Parece até conto de fadas. Pelo menos, o início da história. Ele nasceu num castelo, na Itália, em 8 de dezembro de 1852. Era conde, jovem, rico, aventureiro, viajou para o Amazonas, onde viveu mais de 43 anos. Com recursos próprios, percorreu florestas, rios e igarapés, aprendeu a falar o nheengatu e se apaixonou pelas histórias que os índios contavam. Coletou e registrou mitos. No final, contraiu lepra. Com o corpo deformado pelas chagas, foi enxotado de hotéis, de pensões e até mesmo de hospitais. Morreu, solitário e pobre, na periferia de Manaus, num casebre improvisado em leprosário.
O conde Ermanno Stradelli foi enterrado no cemitério de Paricatuba, no dia 24 de março de 1926. Sua vida daria uma mini-série global. Aliás, já deu um belo documentário - “Il figlio del serpente incantato”, dirigido pelo jornalista italiano Andrea Palladino, que vasculhou os lugares da memória do Conde na Itália e no Amazonas, onde entrevistou muita gente boa, incluindo Narciso Lobo, homenageado na IV Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, que encerrou ontem em Manaus.
- “Já consegui editar 80% do documentário. Até dezembro a versão final deve estar pronta. Foi um filme muito difícil, não queria fazer algo apenas didático, mas usar o tempero da vida e da emoção” – me conta Andrea. Ele mostrou a primeira versão, no ano passado, ao Narciso Lobo, que aprovou o estilo e adorou o que viu. A ele, Narciso, falecido recentemente, o documentário é dedicado.
Em busca do Conde
Quem começou a se interessar pela vida do conde Stradelli foi Câmara Cascudo, em 1930, quando viu três cadernos volumosos com milhares de verbetes escritos à mão. Era o dicionário Nheengatu-Português, Português-Nheengatu. Impressionado com a obra e com a vida trágica do autor, Cascudo decidiu correr atrás de mais dados.
Acontece que o Amazonas tem memória fraca, não cuida dela, apaga tudo, como um criminoso competente, que não deixa impressões digitais e nem qualquer vestígio daquilo que fez. Numa carta ao então governador do Amazonas, Álvaro Maia, Câmara Cascudo se queixa da cortina de silêncio e da inexistência de documentos. Sobre o seu biografado, ele encontrou apenas dois artigos mixurucas publicados, um no Diário Oficial do Amazonas, e outro em O Jornal de Manaus, além de breves notas em quatro livros.
“Quase nada se sabia dele. Morrera em 1926 e seu nome se diluíra na sombra, como uma inutilidade. Raras citações. Raríssimos informadores. Percentagem altíssima em erros, enganos, omissões” - escreve Cascudo, que pesquisou a vida do Conde. Não encontrando documentos fidedignos, resolveu criá-los. Escreveu oitenta cartas a familiares e amigos de Stradelli: professores, jornalistas, viajantes, padres, bispos, embaixadores.
Muita gente respondeu com depoimentos, entre os quais o do padre jesuíta Alfonso Stradelli, o caçula, que lembra as cartas mensais enviadas pelo irmão mais velho à sua mãe, com notícias detalhadas das viagens pela Amazônia e histórias contadas pelos índios. Embora o arquivo particular da família não tivesse sido consultado, o material coletado permitiu traçar um perfil do personagem.
A infância de Stradelli no castelo de Borgotaro – residência senhorial da família, os estudos na Universidade de Pisa, os primeiros versos, o encantamento com os índios, as rotas e a cronologia das viagens pelos rios da Amazônia – tudo isso ganha contorno mais nítido no livro de Cascudo.
Concluída a biografia, seu autor convenceu o Governo do Estado do Amazonas a editá-la em 1936, com o sugestivo título – Em Memória de Stradelli. Esse livro teve o cuidado de revelar como é que o Conde fazia quando queria conhecer algum aspecto da vida da Amazônia: o trabalho de campo. Ele mergulhava na realidade e ia ver de perto, conversar com as pessoas, anotando e fotografando tudo.
Trabalho de campo
Décadas antes de Malinowski sistematizar suas reflexões sobre a observação participante, Stradelli intuiu que o pesquisador decidido a conhecer uma sociedade que lhe é estranha, devia partir do interior dela, impregnando-se da mentalidade de seus integrantes e esforçando-se para pensar na língua deles. Para entender um ritual onde rolava o caxiri, Stradelli deixou que os índios pintassem o seu corpo e dançou convictamente com eles na maloca de Miriti-Cachoeira, “bebendo repetidas cuias de capy entontecedor”.
Essa adaptação, completa e absorvente, à vida dos índios, lhe permitiu coletar rico material de pesquisa. Entrava nas aldeias com sua farmácia portátil, equipamentos topográficos, caixas para recolher material ornitológico e entomológico, máquinas fotográficas, microscópios e outros aparelhos que, inicialmente, assustavam os índios. Ele, então, levava cada um deles para ver os instrumentos, tocar neles e verificar como funcionavam. Dessa forma, o tuxaua Mandu descobriu que “a máquina fotográfica servia também para matar formigas”, quando viu os ácidos fixadores caídos em cima de um formigueiro agirem como um poderoso formicida.
Stradelli aprendeu as línguas indigenas e viveu com os Tukano e Tariana, observando e registrando suas tradições. Realizou em 1882 viagens com a Comissão Brasileira de Limites com a Venezuela e auxiliou o botânico Barbosa Rodrigues na organização do Museu Botânico de Manaus em 1883, acompanhando-o no primeiro contato pacífico realizado em 1884 com os Waimiri-Atroari, na época conhecidos como Crichanás ou Jauaperis. Com eles comeu paca moqueada, beiju, quinhapira e “molhou os lábios no molho estonteante das pimentas”.
O resultado foi a publicação de textos dispersos por jornais e revistas especializadas da Itália e do Brasil, um poema sobre Ajuricaba, um vocabulário em língua Tukano, o dicionário clássico de Nheengatu, mapas geográficos do Amazonas, e versões variadas de mitos indígenas. Stradelli revelou que Jurupari era um herói civilizador, criador dos usos, leis e preceitos transmitidos pela tradição oral, retirando dele a imagem do diabo criada por missionários.
Com o documentarista Andréa Paladdino, no ano passado, visitei o Colégio Romano, onde Stradelli deu palestras sobre o Amazonas em 1901. Consultamos ainda na Sociedade Geográfica Italiana, em Roma, escritos e fotos de autoria de Stradelli. Numa delas, com a legenda feita pelo Conde – Como se acende um fósforo – aparece Barbosa Rodrigues, vestido de paletó e gravata, no meio do mato, entre os índios Waimiri. O filho da cobra encantada tinha muito humor. Esperamos que documentário sobre ele possa ser exibido na V Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, no próximo ano, organizado pela Selda Valle.
P.S. - Freire, José R. Bessa: Em memória de Stradelli. In Marcos Silva (org) - Dicionário Critico Câmara Cascudo. São Paulo, Perspectiva/USP e Natal EDUFRN. 2003. pp188-192