A Igreja Batista tinha um templo no bairro de Aparecida, ali na Xavier de Mendonça, bem em frente à padaria do seu Armando. O culto, celebrado pelo pastor Chagas Carneiro, era semanalmente atacado por bombinhas de São João, atiradas lá dentro como se fossem granadas, algumas delas perigosas, como a ‘cabeça-de-nego', outras apenas barulhentas, como o ‘peido-de-velha'. As explosões vinham acompanhadas de gritos: “Crente do cu quente!”. As crianças choravam, os adultos se amedrontavam. Era um horror ! Foi então que a Igreja Batista cansada de guerra se mudou para a praça da Saudade, fugindo assim do terrorismo paroquial.
Quem fez a maldade de expulsar os crentes com bombas fomos nós, soldados mirins do ‘exército de Cristo': Geraldo Cocó, Bem-Te-Vi, Tuta, Come-Cabelo, Panelão, Rubi-Rola e esse locutor que vos fala, agora envergonhado e arrependido. Nos anos 50, fazíamos parte da Cruzada Eucarística Infantil, que vinha “trazer ao Brasil, um vigor novo e forte”. Com uma fita amarela ao peito, cantávamos o hino “Eia! Sus! Cruzadinhos amigos! A marchar nos impele o dever ”. Combatíamos hereges e infiéis. O catolicismo nos ensinava que existia apenas um único caminho para Deus. O resto era papo de crentes que, como vimos, tinham o rabo aquecido pelo fogo do inferno e mereciam ser exterminados.
Esse catolicismo guerreiro e arrogante foi sepultado, nos anos 60, pelo ecumenismo do papa João XXIII, para quem todas as religiões tinham valor e mereciam respeito. As ideias do Concílio Vaticano II chegaram rapidamente na paróquia de Aparecida. Lembro do Brígido Nogueira, um católico praticante, ralhando com a molecada que hostilizava os protestantes. Depois de tudo isso, vejo assustado que agora, em pleno século XXI, o catolicismo guerreiro pode ressuscitar se o novo papa, Bento XVI, que hoje inicia seu pontificado, for fiel ao cardeal Joseph Ratzinger, cujas idéias levaram os camaradinhas do PSTU, bem-humorados, a lançar o slogan: “ Vote burguês : Bento XVI”.
O papo do Papa
O papo do cardeal alemão provocou a fúria de protestantes e anglicanos. Ele escreveu documento oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, em setembro de 2000, dizendo que a Igreja Católica é a única verdadeira e que fora dela não há salvação, encobrindo assim a diversidade religiosa.
- “Assim como há somente um Cristo, existe um único corpo de Cristo: uma Igreja Católica e Apostólica apenas”.
Ou seja, a intolerância excluiu as demais religiões. Quem discordou, levou cacete. Vários sacerdotes alemães foram excomungados por terem administrado a eucaristia para protestantes. O caso mais conhecido foi o do padre Gotthold Hasenhüttl, suspenso do sacerdócio porque teimou em celebrar uma missa com os evangélicos.
Quem perdeu não foi apenas o diálogo inter-religioso com o judaísmo e o islamismo, nem o diálogo ecumênico com outras religiões cristãs, mas o diálogo interno, dentro da própria Igreja Católica. Durante os 23 anos em que dirigiu a Congregação para a Doutrina da Fé - sucessora e herdeira da Inquisição – o cardeal Ratzinger, no papel de Grande Inquisidor, puniu mais de cem teólogos, que não pensavam como ele, e exigiam mais tolerância com a Igreja protestante, como é o caso do alemão Hans Küng, para quem “a Igreja Católica não pode continuar acreditando que é a representante oficial da única verdade ”, ou do nosso Leonardo Boff, que vê “falta de misericórdia” no cardeal alemão.
Nos seus escritos antes de ser papa, o cardeal Ratzinger, como se já fosse infalível, firmou posição em relação a temas que angustiam o mundo cristão: divórcio, uso da camisinha, aborto, emprego de células-tronco no tratamento de doenças, celibato clerical, ordenação de mulheres, homossexualismo, pobreza e teologia da libertação. Por isso, não entendi quando ele apareceu, com sua cara parecida – com todo o respeito - à da Glória Menezes, e foi saudado por um grupo de seminaristas brasileiros, lá na Praça de São Pedro, com uma reação típica de torcida da seleção brasileira. Eles gritavam: “Habemos Papam, tchan, tchan, tchan” ou “se vê, se sente, o Papa está presente”.
Fogueiras virtuais
Se o papa Bento XVI aceitar as ideias do cardeal Ratzinger sobre o homossexualismo, o pessoal que corre na floresta está frito, ele vai disparar o trabuco e vão voar pelos ares os quatro “p”: penas, plumas, paetês e purpurinas. Na Carta aos bispos, de 1986, ele dá a seguinte orientação: “Ainda que a inclinação de uma pessoa homossexual não seja um pecado, é mais ou menos uma forte tendência a uma maldade moral intrínseca, portanto uma inclinação que deve ser vista como uma enfermidade”. Que horror! A irmã de caridade norte-americana, Jeannine Gramick, proibida por Ratzinger de realizar serviços religiosos para gays e lésbicas, acha que com o novo papa o catolicismo não vai sair da Idade Média
Ratzinger condena as uniões extra-conjugais, o casamento de pessoas divorciadas, o uso da camisinha e da pílula anticoncepcional, “inaceitáveis do ponto de vista moral”. Também se opõe à ordenação de mulheres, aceita por anglicanos e luteranos, e é radical na defesa do celibato clerical, “que embora não seja um dogma, já se tornou um hábito de vida”. Discrimina os sacerdotes que se casaram e os filhos ilegítimos de padres, assustando a comunidade científica, quando se pronuncia contra o avanço científico e tecnológico.
No seu documento de 6.573 palavras sobre a atualidade da Igreja Católica, de 9 de outubro de 2002, Joseph Ratzinger não usa nenhuma vez as palavras ‘igualdade', ‘humilde', ‘pobre ou pobreza', ‘solidariedade', ‘amor ao próximo', ‘paz' ou ‘trabalhador'. Nessa altura do campeonato, Puebla, Medellín e a opção preferencial pelos pobres já foi pras cucuias. Frei Beto acha que isso pode prejudicar os movimentos sociais, “caso o papa não reconheça que lutar por justiça é um direito dos pobres, uma bem-aventurança para Jesus”.
Há quem diga que o novo papa pode surpreender, mas isso só ocorrerá se ele disser, como o FHC: “esqueçam tudo o que escrevi”. Caso contrário, a Igreja pode mergulhar num profundo obscurantismo e retroceder aos tempos em que padre andava de batina e missa era em latim. Frei Beto teme “um fundamentalismo católico , com fogueiras virtuais de inquisição e muitos sendo acusados de heresia, como correu no século XIX, quando Pio IX chegou ao ridículo de condenar o Estado laico, o progresso e até a luz elétrica ”.
Se isso acontecer, sinceramente, vou pedir minha carteirinha à Igreja Luterana, manifestando minha total solidariedade às outras religiões, às mulheres, aos padres casados, às bichas, aos sapatões, aos divorciados e aos usuários de camisinhas, todos eles filhos de Deus e meus irmãos. Não sou mais cruzadinho para ficar jogando bombas contra quem é diferente de mim. Prezo demais minha liberdade de pensamento. Tou fora. Fui.
P.S. 1– A comédia romântica “Mais uma vez amor” está estourando em todas as cidades brasileiras, incluindo Manaus. Dirigida por Rosane Svartman, a produção foi feita por uma amazonense, Clélia Bessa, que afirma ter sido, “com muito orgulho”, aluna da professora Nathércia Menezes no Centro Educacional Christus do Amazonas.