.Nasceu em Manaus, numa casa pobre da rua Nhamundá, na Praça XIV, o quinto filho de Haroldo e Inácia. Todo mundo ficou preocupado: o menino tinha os olhos fechados como um filhotinho de cachorro. Não via nada. Será que é cego? Pensaram até em operá-lo. Mas uma velhinha sábia ensinou um remédio caseiro: pingo de leite materno derramado diariamente sobre os olhos.
Santo remédio. Foi pá, casca! O menino arregalou os olhos e começou a ver o mundo, para nossa felicidade, porque tudo o que ele viu, ouviu, cheirou, tocou nesses 68 anos que passaram, sua memória registrou.
Criado na década de 30 no Alto de Nazaré, onde morava em um barraco de folhas de zinco, sua memória acústica, olfativa, tátil, gustativa e visual foi gravando e fotografando: os cheiros, os sons, as cores, os saberes, a pele e as paisagens de Manaus. Sim, Manaus tem pele,
Ele ainda hoje guarda os sons da cidade: o dlem-dlem dos bondes elétricos, o apito triste do guarda noturno, o bimbalhar das sinetas dos carros coletores de lixo, o ruído das vassouras de cipó varrendo ruas e calçadas, a sirene da usina de luz do Plano Inclinado, o sino da Matriz badalando ao meio dia, quando então as crianças paravam e pediam a benção dos pais e das pessoas idosas mais próximas.
O menino gravou ainda o martelo retinindo nos postes de ferro, os navios apitando no porto e os poucos carros buzinando durante as festas de Natal. Não escapou nem os berros da plateia do Cine Guarany.
Os odores de Manaus: ah, cidade cheirosa! As ruas de Manaus guardavam o aroma de mari-mari e de manga, abundantes de novembro a janeiro. O perfume de suas madrugadas invadia as casas pelas janelas que dormiam abertas. Os barcos do Careiro e do Cambixe vinham carregados de enormes buquês de angélicas usados nas cerimônias de casamento. O Royal Briar era um “estrato” - assim eram conhecidos os perfumes – vendido em pequenas doses na entrada das festas populares.
As frutas regionais, as ingás suculentas compradas em Flores no final da linha do bonde, o sabor do peixe e da pimenta murupi, a gengibirra e o aluá servidos nos aniversários foram alguns dos sabores que ficaram encravados na lembrança do menino, cujo corpo sentiu as águas frias do igarapé do Quarenta e o sol do Parque Dez, mostrando que a memória tátil também é perene.
A Manaus que se foi, que já era, com seus arraiais e festas populares, as normalistas vestidas de azul e branco, fazendo footing em bandos em paquera pela av. Eduardo Ribeiro, as brincadeiras de crianças nas ruas – cantigas de roda, camoniboi, 31 alerta, papagaio empinado – descai linha, galinha, flecha, medroso, que teu pai é perigoso – o cão do Luso, as pessoas se cumprimentando ou conversando sentadas em cadeiras nas calçadas, tudo isso foi registrado pelo menino.
O menino cresceu, mas não esqueceu. Teve intensa vida política: foi deputado estadual, secretário de governo, presidente da Assembleia Legislativa, deputado federal e governador em exercício várias vezes. Honrado, hoje continua remediado de grana, como eu e você, leitor (a), mas rico de sentimentos, emoções e ideias.
Arlindo Augusto dos Santos Porto – o nosso Arlindo Porto – depois de ver tudo com os olhos abertos pelo leite materno, escreveu “O Regatão da Saudade”. O motor desse regatão é o coração. Seu combustível, a palavra literariamente bem trabalhada. Lendo o livro neste fim de semana, pensei no poema de João Cabral:
- O passado é o que não passou do que lhe passou.
Parece que essa Manaus não se foi de todo, porque Arlindo – um sujeito pai d´égua – não deixa que ela se vá. Você irá gostar de ler o livro dele, que pode ser adquirido pelo telefone 238-3203.