Parece título de filme japonês – Os sete samurais - dirigido por Akira Kurosawa. Mas aconteceu em Manaus. Os atores são sete cabocos, que foram jantar no restaurante Suzuran, no bairro de Adrianópolis, sábado à noite, 10 de janeiro de 2004. O maître Oliveira, sempre solícito, ofereceu ao grupo uma mesa de canto, na ala dos fumantes. No exato momento em que eles se sentam, o relógio da Matriz, lá longe, no final da avenida Eduardo Ribeiro, anuncia as horas, batendo sonoras badaladas: blém, blém, blém, blém..
- Égua! Pera lá! Não pode ser! O relógio da Matriz escangalhou, quando o bonde Circular-Cachoerinha ainda andava pela cidade - me interrompe o coerente leitor.
Eu sei, coerente leitor, eu sei. No entanto, o que vou te contar envolve personagens badalativos. Estás vendo aquele narigudão alí? É o vice-governador Omar Aziz. As duas pessoas sentadas ao lado dele têm poder para decidir o que vai ser publicado no dia seguinte, pelo menos em um importante jornal de Manaus. O jantar, portanto, requer, exige e implora um cenário com badaladas de relógio. Sem elas, o relato do fato soa falso. Por incrível que pareça, são essas badaladas fictícias que tornam verossímil o jantar, que efetivamente aconteceu.
Aqui, fazemos um parêntese para uma digressão filosófica. Não é a primeira vez, nem a última, que a fantasia de um autor imprime realismo ao relato de um fato, enfeitando e enriquecendo sua narrativa. Usa, então, tua imaginação, dileto leitor, e ouve as seis badaladas restantes por ti interrompidas: blém, blém, blém, blém, blém, blém....
O JANTAR
São dez horas da noite. O jantar começou com uma conversa reservada. A voz do vice-governador era um discreto sussurro, como se estivesse conspirando, com medo de ser ouvido. Conseguimos gravá-la, graças a um microfone hipersensível, escondido no bolso do garçom do Suzuran, que nos enviou as fitas.
No entanto, depois de beber umas e outras, Omar e seus amigos começaram a soltar a língua, a berrar, a dar gargalhadas, ignorando olimpicamente a presença, na mesa vizinha, na ala dos não-fumantes, de três leitores do Taquiprati. Um deles era o famoso repórter Tambaqui, acompanhado do Páo Molhado, que anotou tudo o que ouviu em guardanapos de papel, enviando relatório circunstanciado para essa coluna.
Como explicar mudança tão brusca de comportamento? Pesquisas feitas por cientistas da Universidade de Urucurituba e confirmada pela Universidade de Stanford comprovam que os pobres falam baixinho, enquanto os ricos bradam de forma retumbante. Por isso, a fala inicial do Omar era discreta, refletindo sua origem humilde, de menino pobre do bairro de Aparecida, viciado em tacacá e nos croquetes da Dona Alvina. No entanto, ele hoje é um novo rico, que toma uísque e fala alto, esquecendo que um dia foi dependente químico das bananinhas fritas espetadas no palitinho, que a nega Idalina vendia em sua banca da Praça XIV.
Mas afinal de contas, qual era o tema central da conversa no restaurante? Omar, na realidade, estabelecia regras e normas para a mídia, ali representada, definindo como os candidatos a prefeito de Manaus deviam ser tratados. Foram ditas coisas muito cabeludas sobre a classe política baré. Naquela hora, as orelhas do Alfredo Nascimento certamente estavam em brasa, ardendo, pegando fogo.
Antes de entrar em detalhes escabrosos, quero formular uma questão de ordem ética. Pode um jornalista gravar conversas, sem que as pessoas envolvidas saibam que foram grampeadas? Se isso é eticamente admissível, então eu revelo tudo o que o repórter Tambaqui ouviu e o Pão Molhado anotou. Em caso contrário, me calo. Quero discutir isso contigo, leitor.
O DIA DA MÃE
Na nossa profissão, igual que em muitas outras, não é fácil determinar os limites daquilo que é correto e daquilo que é errado. Para ilustrar o que digo, narro um fato, onde o papel de “bandido” foi desempenhado por esse que aqui vos fala. Isso mesmo. Cometi um crime. Por isso, desvio o foco do Omar Aziz para minha humilde pessoa.
Corria o ano de 1969. Os três primeiros profissionais com diploma de jornalista chegam a Manaus: Domingos Demasi e Flávio Farias vão fazer “A Notícia”, do Andrade Neto, e o papai aqui é convidado pelo saudoso Umberto Calderaro para a reportagem de “A Crítica”, chefiada então por um paulista, o Luiz Salgado Ribeiro, que acabara de chegar de Pindamonhangaba e por isso recebera o apelido de Pinda. .
Não lembro se o Pinda tinha diploma, mas sei que era um bom jornalista. No
mês de abril, com o patrocínio da Fábrica Papaguara, que produzia biscoitos, bolachas, macarrão e afins, ele criou um concurso de redação, destinado a alunos das escolas de Manaus. O melhor texto sobre a mãe seria publicado pelo jornal “A Crítica”, no Dia das Mães, e seu autor ganharia uma nota preta, equivalente hoje a 2.000 reais, além de uma cesta básica mensal durante um ano, fornecida pela Papaguara. Quer dizer, o vencedor do concurso iria poder se entupir de macarrão durante um ano, até o itu fazer bico.
A grana do prêmio era um excelente atrativo. Durante todo o mês de abril, centenas de cartas inundavam diariamente a redação do jornal, procedentes de todos os colégios e grupos escolares da cidade. No final, havia mais de duas mil cartas concorrentes, arrumadas em grandes caixas de papelão. Cabia agora decidir qual delas continha o melhor texto sobre a mãe.
Quem era a comissão julgadora? O Pinda era casado com uma pedagoga, recém-chegada de São Paulo, que estava grávida do primeiro filho, e não havia ainda se enturmado na cidade, não tinha amigos, nem trabalho, não conhecia ninguém, não podia ser acusada de estar protegendo um concorrente em detrimento de outros. Era a pessoa ideal para avaliar os textos com objetividade.
Na semana que antecedeu a escolha, ela vinha diariamente ao jornal e passava dez horas lendo cartas, separando, selecionando. No sábado, véspera do dia das mães, faltava ainda uma caixa, quando a mulher do Pinda começou a sentir as dores do parto. Foi para a maternidade, deixando o concurso sob minha responsabilidade. O Pinda me pediu:
- Minha mulher já selecionou os dez melhores textos. Agora, você escolhe, entre eles, o vencedor. Depois, redige a notícia e convoca o aluno para ir amanhã pegar o cheque lá na Fábrica Papaguara, se possível acompanhado de sua mãe e de seu professor de português.
Os dez textos selecionados estavam bem escritos. Seus autores, como era de se esperar, eram alunos de colégios caros: Dom Bosco, Auxiliadora, Dorotéia.... Um deles, eu conhecia, havia sido meu aluno no Instituto Christus do Amazonas. Vários pertenciam a famílias tradicionais de Manaus, alguns tinham sobrenome de rua, todos moravam em bairros ricos. Decidi, então, fazer justiça com as próprias mãos.
Procurei na caixa de papelão um envelope, cujo remetente residisse em bairro pobre. Encontrei o de uma moradora na Baixa da Égua, uma menina, não lembro bem o seu nome, se era Vanderlise ou Vanderluce. Estudava num grupo escolar lá no Educandos. O texto dela não dizia coisa com coisa. Fiz, então, uma nova redação, caprichada, atribuindo a autoria a ela. Proclamei-a vencedora, convocando-a para ir buscar o cheque no dia seguinte na Papaguara. Tive o cuidado de incinerar todas as cartas, para não deixar provas do crime.
No dia seguinte, Vanderlise foi buscar o cheque, acompanhada de sua mãe, ambas subnutridas, vestidas humildemente, com os pés enfiados em sandália havaiana encardida. Elas não conseguiram abrir a boca, estavam assustadas, não entendiam o que estava acontecendo. A professora dela, que não se lembrava de ter lido aquela redação, estava espantada e também não entendia nada. O dono da Papaguara, atônito, entregou o cheque, sem compreender bulhufas. O fotógrafo Folhadela, confundido, clicou o grupo todo, intuindo que havia ali algo de errado. Parabenizei Vanderlise (ou Vanderluce), cumprimentei sua mãe e sua professora e me piquei, cheio de dúvidas.
Agi certo ou errado, leitor? Hoje, acho que errei, porque não é por esse caminho que a gente corrige as injustiças sociais. Embora inspirado em Robin Hood, infringi uma regra básica do jornalismo: menti e enganei o leitor. No entanto, ainda guardo um sentimento ambivalente. De um lado, sinto vergonha, mas de outro, uma sensação reconfortante por haver matado a fome da Vanderlise e de sua família durante um ano.
As dúvidas sobre o caso Vanderlise acabaram salvando o segredo dos sete comensais. Essas reflexões sobre o certo e o errado me levam a perguntar o que fazer com o relatório sobre as conversas do Omar Aziz no Suzeran. Publico ou não publico o seu conteúdo? Cartas para a redação (www.taquiprati.com.br).
P.S – Cuidado! O Pão Molhado você já conhece. Mas o repórter Tambaqui pode ser esse desconhecido que está ao teu lado.
P.S. 2 - Lula, quando será homologada a Terra Indígena Raposa Serra do Sol? Os índios, com quem discuti na época da eleição, declarando meu voto no PT, estão perguntando. Não sei o que responder. Estou envergonhado por haver acreditado.