Os trabalhadores amazonenses comemoraram ontem o 1º de maio, concentrando-se na praça São Sebastião. De lá, saíram em passeata pacífica, desceram a avenida Eduardo Ribeiro, percorreram as principais ruas do centro e marcharam às vezes em silêncio tão sepulcral que dava para ouvir o barulho ritmado de suas pisadas.
Quando chegaram à rua da Instalação, encontraram um tapete de flores perfumadas. À medida que o desfile avançava, mulheres operárias de uma fábrica de roupas davam um banho de flores nos manifestantes.
Desta forma, mas com outras palavras escritas na antiga ortografia, o jornal “A Lucta Social” editado em Manaus noticiava as comemorações do Dia do Trabalho, em 1914. Segundo este jornal operário de orientação anarco-sindicalista, as celebrações daquele ano foram comoventes.
“A onda humana proletária caminhou serena pela rua da Instalação, detendo-se em frente da pequena bastilha denominada Fábrica de Roupas Amazonense, onde as operárias d´aquela indústria receberam os seus companheiros de trabalho como outr´ora os cristãos o fizeram a Jesus, cobrindo as ruas com aromáticas flores, que também derramaram sobre as cabeças do operariado”.
Quem formava parte desse operariado? Qual era a sua jornada de trabalho? O que produziam? Como eram remunerados? Em que tipo de moradia habitavam? Quais eram os seus espaços de lazer? Como estavam organizados para lutar por melhores condições de vida e trabalho? Qual era o significado do ritual urbano do Primeiro de Maio para os assalariados do Amazonas no início do século?
Quem eram
As respostas a essas perguntas estão sendo formuladas por uma historiadora amazonense, Deusa Costa, formada pela Universidade do Amazonas e atualmente concluindo o seu curso de Mestrado na PUC de São Paulo. Ela redigiu uma monografia sobre “O Primeiro de Maio em Manaus”, que será apresentada em julho próximo no XVII Simpósio Nacional da ANPUH – Associação Nacional de Professores Universitários de História.
Segundo a pesquisadora, naquele 1º de Maio de 1914 em Manaus, os trabalhadores que ocuparam o centro da cidade, pisando de mansinho sobre as flores para não as machucar, eram marceneiros, sapateiros, alfaiates, operários fabris, funileiros, tipógrafos, caixeiros, carroceiros, boleeiros choferes, estivadores, vendedores ambulantes e outras categorias.
Deus Costa faz um mapeamento do centro da cidade e apresenta uma lista de empresas da época com seus respectivos endereços: fábricas de roupa, de tinta, de cestas e vassouras, marcenarias, alfaiatarias, sapatarias, funilarias, tabacarias, casas de armarinhos, de aviamento e compra e venda de borracha, farmácias, tipografias, barbearias e padarias.
O centro da cidade era, portanto, o espaço onde os trabalhadores passavam a maior parte de seu tempo, numa jornada de trabalho que variava de 10 a 14 horas por dia, prolongando-se sua permanência nesse espaço pela frequentação aos botequins ali existentes.
No entanto, se o centro da cidade era o espaço de trabalho e, na medida do possível, também de lazer, já não era mais o de moradia. A pesquisadora analisa como os trabalhadores foram sendo gradualmente expulsos para a área suburbana, num processo constante e permanente de segregação para a periferia. Meu avô paterno, Raymundo Barbosa, que era marceneiro, teve que se mudar em 1914 para a Colônia Oliveira Machado, com minha avó Filomena grávida, onde nasceu meu pai João Barbosa. O que hoje conhecemos como centro básico ficou destinado às atividades comerciais, edifícios públicos e ainda, residência de um segmento médio da população.
As fontes
Por isso, o ritual de 1º de maio de 1914, com a ocupação das ruas do centro desde a praça São Sebastião até o Teatro Alcazar, tem uma força emblemática destacada pela historiadora. Ela escreve em sua monografia:
“Aliás, ao reconstituir – com base nas informações coletadas nos jornais operários – o percurso da manifestação do 1º de maio em Manaus nas duas primeiras décadas do século XX, é que nos veio a ideia da retomada simbólica por parte dos manifestantes de um espaço do qual muitos já haviam sido expulsos”.
As principais fontes históricas usadas pela pesquisadora são jornais operários redigidos e editados por trabalhadores amazonenses, especialmente “O Gutemberg (1891), O Operário (1892). A Confederação do Trabalho (1909), A Lucta Social (1914) e Vida Operária (1920), destinados a informar e educar a classe trabalhadora. Dessa forma, consultando a própria versão dos excluídos, Deusa Costa procura explorar a história “do ponto de vista do soldado raso e não do grande comandante”.
Mas ela trabalhou ainda outras fontes locais como os relatórios dos governadores do Estado, os documentos do Arquivo e da revista da Associação Comercial do Amazonas (ACA). Muito contribuiu sua intimidade com as fontes citadas, por ela consultadas para um artigo anterior, que publicado neste momento no volume 2 da “Amazônia em Cadernos” – revista do Museu Amazônico da UA, coordenada pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro.
Luto-Luta-Lute
“A transformação dos rituais do operariado” de Eric Hobsbawn e “Os excluídos da História: Operários, Mulheres e Prisioneiros”, de Michelle Perrot são duas referências de historiadores europeus que enriqueceram a monografia, além dos textos de Marilena Chauí (USP) – “A Festa do 1º de Maio” e de Bernardo Kocher (UFF) – “Luto-Luta: o Primeiro de Maio no Rio de Janeiro (1890-1940)”.
Quanto aos pesquisadores locais, Deusa rende um tributo ao texto produzido por Hideraldo Costa, Luis Balkar Pinheiro, Maria Luiza Ugarte e Luiz Bitton intitulado “Fundamentos Históricos para o Estudo da Organização do Espaço Urbano do Centro Histórico de Manaus: 1800-1880”.
A história da celebração do 1º de Maio em Manaus, em processo de construção, constitui uma contribuição acadêmica relevante pelas questões teóricas suscitadas, além dos subsídios que traz para a luta atual dos trabalhadores amazonenses, que precisam recuperar a memória dos combates travados para tomar o destino em suas próprias mãos.
Quem sabe, aí então as flores de maio voltarão a chover na rua da Instalação!
P.S. – PARA DIZER QUE FALEI DE FLORES. - Aos leitores habituados com outro tipo de tema e de linguagem desta coluna, pediumos licença, hoje para esta singela homenagem no Dia do Trabalhador àqueles que vêm construindo anonimamente o Amazonas com muito sacrifício. A Deusa Costa, agradecemos a carona na monografia que vai ser apresentada no Simpósio Nacional da ANPUH.