CRÔNICAS

As Escolas de Samba que alfabetizam

Em: 01 de Março de 2020 Visualizações: 9961
As Escolas de Samba que alfabetizam

"O que tipifica uma atividade como educativa é a sua  natureza e não a pessoa ou a entidade que a realiza”.  (Art. 1º da Lei Geral da Educação do Peru.1972)

- Por que teu bloco tem o nome irreverente de Fiofó Em Chamas? – perguntei a um grande amigo. Ele disse que este nome competiu com “Tou com o cru pegando fogo”, mas justificou a escolha com a aula de história, que resumo a seguir.

O sambódromo e as ruas constituem um lugar privilegiado de educação. Os enredos são filhos legítimos da sabedoria popular casada com o saber acadêmico. Os carnavalescos, com um pé lá e outro cá, fazem a síntese intercultural com imagens, performances, fantasias e alegorias que informam e conscientizam. Mas o caráter educativo não termina aí. Depois de ampliados pela mídia e redes sociais, o samba-enredo, levado pela juventude, invade a sala de aula. Torna-se ferramenta do professor, que complementa e até questiona o livro didático. O currículo samba.

É assim que o carnaval alfabetiza no sentido que lhe dá Paulo Freire, homenageado pela Águia de Ouro, campeã do carnaval de São Paulo. As arquibancadas gritavam “Viva Paulo Freire! cantando em coro o samba enredo “O poder do saber”. Os terraplanistas energúmenos expulsaram do MEC o patrono brasileiro da educação? Ele dá a volta por cima, ganha as ruas e de lá retorna à sala de aula de onde se tentou bani-lo, legitimando o seu lugar aqui e em outros países. A terra é mesmo redonda.

O x do problema

Com Darcy Ribeiro, Paulo Freire foi, no exílio, o grande inspirador da Reforma Educativa Peruana de 1972. A lei reconheceu, em seu artigo primeiro, que a educação acontece também fora da sala de aula, dependendo da natureza da atividade. A gente aprende em todo momento e em qualquer lugar. Contraria assim a visão cartorial de que só adquire o saber quem frequenta escola e tem diploma. No Brasil, muita gente foi “educada na roda de bamba e diplomada na escola de samba”, com Aracy de Almeida cantando “O X do problema”, composto para ela, em 1936, por Noel Rosa.

Ficamos assim combinados: com o carnaval se aprende a ler o mundo. Os regimes autoritários perceberam isso e tentaram controlar a leitura em seu proveito. A ditadura Vargas distribuiu, em 1935, verbas públicas às agremiações exigindo que os enredos exaltassem os heróis inventados pela história oficial. Tratava-se de privilegiar ações de um único indivíduo, colocado como estátua em um pedestal, numa visão rasa da “história sem massa”, que oculta a participação popular no processo de transformação social.

De lá para cá, o carnaval alternou momentos de crítica social e de reflexão política com a alienação. No governo do general Médici – “Brasil: ame-o ou deixe-o” - a Mangueira não deixou de homenagear a criação dos Correios, com o enredo “Modernos Bandeirantes”. A Beija-Flor elogiou os militares com o tema “Educação para o desenvolvimento” na época do acordo MEC-USAID que propunha o ensino pago nas universidades. O resultado foi o samba do crioulo doido na gozação do Stanislaw Ponte Preta, no qual “Tiradentes queria ser dono do mundo e elegeu-se D. Pedro II”. 

Nos regimes democráticos, foi diferente. Na era JK, a Salgueiro cantou, em 1957, “Navio Negreiro”, abordando pela primeira vez na avenida o tráfico de escravos, que não era tratado adequadamente nas salas de aula. Mas na ditadura, em 1967, quando saiu com “A História da Liberdade no Brasil”, seus ensaios foram monitorados por policiais do DOPS. A repressão e a censura levaram a Unidos de Lucas a compor, em 1968, o samba enredo “Sublime Pergaminho” que exaltava a Princesa Isabel, e anunciava versão fajuta do fato histórico no refrão repetido à saciedade:

E de repente,

Uma lei surgiu (bis),

E os filhos dos escravos,

Não seriam mais escravos,

No Brasil.

Faísca de esperança

A ideia era essa mesma: os escravizados não lutaram, não foram agentes da história, a coisa surgiu assim, de repente, da canetada de ouro de uma princesa – não existia ainda a Bic. O objetivo era claro: se as massas foram, no passado, meros figurantes, se a abolição foi obra de uma princesa, cujas “mãos foram beijadas pelo jornalista negro”, não adianta lutar hoje. Fica na tua, quieto e calado à espera do messias salvador.

- Nem os mortos estarão salvos do inimigo, se o inimigo vence. E esse inimigo não parou de vencer – escreveu Walter Benjamin, para quem “o dom de suscitar a faísca de esperança” têm aqueles que compreendem isso. Essa faísca brilha agora nos desfiles das campeãs, como brilhou em 1989, no Brasil redemocratizado, quando a Imperatriz Leopoldinense cantou: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”.

Dois historiadores - Luiz Antônio Simas e Tarcísio Motta de Carvalho -  destacaram nas redes sociais “o sopro de vivacidade” das seis escolas do Rio que participam do desfile das campeãs:

A Viradouro de alma lavada nas escadas da fé, nos fez ouvir a voz da mulher, o canto das Marias que chamam a freguesia pro batuquejê e conquistam a alforria com “o balaio do tamanho do suor do seu amor”.

O canto do caboclo da Grande Rio: “Eu respeito seu amém, você respeita o meu axé”.

A Mocidade abre os caminhos para Elza Soares “curar toda a ferida que a história escreveu”, com as armas de uma canção, de forma que os filhos do planeta fome não percam a esperança em seu cantar.

A Beija-Flor, em tantos altares e em tantos andores, segura o povo que é o dono da rua: “Ê Laroyê Ina Mojubá Adakê Exu ô ô ô”.

A Salgueiro chama o povo para ver o rei negro no picadeiro, o palhaço preto Benjamin de Oliveira: “Aqui o negro não sai de cartaz, se entregar jamais”.

O Jesus da Gente da Mangueira, rosto negro, sangue índio, corpo de mulher, filho de Maria das Dores Brasil, vítima da violência, cujo samba é uma reza pela força que encerra, consciente de que o futuro desejável só com a eliminação da miséria e sem messias de arma na mão.

O carnaval é, definitivamente, o melhor do Brasil. Neste ano, os trios elétricos da Bahia, o frevo de Recife, os blocos e as escolas de samba do Rio, de São Paulo e de todo o território nacional, nos deram várias grandes lições. Aflorou esse país solidário, tolerante, brincalhão, respeitoso com o corpo da mulher, com os movimentos sociais, com a diversidade religiosa, de gênero e de raça. Neste Brasil alegre, criativo e esperançoso, a fantasia é que espelha a realidade, tão diferente do mundo fedorento das fake news, que nos envergonha com sua homofobia, seu discurso do ódio, sua impunidade, suas rachadinhas, seus milicianos, seu cinismo e sua truculência.

O diálogo de saberes ocorreu em todas as escolas, com destaque para a Viradouro que se inspirou na tese de doutorado em Etnografia Musical sobre o canto das lavadeiras, da professora da Universidade Federal da Paraíba Harue Tanaka. Darcy Ribeiro, criador de universidades e do sambódromo, dizia que quem tem um pé na universidade, tem de ter o outro no carnaval, que são as duas asas do pássaro da cultura. Se faltar uma delas, ninguém levanta voo.

Fiofó em chamas

Com muita cadência: é desse jeito que as escolas de samba alfabetizam. No entanto, o MEC propõe agora que na sala de aula o professor realize exercícios de leitura em voz alta para avaliar a fluência do letramento do aluno, desconsiderando que é possível ler assim, sem entender o sentido do que foi lido. O que, com todo o respeito, parece ser o caso do ministro Weintraub. Já a cadência de sentidos presente no samba-enredo, com o registro da memória e dos processos históricos, cria foliões letrados capazes de ler o livro Brasil e de salvaguardar o patrimônio e a identidade nacional.

Depois que meu amigo falou tudo isso, indaguei perplexo:

- Como levantar voo com o teu bloco? Afinal, quais são as suas duas asas?

A denominação “Fiofó em chamas” – ele disse de gozação - dialogou com “El llano en llamas” de Juan Rulfo. Já “Tou com o cru pegando fogo” se inspirou em “O cru e o cozido” de Lévi-Strauss.

Na realidade meu amigo, que eu tanto admiro, não saiu em nenhum bloco, impedido por uma biópsia. Quando cessou o efeito da anestesia, ficou com fiofó em brasa, assistindo em pé os desfiles diante da TV. Em nome da privacidade, não revelo o seu nome, mas ele pediu que registrasse aqui agradecimentos aos doutores Ronaldo Damião, Carlos Jardim, Leonardo Kayat e Jaime Garcia que suavizaram sua agonia com muita competência. Em 2021 - quem sabe? - o Fiofó Em Chamas incendeia as ruas.

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18 Comentário(s)

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Rodrigo Martins comentou:
20/03/2020
O carnaval é uma das formas mais didáticas e com uma linguagem acessível única, diria que é o EJA (porque passa no horário da noite na televisão) transmitido para todo o Brasil e mundo. Penso que agora nesse momento de crise do coronavírus não só o sambódromo como os estádios de futebol (espero que São Januário entre mais uma vez positivamente para os livros de história, seria incrível) poderiam servir como posto de campanha para juntos contarmos mais uma bela história no próximo carnaval! Um abraço querido professor!
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Maria Luiza Santos (via FB) comentou:
04/03/2020
Amei seu texto, Professor José Bessa. Muito criativo e gostoso de ler. Sem ficar com o "fiofó em brasa".
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Miryám Hess comentou:
04/03/2020
Professor José Bessa amei seu texto que - como sempre - encerra grande sabedoria.
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Serafim Correa comentou:
03/03/2020
Publicado no Blog do Sarafa - https://www.blogdosarafa.com.br/as-escolas-de-samba-que-alfabetizam/
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Racismo Ambiental comentou:
03/03/2020
Publicado no Blog COMBATE - RACISMO AMBIENTAL - https://racismoambiental.net.br/2020/03/01/as-escolas-de-samba-que-alfabetizam-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Pátria Latina comentou:
02/03/2020
Publicado no blog Patria Latina - http://www.patrialatina.com.br/as-escolas-de-samba-que-alfabetizam/
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Valter Xeu comentou:
02/03/2020
Publicado no blog Noticias da Bahia - http://www.noticiasdabahia.com.br/as-escolas-de-samba-que-alfabetizam/
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Dodora Bessa Farias comentou:
02/03/2020
Uma das melhores crônicas tuas, podes crer! Disseste tudo o que eu sinto (e certamente a maiorias dos teus leitores) e jamais seria capaz de expressar... É mesmo o maior espetáculo da terra que tu sabiamente conseguiste sintetizar, essa simbiose da sabedoria popular com o conhecimento técnico-científico. Com o invólucro humanitário, que sempre caracteriza tuas crônicas, o seu recheio aborda ricamente as diferentes dimensões da vida do povo brasileiro, com uma pincelada de poesia! Beleza tão pura que as irreverências iniciais se encaixaram suavemente no conjunto da obra!
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Maria Paula Araujo comentou:
01/03/2020
Viva o carnaval desse ano! Irreverente, politizado e lindo!
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Mariana Barboza comentou:
01/03/2020
"O carnaval é maior força contra qualquer opressão" disse Daniela Mercury que se apresentou como “a rainha da balbúrdia!" no desfile na rua da Consolação neste domingo 1º de março! Ela gritou várias vezes: "Viva, Paulo Freire, Viva o cinema, a literatura, viva o Brasil".Fechou o carnaval de SP com o "Pipoca da Rainha, com críticas ao governo Bolsonaro sem citar nomes. "Está todo mundo fantasiado? Isso é um ato político, ocupação do espaço público, é ato de amor ao Brasil",
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Paulo Nunes comentou:
01/03/2020
E assim nos ressignificam
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Alessandra Marques comentou:
01/03/2020
Carnaval é libertador, é o saber popular, é vir abaixo com o Cacique de Ramos, ver de pertinho grupos tradicionais, ouvir o trabalhador falando com orgulho de sua escola. É o povo tomando as ruas que é o seu lugar, e como o Estado sabe o significado deste "descontrole" da massa e o teme, este ano, foi pra lá de repressivo. Muita polícia fortemente paramentada no meio do samba, intimidações escancaradas, ordem de abaixar a música e de dispersar a multidão. De uns tempos para cá, o cerceamento durante o Carnaval começou a ficar mais visível com a colocação de grades cercando os prédios do poder do Centro do Rio. Como odeio isso! Tomar as escadarias dos "palácios" era um dos pontos altos da caminhada dos blocos, momento dos foliões sentirem que aquilo tudo é, na realidade, nosso! E não me venham com argumento "o povo quebra, faz xixi", quem destrói o patrimônio são os mesmos poderosos que oprimem o povo e a sua cultura e que, na realidade, detestam o país (até parece que o Centro, no resto do ano, é cheiroso e tem seus monumentos preservados!). Já diziam Bosco e Aldir, durante a ditadura: "Não põe corda no meu bloco/ Nem vem com teu carro-chefe/ Não dá ordem ao pessoal"
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Welton Diego Lavareda comentou:
01/03/2020
Texto brilhante,meu amigo José BessaMe fez lembrar muito do livro “Dos meios às mediações-Comunicação,cultura e hegemonia”, do Jesús Martín-Barbero, em especial,quando a obra fala da cultura como espaço de hegemonia. No capítulo citado,inclusive,temos “[...] que o carnaval é aquele tempo em que a linguagem da praça alcança o paroxismo,ou seja,sua plenitude,a afirmação do corpo do povo,do corpo-povo e seu humor”. Parabéns outra vez
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Nadia comentou:
01/03/2020
Querido professor, esse texto maravilhoso me fez recordar um sonho antigo, de quando ainda era aluna de Biblioteconomia: compreender como os operários do carnaval, para os quais o trabalho sazonal e pago de acordo com a produção pode ser considerado alienante, se apropriam e se reconhecem ao longo do processo de desenvolvimento do enredo, nos barracões e oficinas, até o ápice, quando tornam-se expectadores daquilo que produziram. Enfim, a função pedagógica do carnaval voltada para os trabalhadores do espetáculo. Não sei se encaixa em alguma linha do PPGMS.
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André Pessôa comentou:
29/02/2020
Só o cume dos acontecimentos históricos me interessa.
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Celeste Correa comentou:
29/02/2020
É, a história do carnaval se confunde mesmo com a nossa história política. Se lermos sobre a trajetória dos desfiles, principalmente os do Rio de Janeiro, podemos entender a vida político social do pais nos seus mais diferentes contextos . Neste ano, certamente o mestre Darcy Ribeiro, criador do sambódromo teria um baita orgulho com o desfile na passarela do samba. Como educador e antropólogo ficaria muito feliz se pudesse ver que esse espaço da alegria e da cultura cumpriu este ano o seu papel ao cantar sambas críticos e de denúncias como resistência ao autoritarismo desse governo, numa verdadeira lição de respeito à diversidadede e às escolhas de cada um. Sim, o carnaval desse ano veio para nos mostrar e nos ensinar que a alegria pode abafar o ódio e que, apesar de todo essa desesperança que tomou conta de tanta gente, esse país não tem a cara desse governo. Grande parte desse país é solidário, tolerante, brincalhão, respeitoso com o corpo da mulher, com os movimentos sociais, com a diversidade religiosa, de gênero e de raça. É uma verdadeira demonstração de resistência a esses terraplanistas energúmenos que querem intimidar qualquer um que pense diferente deles. Acredito que depois desse desfile e desse recado, o Bozo e sua noivinha da cultura já devem estar nos bastidores da Secretaria de Cultura trabalhando para criar "As Escolas de Samba sem partido". Mas ninguém solta a mão de ninguém, José Bessa! Vamos nos preparar hoje para os desfiles de campeãs. Espero que o teu amigo que estava com o fiofó em brasas possa assistir agora sentado e cantar junto com a Mangueira "não tem futuro sem partilha / Nem messias de arma na mão".
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Nonato Cancio comentou:
29/02/2020
Texto maravilhoso de Bessa Freire para aclarar as ideias dos pseudoartistas.
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Angela Maria Dili comentou:
29/02/2020
Eu acho que conheço esse teu amigo, mas respeito a privacidade e não nomeio aqui.
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