(Governador Celso Ramos - SC) Estou nesse momento no interior catarinense, ministrando um curso de história para 80 professores indígenas do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Já é o segundo ano que divido as aulas com um sábio guarani, Tupã Werá, de 94 anos, líder religioso da aldeia de M´Biguaçu. Durante uma semana, diariamente, nós dois entramos juntos em sala de aula e fazemos uma dobradinha legal. Enquanto apresento documentos escritos sobre a história guarani, ele narra a história oral de seu povo, que vem sendo transmitida de geração em geração. Aí, nós cruzamos versões. Aprendemos um com o outro. O trabalho, extremamente gratificante, parece entusiasmar os alunos.
Não leio jornais, nem vejo TV. Mas na penúltima noite, consultando a internet no hotel em busca de tema para a coluna, encontro carta de um leitor. Tomo um susto danado com o título que ele deu em forma de pergunta: “Índio vale mais que cidadão?”. Decido publicá-la, mas como não tenho mais tempo de pedir autorização do autor para divulgar o seu nome, vou usar apenas as iniciais dele: PN. Eis ai a carta:
Sr. Ribamar,
Sou seu leitor de longa data, seu grande fã e defensor de nossos problemas e mazelas amazônicas. Sou caboclo amazônida e manauara assim como o senhor, mas gostaria que reformulasse seus conceitos sobre os cidadãos de Roraima, também sou contra seus governantes, inclusive o TOTÓ, mas o povo formado por trabalhadores, que culpa tem nisso? Por que destruir cidades e municípios que são produtivos, em nome somente dos índios? Porque não colocá-los em uma área desocupada e que ainda não produza?
Eu também gosto dos índios, mas não a ponto de sacrificar trabalhadores. O bom seria que houvesse bom senso. Gostaria de deixar claro que não moro, não tenho nem um parente ou amigo no estado de Roraima, mas se lá estivesse iria até participar de luta armada contra os índios, a policia federal e o LULA, que já não tem mais o meu voto e respeito. Quanto ao senhor, sou seu assinante e leitor, mas não concordo com seu amor exagerado pelos índios e o ódio incondicional aos moradores e trabalhadores do estado de Roraima. Com todo respeito. P.N. Obrigado.
Lavagem cerebral
Levei a sério o conteúdo da carta, o “ódio incondicional” do destinatário aos índios e seu “amor exagerado” ao que o missivista chama equivocadamente de “trabalhadores de Roraima”. Talvez por isso sua leitura me produziu uma tristeza profunda, um grande desconforto, porque sei que ela reflete o pensamento de muita gente boa, que vive mergulhada na desinformação, na ignorância e no preconceito.
Sinto-me impotente. Aprendi alguma coisa nos últimos 32 anos em que convivo pessoalmente com os índios e estudo suas culturas. Eles me ensinaram princípios como solidariedade, reciprocidade, respeito ao outro, simpatia com o diferente e certa curiosidade etnográfica. No entanto, começo a duvidar, sinceramente, da minha capacidade de passar isso adiante, de informar, de argumentar, de explicar aquilo que eu sei para pessoas que estão cegas e entupidas até o talo de preconceito.
A culpa não é do autor da carta, coitado. Ele, como a maioria dos brasileiros, provavelmente nunca teve um contato direto com uma aldeia indígena. A imagem que tem do índio é aquela transmitida pela escola e pela mídia. Por isso, acaba repetindo a xaropada etnocêntrica que lhe ensinaram. O antropólogo Darcy Ribeiro dizia, com razão, que qualquer pessoa que conviva uma semana com os índios, nunca mais será a mesma, pois ficará encantada com o refinamento, a poesia e a sabedoria deles. Isso significa que pessoas que não conviveram com os índios serão sempre as mesmas? Algumas sim, outras não.
Fizeram uma lavagem cerebral tão eficaz na cabeça do PN que ele não está mais aberto para entender o outro, para dialogar com quem é diferente dele. O próprio título de sua mensagem revela o preconceito. O que ele queria perguntar era: “O índio vale mais que os outros cidadãos?”. No entanto, a forma que escolheu opõe as duas categorias: de um lado, os índios, de outro os cidadãos. Dessa forma, retira a cidadania aos primeiros, ignorando os seus direitos. O que faz com que um pacato morador de Manaus, como é o leitor, confesse sua disposição de participar de luta armada contra os índios caso vivesse em Roraima? De onde vem esse ódio, aparentemente gratuito?
Vale muito mais
O leitor PN escreve que é contra os governantes de Roraima, mas nem desconfia que sua cabeça foi feita por eles. Repete toda a lenga-lenga preconceituosa, embrutecida e burra da elite roraimense, considerando que o reconhecimento do direito dos índios à Terra Raposa/Serra do Sol destrói cidades (no plural) e municípios (no plural) e “sacrifica os trabalhadores”. Jura - da mesma forma que os ‘gafanhotos' - que gosta de índios, mas afirma logo em seguida sua disposição de pegar em armas para lutar contra eles. Imagina se não gostasse!
De repente, um município artificial como Uiramutã, que não tem capacidade de ter um orçamento próprio, vira “municípios ameaçados” (no plural), embora a homologação de Lula, erradamente no meu entender, tenha garantido sua existência. Um povoado criado propositalmente dentro da área indígena vira “cidades”. E dez arrozeiros recém-chegados na região se tornam “trabalhadores de Roraima”.
Talvez inconscientemente, o leitor PN acaba defendendo a mesma política da quadrilha de ‘gafanhotos' que comeu a folha de pagamento e assaltou os cofres públicos de Roraima, quando propõe a transferência dos índios para outra área.
- Porque não colocá-los em uma área desocupada e que ainda não produza?
A resposta parece ser tão simples e cristalina. Os cidadãos indígenas Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona habitam aquele território desde tempos imemoriais e têm seus direitos garantidos pela Constituição. Foi lá, nesse território, que eles classificaram as plantas, os animais e todo o ecossistema, produzindo conhecimentos úteis para o Brasil e para a humanidade. Foi lá que eles criaram diversas línguas, uma literatura oral vigorosa, poesia, música, arte plástica, tão importantes que a literatura brasileira contraiu uma dívida com eles, através de Mário de Andrade, Raul Bopp e outras figuras do modernismo. Foi lá que eles domesticaram plantas e fizeram suas roças tradicionais. Lá, eles enterraram seus mortos, e desenvolveram expressões religiosas e artísticas. Ao contrário dos arrozeiros que transformaram a terra em mercadoria e só pensam no lucro, os povos indígenas de Roraima não se consideram os "donos" da terra, que pertencem à Uniâo. Eles têm direito ao usufruto conforme a Constituição de 1988. A terrra não lhes pertence, são eles que pertencem à terra. Não existe nenhum argumento válido capaz de justificar o roubo das terras indígenas.
O cidadão índio vale mais do que os outros cidadãos? Depende. Se os outros forem ‘gafanhotos' ou arrozeiros embrutecidos pela cobiça do lucro, certamente que valem.
P.S. - Publicada originalmente com o título "Índio vale mais que cidadão?"
VER TAMBÉM: https://www.taquiprati.com.br/cronica/289-os-gafanhotos-atacam-outra-vez