Astrid Lima, amazonense do bairro de Aparecida, escritora, documentarista e agitadora, ganhou prêmios nacionais e internacionais com filmes sobre a destruição da floresta amazônica. Casou com um italiano, Andréa Palladino, que estudou cinema em Roma e Paris e realizou diversos documentários na Itália e no Brasil. Do casamento dos dois acaba de nascer um filme “-Água Invisível” - de uma hora de duração, como parte de um projeto de documentários sobre a geopolítica da água.
O filme, de produção anglo-italiana, discute o acesso à água como direito humano fundamental e como milhões de pessoa no mundo não podem usufruir desse direito. Concentra o foco sobre o caso da cidade de Manaus, cujos moradores pagam uma conta de água mais cara que em Roma, embora residam no coração da maior bacia de água doce do mundo. É isso mesmo. A Leonor, vendedora de banana no Beco da Bosta, paga mais que a Sofia Loren pela água que consome.
Não dá pra entender isso. Mas pra entender porque não dá pra entender, é preciso ver o filme ou ler a matéria que o Andréa publicou em um dos mais importantes jornais da Itália – Il Manifiesto – onde ele resume algumas ideias desenvolvidas no documentário. Com sua autorização, reproduzo aqui na coluna trechos da reportagem “Suez, Rio Amazonas. Cara e sporca acqua”, aproveitando a comemoração, no dia 22 de março, do Dia Mundial da Água. Dessa forma, aquilo que os italianos leram sobre Manaus fica acessível aos leitores do Diário do Amazonas.
Água cara e suja
Quanto vale a água na maior bacia de água doce do mundo? Para os moradores de Manaus, localizada no encontro dos rios Negro e Solimões, o acesso ao "ouro azul" custa caro, muito mais caro do que paga um morador de Roma.
Depois que a distribuição da água foi dada em concessão à Suez - em junho de 2000 - os moradores de uma das maiores cidades amazônicas passaram a pagar até 40% a mais do que os cidadãos europeus. E, em muitos casos, a água não chega nas casas: deve ser carregada de poços artesianos por crianças, mulheres e velhos.
Cerca de 300 mil habitantes – de um total de 1.600.000 - não têm acesso à água, que só chega para quem pode pagá-la e ali onde já existia uma estrutura de distribuição. Nos anos da privatização dos serviços públicos, foi preciso que o então governador Amazonino Mendes mandasse a polícia cercar a Assembleia Legislativa para aprovar a lei que transformou a distribuição da água em um grande negócio.
"Naqueles anos, um real valia um dólar - explica Samuel Hanan, ex vice-governador - e as empresas estrangeiras eram atraídas pela perspectiva de investir no Brasil". A privatização aconteceu nos serviços essenciais em todo país. Manaus tinha uma companhia de água publica conhecida por sua crônica ineficiência: a privatização, na época, criava na população a expectativa de ter um serviço melhor.
Um grande negócio
"Ter uma companhia pública em péssimas condições fazia parte do jogo - recorda Eron Bezerra, deputado do PC do B. Políticos neoliberais desmantelaram o serviço público para facilitar a chegada das companhias privadas". Para a Suez foi um bom negócio: a companhia de água foi comprada por 193 milhões de reais, quando seu valor contábil era estimado em 480 milhões.
Um bom negócio também para a classe política. Agora ninguém mais pode culpar o governo. "O Estado não podia cortar a água de quem não pagava, não era politicamente correto, mas uma empresa privada pode", comenta o ex-presidente da companhia pública de água (COSAMA, conhecida como COLAMA), Frank Lima. No entanto, hoje, em Manaus, quase ninguém defende a privatização. O que aconteceu? O que não funcionou?
A Suez, multinacional francesa que adquiriu o monopólio por 45 anos, afirma que não pode fazer investimentos para levar água a toda a população. Além disso, a situação da rede de esgoto (também incluída no contrato de concessão) é dramática: menos de 10% da população é ligada ao sistema. As doenças relacionadas à água (verminose, malária, dengue, hepatite e infecções gastro-intestinais) aumentaram consideravelmente.
O município, que há dois anos é dirigido por um prefeito de esquerda, tentou entender o que não funcionou no processo de privatização, herança da administração anterior. Durante audiência na Comissão Parlamentar de Inquérito, o presidente de "Águas do Amazonas" explicou que os investimentos foram feitos, o sistema de tratamento melhorou, mas confirmou que não é possível levar água para toda a população.
Tadinha da Suez
Fernando Paraguassu - presidente da 'Águas do Amazonas' - afirma que a empresa teria sido "enganada": "É como quando se compra um carro de segunda mão... às vezes se encontram problemas que não se esperavam". A Suez acusa o Estado do Amazonas de haver fornecido, na época da venda, dados falsos, que não refletiam a realidade da cidade.
Ora, qualquer pessoa que percorre as ruas periféricas de Manaus - mesmo sem ser um especialista em redes hídricas - percebe claramente que se trata de uma cidade em expansão, com terríveis diferenças sociais, com zonas de grande pobreza e de degradação urbana. Então como é possível que uma empresa, experiente como a Suez, se tenha deixado "enganar" pelo governo?
Na verdade, o problema da água em Manaus - como em toda a América Latina - é uma questão social e não apenas econômica ou tecnológica. A água é indicador de status: se você pode pagar, então tem água potável. Mas, se mora na periferia, ganha salário mínimo e não pode pagar contas altas, então a água se transforma em um bem inacessível e provavelmente é veículo de doenças muitas vezes mortais.
O modelo Suez de gestão da água prevê também a participação da sociedade civil. O caso de Manaus é citado como exemplo. No ano 2002, a Essor criou uma associação de moradores do Mauazinho, um dos bairros mais pobres da cidade, para distribuir as contas de água e convencer quem tem dívidas a pagá-las através de prestações. Em troca a associação recebe 2% do faturamento daquela área. Em outras palavras, o teu vizinho vira representante da companhia de água e é ele quem te convence que é justo pagar.
A Suez cita o exemplo do bairro. Ela fornece 12 metros cúbicos de água por mês a cada família e a conta tem um valor fixo de 16 reais. O projeto pretende demonstrar que convém fazer negócio com os pobres: a taxa de caloteiros caiu abaixo da média. Na realidade a água fornecida aos moradores do Mauzinho é superior (pelo menos 50 metros cúbicos), mas a companhia finge que não vê, porque as famílias são poucas. É também verdade que a associação incentiva a população a denunciar o vizinho em casos de "gatos". Um verdadeiro negócio, mas não para os pobres.(Andrea Palladino - "Il Manifesto" 10/03/2006)
P.S. Acesse ‘Água Invisível’ - www.invisiblewater.org
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