Vem cá, leitora, confessa, alguma vez teu namorado, noivo, marido ou amante já te chamou carinhosamente de ‘minha yewánape-kulu' ou, pelo menos, te tratou com o doce nome de ‘u´le zapeli'? Não? Então, me desculpa, mas o cara não é romântico. Se fosse, te daria esse tratamento afetuoso registrado por um etnógrafo alemão, Theodor Koch-Grünberg, que viveu entre os índios de Roraima entre 1911 e 1913, e viu os taurepang, apaixonados, trocando juras de amor, com expressões sumamente ternas como ‘yewánape-kulu' (‘meu coraçãozinho querido') ou u´le zapeli (‘pluma da minha flecha').
Podemos aprender lições interessantes com os índios de Roraima e com Koch-Grünberg. Em suas viagens pelo norte do Brasil e pela Venezuela, ele coletou milhares de objetos de arte indígena que hoje fazem parte das coleções dos museus de Berlim, Hamburgo e Leipzig. Gravou, num fonógrafo, as músicas e cantos dos Makuxi, Taurepang, Wapishana, Ingarikó e Patamona. Tirou fotografias, ouviu as histórias que os índios lhe contaram e deixou tudo isso registrado num belo livro, intitulado “De Roraima ao Orenoco”, publicado em três tomos.
Essas histórias contribuíram de forma decisiva para a literatura brasileira, porque foi lá que Mário de Andrade buscou inspiração para escrever ‘Macunaíma', o herói que nasceu nas margens do rio Uraricoera, e acabou se tornando símbolo da identidade nacional. Essa dívida, o Brasil tem com os povos de Roraima.
As descrições feitas por Koch-Grünberg resultam de uma observação cuidadosa de mais de três anos. Ele escreveu que “os índios são pessoas amáveis, de temperamento alegre e de comportamento discreto, são tão educados que podem servir de exemplo a muitos europeus, que se acham superiores aos ‘selvagens' nus”. Ficou deslumbrado com o refinamento deles:
“Um índio de Roraima nunca entra em uma casa alheia sem pedir licença. Durante uma conversa, jamais um corta a palavra do outro. Nunca gritam dois ao mesmo tempo. Se pudéssemos levá-los a uma das nossas reuniões, eles ficariam espantados com nossos costumes bárbaros de atropelar a fala do outro ”.
Uma das características que mais chamou a atenção do pesquisador alemão foi o humor dos taurepang. “Esses índios são muito gozadores, gostam de rir e de se burlar dos outros, são extremamente brincalhões”, escreveu, completando que com poucos dias de convivência, todo mundo, incluindo os europeus, recebiam apelidos. Lendo as observações de Koch-Grünberg há quase cem anos, fiquei pensando nos atos de bandidagem ocorridos nesta semana em Roraima e que não mereceram o devido destaque da mídia. O Boletim do Instituto Socioambiental (ISA), numa matéria assinada por Oswaldo Braga, registrou o fato.
O vandalismo
Às duas das madrugada do dia 17 de setembro, quatro dias antes da festa de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, mais de cem bandidos, fortemente armados e encapuzados, arrombaram a sede do Centro Indígena de Formação e Cultura, destruíram os dois prédios da escola, depredaram salas de aula, cantina, oficina, marcenaria, depósito, cozinha e dispensa, tocaram fogo na igreja, no hospital, no refeitório, nos dormitórios e na sala de coordenação da escola, quebraram vidros, destruíram todo o mobiliários, tentaram incendiar uma ambulância que saía do local para levar um paciente à Boa Vista e feriram quatro pessoas.
As fotos publicadas no Boletim do ISA são impressionantes, mostrando os resultados dessa cena de vandalismo contra uma instituição com mais de meio século de existência. O Centro Indígena de Formação e Cultura fica na comunidade do Barro, na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, a aproximadamente 200 quilômetros de Boa Vista. Berço do movimento indígena de Roraima, foi lá onde os tuxauas realizaram as primeiras reuniões para reivindicar o direito à terra. É lá que são formadas as lideranças indígenas. Atualmente abriga 38 alunos do curso profissionalizante de agropecuária e mais 17 de mecânica.
A instituição, porém, representa muito mais do que o passado e o presente indígena de Roraima. “O futuro da Raposa-Serra do Sol passa por essa escola” diz Luís Ventura, que faz parte de sua Coordenação. O Centro, mantido pela Diocese, deve passar nos próximos meses às mãos do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Reconhecido formalmente pela Secretaria Estadual de Educação, apoia vários projetos previstos pelo Governo Federal em áreas como conservação ambiental, desenvolvimento sustentável e melhoramento de rebanhos . Os que o atacaram, sabiam muito bem o que estavam fazendo.
Boi bandido
Quem foram os bandidos responsáveis pela depredação do patrimônio indígena? Segundo informações colhidas no local pelo CIR, o ataque teria sido coordenado, entre outros, por Anísio Pedrosa, vice-prefeito de Pacaraima, município localizado na TI São Marcos, ao lado da TI Raposa-Serra do Sol. Ele seria ligado ao prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero (PDT), maior produtor de arroz da região e um dos principais opositores da homologação da TI. Esse poderia ser chamado de “boi bandido”, se os índios continuassem gostando de dar apelidos às pessoas.
Segundo o Boletim do ISA, em junho passado, o Ministério Público Federal (MPF) em Roraima protocolou uma ação contra os envolvidos nos ataques às comunidades de Jawari, Brilho do Sol, Lilás e Homologação, ocorridos no dia 23 de novembro de 2004. Quartiero foi denunciado pelo MPF como um dos organizadores do crime. Ao todo, 34 casas foram destruídas – queimadas ou derrubadas por tratores – e 131 pessoas ficaram desabrigadas. Um índio foi espancado e baleado. Um posto de saúde e alguns criatórios de animais também foram demolidos. Roupas, redes, mantimentos e plantações foram consumidos pelo fogo e vários animais de criação abatidos.
Agora, os bandidos acabam de tocar fogo numa ponte, no momento em que o presidente da FUNAI presidia solenidade da festa de homologação, mostrando que não temem a lei e que estão dispostos a enfrentar o Estado. É difícil acreditar que isso está ocorrendo debaixo das nossas barbas, em pleno século XXI, dentro de um estado democrático.
O Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), entidade da sociedade civil que congrega organizações indígenas regionais e entidades indigenistas e de apoio aos povos indígenas, em nota oficial, exigiu que os órgãos responsáveis façam uma apuração rigorosa dos fatos, com a prisão dos responsáveis pelas agressões e tomem medidas preventivas de segurança para que atos como esses não se repitam. Essa é a única garantia que o Brasil tem de preservar as línguas, os saberes, a poesia, a literatura, a música e a arte dos índios de Roraima, e de que eles possam continuar usando formas de tratamento já esquecidas pelo boi bandido, como ‘yewánape-kulu' e ‘u´le zapeli'.