O nome do bairro é uma homenagem à Nossa Senhora de Aparecida, aquela mesma que numa demonstração de intolerância religiosa, foi chutada num programa de TV pelo imbecil do “bispo” Von Helder. Imbecil, beócio ou nefelibata? Por que escolheu para chutar logo a “pretinha” padroeira do Brasil? Por que não escolheu – o que seria também grave - Nossa Senhora de Lourdes, loura e de olhos azuis? O “bispo” deve ser, além disso, racista. Ele não chutou uma imagem. Chutou um símbolo. Chutou a todos nós.
O chute deu mais força para o bairro comemorar, na semana passada, a festa de sua padroeira, que lhe deu o nome, que antes era bairro dos Tocos. Eu escrevi bairro e já me arrependi. Aparecida é muito mais do que um bairro. É uma tribo que não foi ainda exterminada, apesar das miçangas, espelhinhos, doenças e bugigangas trazidos pela Zona Franca de Manaus.
Por essa razão, a minha amiga Freida Bittencourt, filósofa, costuma dizer com muita propriedade: “O bairro de Aparecida é um caso antropológico”: ninguém entende o que acontece ali se não usar o modelo de estrutura de parentesco do Lévi-Strauss”. Parece que ela tem razão.
Durante algumas décadas, os casamentos eram endogâmicos. Os moradores do bairro só podiam namorar e casar entre si. Ninguém de fora podia entrar. Os forasteiros que violavam esta regra básica recebiam severas sanções. Eu mesmo vi muito “bucheiro” do bairro de São Raimundo levar surras homéricas pela ousadia de atravessar o igarapé para vir buscar namorada do lado de cá. Tá pensando o quê? Aparecida não é lata de graxa para qualquer um meter o dedo e se lambuzar.
Os guerreiros adolescentes da tribo de Aparecida faziam periodicamente incursões predatórias em outros arraiais. Os alvos prediletos eram os inimigos mortais: os “bucheiros”. Deus sabia o que estava fazendo quando dividiu os dois bairros, cortando-os com um igarapé. Às vezes, na época das quermesses em outros bairros, as hordas invadiam também a Matinha e o Educandos.
Internamente, os integrantes dos diversos clãs viviam brigando entre si, é verdade. A turma da Bandeira Branca tinha suas broncas com o pessoal do Plano Inclinado, onde ficava a fábrica de cerveja XPTO. E vice-versa. Mas bastava alguém de fora encrencar ou “frescar” e todo mundo se unia contra o inimigo comum.
A solidariedade era um valor máximo cultivado pelos integrantes da tribo de Aparecida, regulada por três obrigações: dar, receber e retribuir. Era assim que se praticava a reciprocidade, oposta à troca mercantil. Uns ajudavam os outros. Quem hoje tinha pouco, dividia com quem nada tinha. A política de boa vizinhança funcionava e dava coesão ao grupo:
- Vai lá na casa da dona Vera Margarida e pergunta se ela pode me emprestar um pouco de azeite e dois dentes de alho.
O contato da tribo com a sociedade envolvente trouxe, com a Zona Franca, mudanças nos hábitos culturais e no comportamento dos moradores de Aparecida. Surgiu até uma Escola de Samba. Mas não conseguiu romper com a força dessa identidade. Ainda hoje, mesmo os que estão já fora do bairro, quando se encontram, trocam um olhar cúmplice. A gente se conhece. Os amáveis “bucheiros” e a galera do Educandos que nos perdoem.
Já faz algum tempo, embarcava eu de Manaus para o Rio com mais de 40 quilos de excesso de bagagem. No balcão da companhia de aviação, o funcionário que me atendeu foi o Geraldo “Cegueta”, com seus óculos de fundo de garrafa, a quem eu não via há séculos. Ele me reconheceu e quebrou meu galho. Aí, eu fiquei muito feliz de ter nascido no beco mais estreito do bairro, tenho como vizinhas a Leonor, a Luzia, o Aguimar, a dona Vera Margarida, a família Paixão e tantas outras.
Acabei me dispersando. Eu já havia começado a escrever um texto sobre a Revista da Associação Médica do Amazonas, que me foi enviada por Maria Alice dos Santos Tetenge, bibliotecária responsável pelo Setor de Periódicos da biblioteca setorial da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Amazonas. Ela é filha da dona Alice, professora aposentada do Cônego Azevedo e moradora há mais de 52 anos no bairro de Aparecida. É tudo da mesma tribo. Eu não falei?
P.S. O conhecido radialista esportivo Jefferson de Souza completa hoje 60 anos. O Silvio Márcio Alencar, filho da Teca e funcionário da UA completa 26 anos e aproveita para ficar noivo com a filha do Roberval, lá do Plano Inclinado. Viva a Endogamia.