.Enviado por fax de Lima, Peru:
- Tu conoces al concejal Pracheano Feitoça?
Depois de 25 anos, eis-me de volta ao Peru, que acolheu tantos exilados brasileiros na década de 1970. Aqui encontramos uma segunda pátria e, às vezes, até uma família, como foi o meu caso. Por isso, compareço ao aniversário da sogra. Os parentes todos reunidos para o ritual do almoço. O primo Pancho, muito mais gordo e com uma calvície acentuada, me recebe na porta da casa, fazendo-me esta pergunta inusitada. Respondo no meu portunhol arretado:
- No. No conozco ningun Pracheano Feitoça. ¿Por que habría de conocerlo?
- Porque Pracheano Feitoça es un concejal de Manaus. Con-ce-jal de la ciudad en donde naciste, tu me entiendes? - diz Pancho, soletrando a palabra, que significa vereador.
Carinhoso e gentil, para tentar puxar papo comigo a quem não via há mais de vinte anos, ele me exibe o jornal “El Comércio” com notícia sobre o Amazonas.
Leio a nota que se espalhou pelo mundo inteiro, impressa aqui com alguns erros. Na verdade, o texto fundiu duas pessoas em uma só: Praciano, ex-vereador e Leonel Feitoza em pleno mandato. Ambos estão protestando contra o governo estadual, que vai pagar mais de 800 mil dólares de cachê ao tenor espanhol José Carreras, numa terra “onde crianças morrem na porta do hospital por falta de médicos e equipamentos”.
Rocoto relleno
Acendo um cigarro. Minto: não acendo. Deixei de fumar há dois anos. No entanto, o momento exige uma tragada. Com um cigarro fictício, solto fumaça de mentirinha pelo nariz e esclareço a confusão. Explico quem é Praciano e sua participação na luta contra a bandidagem dos ressarcimentos médicos. Sobre Leonel, ex-ressarcido arrependido e agora opositor corajoso e lúcido, digo no meu mais perfeito portunhol:
- Sí, sí, como no! Por supuesto! Conozco Feitoça. Su madre, doña Maria do Carmo toca piano en la iglesia de mi Parróquia de Aparecida, en donde canta mi mama, doña Eliça. Mi hermano Tuta y el hijo de Tuta son muy amigos de Feitoça, tu me entiendes?
Certos falantes de español como lingua materna, quando conversam com braileiros, teimam em terminar todas as frases com a expressão “tu me entendes?”, que corresponde ao cacoete brasileiro “você compreendeu”. Incomoda um pouco. Parece que o interlocutor acha que a gente é burro e comeu caroço de tucumã. Por isso, sempre que posso, dou o troco, você compreendeu?
A conversa toda gira em torno da remuneração ao trabalho de artistas. Héctor, marido de uma prima, comenta que dois espanhóis – Júlio Iglesias e José Carreras – descobriram, em pleno séc. XX, aquilo que seus compatriotas Orellana e Lope de Aguirre buscaram no sec. XVI inutilmente e com tanta avidez: o El Dorado.
- Por apenas uma noite, 400 mil dólares para Julio Iglesias e 800 mil dólares para Carreras, o Amazonas é mesmo uma mina de ouro – diz Hector com ironia.
Enquanto a conversa rola, o almoço é servido. A culinária peruana é imbatível. O prato principal é “rocoto relleno”. O rocoto é uma pimenta braba, corrosiva, mortal, do tamanho de um pimentão. Usa-se luvas para prepara-lo, porque a parte tocada em sua semente, fica imediatamente inflamada. Podia ser usado em guerra química ou como spray de pimenta para acabar com as manifestações de rua. Recheado com carne moída e levado ao forno é um prato saboroso.
Sin embargo, quem o come, cospe fogo. Recomenda-se acompanhar cada bocado com goles de cerveja super-gelada. No dia seguinte, a sua saída é dolorosa. Ele não apenas arde. Queima. Quem come rocoto, encontra o capiroto. Daí talvez a origem do ditado muito usado no Amazonas, quando se designa algo insuportável:
- Não tem fiofó de peruano que aguente.
- Así no hay culo de brasileño que aguante, tu me entiendes? – comenta o primo Pancho, retomando o tema do pagamento do cachê aos dois artistas espanhóis, enquanto todos comemos a sobremesa, um delicioso “turrón de doña Pepa” acompanhado de “helado de lucuma”. Ele acrescenta que na hora de pagar a conta, o povo sofrerá ainda mais.
Pátria de otários
Confesso que estou envergonhado. A família da minha sogra me olha como se eu pertencesse a uma comunidade de otários, que passa fome, mas paga o uísque e o caviar para quem não precisa. Defendo-me a mim, a ti leitor (a) e a nossa identidade coletiva. Concordo que tem babaca em Manaus, como, aliás, em todo lugar. Mas temos também oposição séria, crítica que “botcha no tchoco”.
Uma tia limenha, neoliberal, se mete na conversa. Apela para as leis do mercado. Ela quer saber porque o Governo não incentiva os artistas locais. Explico:
- Amaçonino, el gobernador, no sabe lo que es cultura, usted me entiende?
Ela entendeu muito bem com as informações adicionais que lhe dei. Amazonino despreza a cultura popular, não conhece a cultura erudita e crê – veja só! – que gostar de Julio Iglesias é prova de refinamento. Amazonino falou publicamente, com desdém, do Carrapeta, crente que estava abafando, como se ele, Amazonino, fosse muito cultivado, refinado e o Carrapeta uma porcaria.
Francamente, o Amazonino não chega nem aos pés do Carrapeta. Qual é a arte erudita e clássica que o Amazonino conhece? O que é que ele manja de cultura popular? Quais os museus que visitou em sua infância em Eirunepé e depois em Manaus? Quando assistiu operas? Qual o seu balé preferido? Qual o escritor que mais admira?
De gosto nada exigente, Amazonino ouviu “Granada”, “Sole Mio” e “Santa Lutia” e achou que era o suprassumo da sofisticação. Para ele, uma flor de plástico comprada no Sucatão é melhor que uma rosa colhida num jardim, porque a primeira é lavável e dura mais. Pode ser que em privado, ele aceite tudo aquilo que nega em público. Talvez enquanto toma banho, ele cantarola as músicas do Carrapeta:
- Hoje sinto, saudades dos meus amooooores. Maria da Penha, Maria da Glória, Maria das Dores. Todas três, Maria todas três, queriam gostar de mim, estou contrariado pois o meu passado foi muito ruim”.
Sem falar no “liri-lirau” das irmãs Feitosa, tias do Leonel. O Amazonino – coitado – nunca ouviu a Dagmar, Cleomar e Lucimar cantando “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim”. Não sabe o que perdeu. Elas davam um banho na Dalva de Oliveira. Nos piqueniques de Aparecida, as três entoavam juntas:
- Kalu!
A Cleomar entrava sozinha em outro tom:
- Liri-lirau!
As três repetiam: - Kalu!
A Cleomar gorjeava: - Liri-lirau.
E ai as três juntas: – “Tira o verde desses óio de riba d’eu”
Passa a mão aqui no meu braço, leitora. Olha só como eu fico arrepiadinho toda vez que me lembro do liri-lirau das Feitosa.
Sei não. Mas acho que aqueles empresários sérios, honestos e inteligentes do Distrito Industrial com certeza não darão um centavo para financiar orgias narcisistas do governador inculto. Por que não apoiar com essa grana o nosso Coral João Gomes Júnior, idealizado pelo Maestro Nivaldo Santiago? Quais os critérios usados para a aplicação dos recursos públicos? Não vale “justificar” dizendo que a grana é do setor privado (arrancada frequentemente através de métodos pouco ortodoxos). É preciso formular uma política cultural que incentive os grupos locai e que traga de fora aquilo que merece ser visto, após ampla discussão pública.
Depois da conversa durante o almoço, os parentes me convidaram para ver os “carnavalitos” de Puno, que se apresentam na Associação Cultural Brisas del Titicaca. Vendo as danças andinas tão graciosas, acompanhadas de guitarras, charango, bumbo, quena e outras flautas, pensei com meus botões:
- Amazonino es el fin de la picada, tu me entiendes?