Cerca de 200 estudantes do Projeto Rondon, procedentes de diferentes regiões do Brasil, chegaram a Manaus na semana passada, acompanhados de alguns professores. Vieram conhecer o Amazonas e queriam saber o que significa ser amazonense. O governador do Estado, Eduardo Braga (PMDB – vixe, vixe!), escalou o Secretário de Educação, Gedeão Timóteo Amorim, para representá-lo em uma palestra aos jovens rondonistas.
O governador parecia bem representado. Gedeão é o nome bíblico do tocador de trombetas, que cruzou o rio Jordão e venceu os madianitas. O nosso Gedeão, cearense de Icó, vive aqui há 40 anos tocando trombetas. Não se intimidou com o auditório entucupigaitado da Universidade do Estado do Amazonas, ou seja, lotado até o tucupi. Fez pose de secretário e iniciou sua conferência com toques regionais: bacaba prá lá, açaí praqui, tucumã prali, tacacá acolá, xis-caboquinho, lesco-lesco, coisa-e-tal e pererê-pão-duro. Lá pelas tantas, diante do espanto da platéia, ele trombeteou:
- “Em geral, quem não conhece a Amazônia, tem uma idéia errada de nós. Vocês chegaram aqui, pensando que iam encontrar só índios? Isso é um equívoco. Aqui também tem gente bonita”.
Pai d’égua! Ironicamente, detrás do palestrante, um enorme painel anunciava a frase que é, hoje, propaganda do governo do Estado: “Orgulho de ser amazonense”. Que forma mais curiosa de cultivar o orgulho de ter uma identidade que se desconhece e que se despreza!
O Secretário de Estado de Educação, na realidade, demonstra aqui a sua “ignorância de ser amazonense” ou a “vergonha de ser amazonense”. De um lado, revela uma cegueira, que o torna incapaz de ver a beleza indígena; de outro, estrangula o índio que convive com o nordestino dentro de cada amazonense, formando o caboco que é - como disse Dalcídio Jurandir - um ‘índio sutil’. Se o índio é feio, então o caboco é horrível e, nesse caso, o amazonense é horrípilante. Quem, afinal, é bonito?
O Secretário de Educação, Gedeão Timóteo Amorim, tem a resposta. Envenenado pela mídia – ele não é o único – internalizou, sem qualquer espírito crítico, o padrão de beleza difundido pelos anúncios de xampu e sabonete, que apresentam aquelas louras, de olhos azuis e cabelos sedosos, como modelo único do que é belo. Dessa forma, ele, que nasceu em Icó, no Ceará, discrimina a boniteza, a graça e o encanto das nossas caboquinhas.
Cablocitude
Convivi com o Gedeão desde os tempos do velho ICHL, onde ele foi um aluno que se destacou. Hoje, forma parte daquele nicho de competência e de honestidade, que ainda sobrevive no atual governo, junto com os dirigentes da UEA, da FAPEAM e da Secretaria de Ciência e Tecnologia. Sua gestão representa um avanço em relação a sua antecessora, Vera Edwards. Por isso, sua atitude surpreende e choca, afinal ele não é um berinho qualquer.
A verdade é que ele escorregou na maionese e nos deve desculpas. Cometeu uma frase infeliz, semelhante à declaração do primeiro ministro francês, Raymond Barre, quando em 1980 uma bomba explodiu numa sinagoga no norte de Paris, matando várias pessoas que estavam lá dentro e outras que passavam na rua:
– “Morreram vários judeus e alguns inocentes” – disse o ministro, assim, espontaneamente, como o Gedeão.
Naquela ocasião, o filósofo Alain Badiou criticou o anti-semitismo do ministro, mostrando como a palavra ‘judeu’ esconde toda a diversidade histórica, pessoal, e do grupo de pessoas que são chamadas por este nome. O mesmo pode ser dito sobre a palavra ‘índio’ na fala de Gedeão. Está indiscutivelmente implícito que, para eles, todo judeu é sempre culpado, da mesma forma que todo índio é sempre feio.
Esse tipo de nomeação preconceituosa serve para desagregar, excluir e justificar genocídios e outras formas de violência. “A estratégia de nomear facilita a dominação” – diz Badiou, para quem combater essas nomeações significa defender a democracia, o pluralismo, a diversidade.
O movimento indígena protestou através de suas organizações, estranhando o preconceito. Afinal, se trata da maior autoridade educativa do Amazonas. Com esse cérebro assim lavado, como é que ele pode implementar aqui a Lei 11.645, que introduz a temática indígena nos currículos do sistema nacional de educação escolar? Em Belém, no Fórum Social, os líderes indígenas exigiram uma retratação e um pedido de desculpas, que até agora não foram formulados.
My friend
O discurso de Gedeão Timóteo Amorim adquiriu sentido quando, logo depois, na abertura do ano letivo da rede estadual de ensino, o vice-governador Omar Abdel Aziz anunciou a contratação de uma empresa norte-americana para gerir as escolas estaduais do Amazonas. A contratação foi também anunciada no dia 2 de fevereiro, na Assembléia Legislativa, pelo governador Edward Breigga, sobrinho – vocês se lembram? – do John Breigga.
Aí tem truta! O resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) classificou os estudantes do Amazonas em último lugar, entre os alunos de todo o Brasil. Na prova objetiva, a média de 39 pontos foi a pior do país. Gedeão declarou que o ENEM não deve ser tomado como parâmetro para avaliar a qualidade do ensino.
Agora, o governo contrata os gringos, segundo Omar Aziz, com o objetivo de melhorar a qualidade do ensino e de buscar soluções para a evasão escolar, uma vez que uma parte significativa dos 540 mil alunos matriculados no início do ano letivo pode se pirulitar.
– Já que não existe competência local, vocês podem equacionar o problema? – perguntou Gedeão aos gringos. Eles responderam: Yes,Gedeão, we can.
Através dessa medida, o destino da educação no Amazonas fica depositado nas mãos dos americanos, que provavelmente serão bem pagos. Não há transparência na forma de pagamento, mas desde logo, a massa crítica local não serve. Temos, portanto, motivos de sobra para dizer, com Edward Breigga, ‘I’m proud of being amazonian’. Gedeão, abre o olho, te cuida, my friend.
P.S. – Vocês se lembram do meu sobrinho Alex Batista do Nascimento, o Rapa-Côco? Pois é, ele agora está trabalhando na Fazendinha, na Compensa II, produzindo yoghurt, queijo e suco. Foi promovido a porteiro, depois de atuar como auxiliar de serviços gerais. Recebeu elogios do diretor e de dona Romérica Lima, do Departamento de Recursos Humanos. Longa vida ao Rapa-Côco, esse sim, dá orgulho de ser amazonense.