vantagens administrativas do projeto Manoel-Joaquim são ainda maiores do que as sociais. O prefeito não precisa tapar buracos, porque o rio Negro não tem mais buracos, depois que o Gregório da SHAM – Sociedade de Habitação do Estado do Amazonas, asfaltou a Cidade Flutuante e tapou aquele último buracão onde, no século XVIII, os portugueses empurraram o Ajuricaba. Não precisa abrir ruas, avenidas, construir abrigos, drena, pavimentar, asfaltar, construir calçadas, quebra-molas, essas coisas que o atual prefeito diz que está fazendo.
No plano político, é uma hábil cacetada no atual prefeito suicida que, em vez de executar projetos como o do Manoel-Joaquim, fica que nem tatu drenando, pavimentando e construindo esgotos nos bairros periféricos de Manaus.
O projeto barcaças beneficia a vida econômica da região, gerando novos empregos: mestres, contramestres, pilotos maquinistas, marujos, taifeiros, trabalhadoras nas fábricas de redes, cuias, caniços e anzóis, vendedores de dindin e funcionários da SECATRACA.
O que é SECATRACA? Evidente, oh meu, que um projeto de tal envergadura exige a criação da Secretaria das Catraias e Canoas, que precisará de datilógrafas, secretárias, atendentes, contínuos, assessores, motoristas, fiscais, auxiliares administrativos, jornalistas, administradores, engenheiros, advogados, advogados e advogados.
Um órgão novo surge, mas um velho será extinto. E essa é a maior vantagem do projeto: acabar de vez com o DETRAN. O trânsito passará a ser controlado pelo Departamento Nacional de Transportes Aquáticos.
A SECATRACA exigirá a reestruturação da SNapp (se Não Aguentar Peça Penico) e da ENASA (Este Navio Anda Sempre Afundando), que cuidarão das barcaças, gaiolas, vaticanos, chatinhas, lanchas, alvarengas e ferry boats urbanos.
Programação cultural
Mas é no campo da cultura que o Projeto Manoel-Joaquim provocará uma revolução na Amazônia, maior do que a ocorrida na China, deixando os guardas-vermelhos do Mao-Tse-Tung parecerem mais inofensivos do que os alunos de catecismo da dona Elisa.
Um palco profissional será armado na popa da embarcação com o objetivo de “elevar o nível cultural” dos usuários e proporcionar-lhe lazer sadio. Enquanto o trabalhador vai e volta da fábrica, deitado na rede, caniço na mão, estará assistindo artistas de esquerda e de direita, amigos ou não.
A programação da primeira semana já está pronta:
Segunda-feira: música - O dueto Betty Suely e Otalina Aleixo, em trajes típicos, cantam Malagueña, Cucurucucu Paloma e outras canções que elas acreditam pertencer ao folclore amazônico, acompanhadas pelo violão de Paulinho Kokai (esse menino vai longe).
Terça-feira: balé e teatro – “As mulheres de Pequim” com a nossa combativa vereadora Vanessa, acompanhada da irmã da Bernadete Andrade, a Ivone, que tem cara de criança. Encenação de “Dessana, Dessana” de Márcio Souza e shows de música do Torrinho e Aldísio
Quarta-feira: cinema – Exibição dos velhos seriados do Guarany e Polytheama, recuperados, e o filme de terror: “Ele, o Boto” projetado num grande telão.
Quinta-feira: poesia – Evandro Carreira recita os haicais de Jofetopica, acompanhado ao violão pelo Betão, cunhado do Bosco Spener.
Sexta-feira: conferência – Eronild0 Bezerra e o professor Rosendo Neto de Lima abordarão o tema “A Perestroika e a Glasnost e sua influência nos métodos de fabricação de farinha de mandioca em Vila de Pedras, Parintins”. Quem não dormir, terá o direito de escutar o grupo Carrapicho com Zezinho Correa cantando Tic-Tic-Tac.
Sábado: mesa-redonda – Luis Fernando Nicolau, Euler Ribeiro e Manoel idem, tendo como mediadores os especialistas Amazonino Mendes e De Carli discutem o tema apaixonante “Existe mesmo diferença entre a verba pública e a privada?”
No domingo, Deus descansou, mas Deusamir não. Ele e Mário Frota apresentam a peça infantil “O melhor amigo do Homem sou eu”, disputando a amizade com Collor de Melo, enquanto dona Elisa, porta-voz de seu filho, indignada lê para os adultos a injustiça cometida contra Beth Azize, que nos representou muito bem na Câmara Federal e agora teve sua candidatura à prefeita barrada pelo Poder Judiciário.
Que programação apoteótica. Éraste, maninha, passa a mão aqui no meu braço, passa. Olha os cabelinhos. Estou arrepiadinho só em imaginar quanto agito a gente pode fazer na cidade. Pois não é que acabei convencido de que o Projeto Manoel-Joaquim é maravilhoso?
Viu, Aparecida, eu fiz o esforço, não fiz? Por que? Por que? Por que?
P.S. Publicado originalmente com o título: A Secatraca fedeu no tranco.
Obs: Ver também Metrô aquático e ônibus fluviais em Manaus. https://www.taquiprati.com.br/cronica/630-metro-aquatico-e-onibus-fluviais-em-manaus
(Correspondência para essa coluna: Ribamar Bessa, Rua Graça Aranha, 174, Grupo 509. CEP 20.030. Rio de Janeiro – RJ.