CRÔNICAS

O canibalismo no duelo Belfort versus Penafort

Em: 22 de Outubro de 1991 Visualizações: 1467
O canibalismo no duelo Belfort versus Penafort

Recebemos do secretário de Estado do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia (SEMACT), José Belfort, uma carta aqui transcrita na íntegra. Por falta de espaço, não podem ser publicados os dados e as tabelas com números que foram anexados pelo autor, responsável também pelas palavras ressaltadas em negrito.

Manaus, 09 de outubro de 1991

Ilmo. Sr. José Ribamar Bessa Freire

a/c de A CRÍTICA

Nesta

Prezado jornalista PENA FORTE,

Permita-me chamá-lo assim, não por querer imitá-lo em suas diatribes, mas porque o considero contundente ao se utilizar do vernáculo para atingir impiedosamente qualquer pessoa que lhe desagrada. Sem ao menos conhecê-lo, ultimamente venho sendo matéria do seu desagrado e ranço pessoal, atribuindo à minha pessoa, por qualquer palavra que julgue da minha autoria, a defesa dos mais inconfessáveis interesses alienígenas contra nossa gente e a nossa região.

A maneira jocosa, sempre temperada com doses de irreverência, que molda o estilo do Pena Forte, como a que publicou em A Crítica, intitulada Taqui Pra Ti, torna, e aqui não vai qualquer elogio subserviente, como que obrigatória a sua leitura principalmente para aqueles que, como eu, apreciam a mistura de humor com os variados aspectos sociais, políticos, econômicos, históricos, etc da Amazônia e em especial do Amazonas.

Pena Forte, no seu último artigo fui distinguido na maior parte da sua coluna, com tal intensidade muito próxima do agravo à honra, que me obrigou a escrever-lhe esta carta para falar a você com minhas próprias palavras e assim evitar que seja abastecido – muito maldosamente – com informações distorcidas primando pela incorreção, para tornar mais forte suas palavras contra minha pessoa.

Apenas para não ficar sem resposta o que escreveu naquele artigo, quero afirmar que “nos 52% do território amazonense” houve um lapso, pois o que me recorda haver dito foram 42%, referindo-me não às áreas indígenas, mas quando a elas se somam todas as áreas reservadas (ecológicas, biológicas, florestais, etc) do Estado do Amazonas. Os documentos anexos enfocando cada uma das áreas totalizam 673.678,82 km², portanto 42% do território do nosso Estado.

Como você vê, isso é apenas um exercício de aritmética, mas, infelizmente, apesar de tão simples, é impossível aquilatar os danos causados ao Amazonas pela subtração dessas áreas ao processo de desenvolvimento econômico que perseguimos como fórmula para extirpar a miséria e o subdesenvolvimento. Daí a razão porque combato – e não poderia ser diferente – o desmembramento do território amazonense feito sem base de conhecimento e por pessoas - notadamente os tecnocratas do nada – sem compromisso com o destino da nossa gente.

Com relação ao Dossiê Amazônia, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) publicado em 1984, quero apenas informar que só assumi o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) – em 1985 e, portanto, não fui sequer um pálido protagonista de problemas latifundiários na Amazônia.

Quanto ao meu relacionamento com “as Paranapanemas e as Tabocas da vida", empresas genuinamente nacionais, tenho a satisfação de informar que foi durante minha administração no DNPM que se alcançou, através delas, o primeiro lugar mundial na produção de estanho, colocando o Amazonas como carro chefe do setor.

Pena Forte, quero crer também que o seu estímulo contra minha pessoa, levando-o a incorreções e injúrias, resulta de desinformações lamentavelmente tão comuns, quando se trata de temas como recursos naturais, minérios e populações indígenas na Amazônia.

Por acreditar que o Pena Forte seja no seu ramo profissional daqueles que, independentemente de credos, de posições políticas e de sentimentos tão pequenos, têm compromisso com a verdade, é que o convido a visitar a SEMACT e conhecer nossas teses, nossos propósitos e nossos objetivos para um Amazonas melhor.

Saiba, Pena Forte, que demonstrar para qualquer segmento da nossa sociedade, com instrumentos analógicos, a velocidade da luz, é um problema de fácil solução. Mas demonstrar isso para um canibal não faz o menor sentido. Assim, coloco à sua inteira disposição toda a luz da nossa Secretaria.

Cordiais Saudação

José Belfort dos Santos Bastos

Resposta à carta

Você viu só, leitor (a)? O que você acha?

Na minha opinião, a carta do secretário José Belfort é inteligente, elegante e bem-humorada, isto é necessário reconhecer apesar de ele tentar dar um puxão nas nossas orelhas, na minha e na tua, leitor (a) pela crônica que nós compartilhamos. (É isso mesmo! Não tira o teu da reta não, que você foi cúmplice, leitor (a). Você também riu e debochou.

Agora maninha (o), seriozinho, o simples fato de Belfort tê-la escrito já merece, de saída, o nosso respeito, porque sinaliza que ele parece estar aberto à discussão – prática democrática tensa e contraditória, porque envolve a crítica, mas exercício saudável porque dá visibilidade à realidade, favorece a troca de informações e ideias e o próprio conhecimento. Ouviu, Nininho? Tá ligadão, Didi Carli Catitão? Por falar em discussão, a carta merece alguns comentários.

Ofensa pessoal

O leitor é testemunha de que esta coluna nunca (eu também uso negrito) ofendeu a honra pessoal de quem quer que seja, inclusive porque não tenho vínculos de relação pessoal com os homens públicos e as mulheres públicas que critico. Sequer os conheço. Nunca fizeram nada contra mim. O Amazonino, por exemplo, que eu saiba o Nininho nunca xingou a dona Elisa, minha veneranda mãe. Que eu saiba!

A nossa avaliação é outra, nada tem de pessoal. Tenho a impressão de que o secretário Belfort está confundindo as coisas. Ele é um homem público, responsável por políticas públicas e ações que afetam a vida dos amazonenses e até dos brasileiros. Portanto, minha relação com ele é de natureza pública. Todo jornalista comprometido com a informação é um formador de opiniões. Talvez porque as críticas às suas ações públicas sejam feitas nesta coluna num tom coloquial e informal, com recursos a procedimentos do campo da oralidade, ele esteja confundindo cinto bom bunda, irmã Dulce com Xuxa, Praciano com Bonfim.

Quero ver minha mãe mortinha no inferno, quero que Santa Luzia me cegue, se houve intenção de ofensa pessoal à honra do José Belfort, que eu não tenho ainda a honra de conhecer pessoalmente. Mas vou conhecer.

Povos indígenas

Por que tecemos críticas a Belfort? Por suas declarações publicadas nos jornais de que 52% do território amazonense não pertenciam à coletividade, mas aos índios. Agora, Belfort esclarece que teria dito 42% e não se referia apenas às áreas indígenas. Segundo os dados que ele enviou em anexo e não aparecem na carta, as áreas indígenas cobrem aproximadamente 395 mil km², o que representaria 25% do total. Veja só como baixou, leitor (a) Vai baixar ainda mais, se considerarmos apenas aquelas áreas indígenas já demarcadas, de verdade, que ocupam 36,565 km², ou sejam apenas 4,5% do Amazonas. Com isso ganhamos e todos nós com a informação mais precisa.

No entanto, Belfort, geólogo de formação, que foi segundo tenente do Exército, insiste que a subtração (ele usa essa palavra) dessas áreas reservadas – indígenas, ecológicas, biológicas, florestais – causam danos ao desenvolvimento do Amazonas, o que no nosso entender equivale a dizer que as poucas praças existentes em Manaus, áreas de lazer e de uso coletivo, são “ociosas” porque subtraíram espaços para a construção de estacionamentos de carros ou para a construção de edifícios.

Tudo depende do posto de observação e do ângulo com que se olha a questão, além do conceito de “desenvolvimento” com o qual se opera. O geólogo Belfort vibra com o nosso primeiro lugar mundial na produção de estanho, mas não explicita quem lucra com isso, nem menciona as desigualdades sociais e a miséria crescente da população. O seu conceito de “desenvolvimento” exclui os indígenas, que há milênios vivem na região, assim como a qualidade de vida, que fica fora do seu radar. Ele está focado apenas nos dados quantitativos da produção, sem preocupar-se em que condições sociais ela se realiza.

Como é que sobrevivem os trabalhadores que fizeram do Amazonas o carro-chefe da exportação do estanho? Para continuar com a analogia no caso das praças, existe a visão do especulador imobiliário, que só pensa no lucro e o resto que se dane, e a perspectiva da comunidade, dos moradores, que lutam pela qualidade de vida. Nós preferimos ficar com o segundo entendimento.

Canibalismo

Belfort, que estudou no Instituto La-Fayete no Rio, onde certamente foi aluno da notável professora Dirce Cortes Riedel, termina a carta de forma intencionalmente ambígua e por isso mesmo bem lograda e elegante, convidando-me, se não foi um canibal, a visitar a Secretaria para conhecer as suas teses.

Protesto seriamente contra o juízo de valor sobre o canibalismo, que evidencia o desconhecimento de Belfort sobre a questão e reforça a carga de preconceito dominante contra os índios que o praticavam, segundo a literatura dos viajantes.

Montaigne, talvez a maior expressão intelectual do século XVI, escreveu os seus Ensaios, um deles intitulado “Sobre os Canibais”. Para tentar entender a prática do canibalismo, ele manteve, com a ajuda de um intérprete, um diálogo com um tupinambá levado a Paris, em 1550. Fascinado pela organização social indígena, que vivia na prática os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, mais tarde princípios básicos da Revolução Francesa, os europeus estavam, no entanto, horrorizados com a prática do canibalismo.

No século XVI, sem a ajuda da antropologia, era natural a pergunta de Montaigne ao Tupinambá:

- Por que vocês comem os próprios mortos?

Reza a lenda que o índio, perplexo, respondeu com outra pergunta:

- E vocês fazem o que com os seus mortos?

- Nós cavamos sete palmos na terra, colocamos o cadáver em um caixão de madeira, cobrimos de flores e o enterramos solenemente – disse Montaigne.

- Mas os vermes não comem o cadáver? – teria perguntado o Tupinambá.

Diante da resposta afirmativa do filósofo francês, escandalizado o índio exclamou:

- Vocês são bárbaros e selvagens! Como entregam o corpo de um ser querido para ser comido pelos vermes? Nós não. Nós queimamos o cadáver, juntamos as cinzas, misturamos no mingau de banana, comemos e o guardamos aqui no nosso coração.

Antropofagia

A antropofagia foi uma prática ritual de algumas sociedades, com uma lógica própria, uma funcionalidade e até mesmo uma explicação poética dentro das culturas que a praticavam. E não adianta o Belfort dizer:

- É bebé? Se você acha o canibalismo bonito, então mistura o cadáver da tua avó no mingau de banana e come.

As tentativas de compreender o outro e de tolerar a diferença não implicam necessariamente uma adesão a essa prática daqueles que tentam entendê-la. Dessa forma, Montaigne concluiu que quem representava a barbárie era a chamada Santa Inquisição, ao queimar na fogueira pessoas vivas só por discordarem das teses oficiais da Santa Madre Igreja.

Podemos acrescentar que nenhuma sociedade indígena se iguala na barbárie à nossa, que extermina crianças, deixa milhões de pessoas viverem em favelas ou nas ruas, sem atendimento médico, sem água potável e esgoto, morrendo de fome.

De qualquer forma, Ok, Belfort. Aceito o convite. De verdade. Vou à Secretaria para trocar figurinhas, troco algumas histórias sobre as culturas indígenas por dados sobre a mineração. São justamente as diferenças que justificam o diálogo. (Agora, aqui pra nós, a Paranapanema e a Taboca são mesmos nacionais? Por que, então essa conduta de desrespeito à nossa floresta, aos nossos animais e aos rios?).

Valeu Bebel, e não fica chateado com o apelido não. Um abraço deste Pena Fraca, que na medida do possível continuará resistindo.

P.S. -  Ver também:

1. Diferenças culturais: Ok, Bebel das Tabocas? - https://www.taquiprati.com.br/cronica/619-diferencas-culturais-ok-bebel-das-tabocas-

2. A paterna do Bonfim e o vergel de virtudes    https://www.taquiprati.com.br/cronica/617-a-patena-do-bonfim-e-o-vergel-de-virtudes

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