CRÔNICAS

Bonitão, o matemático de Aparecida

Em: 02 de Julho de 2006 Visualizações: 11271
Bonitão, o matemático de Aparecida

.Desocupado leitor, quero que Santa Luzia me cegue, quero ver minha sobrinha Ana Paula mortinha no inferno, se exagero na história que vou aqui contar. Prometo que não te cansarei com citações em latim, nem com menção de autores clássicos, filósofos gregos ou novelistas russos. Serei claro, objetivo e direto. Vamos lá.

Em um beco do bairro de Aparecida, em Manaus, cujo nome não quero lembrar, vivia com sua irmã, Lígia Maia, um fidalgo conhecido como ´Bonitão´, primo do ex-governador Álvaro Maia. O dito cujo passava suas horas ociosas (que eram muitas) deitado numa rede, lendo livros, com tanta paixão e afinco que se esqueceu de fazer outras coisas.

Ora, como todo mundo sabe - e é voz corrente entre os ‘picicanalistas’ – quem lê muito, fica doido. A leitura em excesso ataca o juízo, amolece a moleira. Foi o que aconteceu com um certo espanhol, Dom Quixote de la Mancha, que ficou lelé da cuca, porque lia muito. Foi também o caso do fidalgo amazonense ‘Bonitão’, que varava madrugadas devorando livros. Com pouco sono e muita leitura ficou com o cérebro seco.

A biblioteca de Bonitão

´Bonitão´ e Quixote eram dois malucos-beleza, ao contrário de muitos políticos locais que nunca abriram um livro e por isso são nocivamente normais. Mas se Quixote lia romances de cavalaria, a preferência de ´Bonitão´ era por livros de matemática. Interessava-se por relações numéricas, cálculos algébricos, resolução de equações, figuras geométricas, variação de grandezas, números racionais, fração, raiz e regra de três, axiomas e teoremas, razões e proporções e por ai vai.

Diz-me o que lês, e eu te direi o que pensas. Cada um enfia na cachola aquilo que lê. ‘Bonitão’ tinha uma biblioteca cheia de livros provavelmente comprados pela irmã Lígia. Sua bíblia era o “Elementos de Geometria Descritiva” de Frère Ignace Chaput, uma edição brasileira de 1946 com quase 500 páginas, capa dura, todo riscado, com anotações a caneta.

Mas não ficava ai. Debaixo de sua rede, empilhada, estava a coleção completa de autores didáticos da editora FTD (apelidada de Feijão Todos os Dias), tais como Ary Quintella, Theobaldo Miranda Santos e Alberto Nunes Serrão. Tinha orgasmos quando desfrutava as “Seiscentas Expressões Fracionárias” de Otelo de Sousa Reis ou a raridade que era o “Exercícios de Álgebra” de Cecil Thiré, uma edição do tempo do finado Silvério Néri. 

Depois de muita leitura, o fidalgo amazonense e o cavaleiro espanhol agiram de forma similar. Quixote deixou os livros de lado, agarrou a espada, montou seu cavalo e saiu por aí em busca de aventuras, enfrentando perigos e combatendo a maldade, como faziam os cavaleiros andantes nos romances de cavalaria.´

Bonitão´ de vez em quando, também abandonava os livros, saía da rede e subia as ruas Xavier de Mendonça e Alexandre Amorim com um canivete na mão e os bolsos cheios de giz. Parava diante de cada mangueira e usava a árvore como caderno. Fazia uns cortes no tronco e talhava ali complicadas equações e fórmulas matemáticas, desenhava triângulos e descobria a hipotenusa somando o quadrado dos catetos.

Vozes do Beco

Não é só excesso de leitura, dor de corno também faz a gente pirar. Vozes do Beco da Bosta, saídas da garganta de alguns velhos, juram que a paixão de ´Bonitão´ pelas matemáticas surgiu depois de uma desilusão amorosa, quando foi abandonado pela Beatriz, “que não foi feliz porque não quis”.

´Bonitão´, como indica o apelido, era pintoso, “um pão” como se dizia na época. No entanto, ao contrário de Dom Quixote, tinha as pernas curtas, era caga-baixinho. Depois que sua amada o deixou, trocando-o por um galalau, ´Bonitão´fez uma longa viagem ao seu interior e não retornou nunca mais. Andava caladão, quando falava era sozinho, consigo mesmo.

A única comunicação que conseguia estabelecer era quando alguma moça do bairro, de brincadeira, o chamava: “Bonitão”. Ele, então, respondia, “bonitona”. E aí, prosseguia o seu caminho, desligado, deixando suas marcas de equações complicadas nos troncos das árvores do bairro.

Sua irmã, a professora Ligia Maia, cuidava para que andasse sempre limpo, em trajes decentes. O bairro brincava com ele, que se mantinha sério, de cara fechada. Às vezes, um ou outro moleque exagerava na dose, sacaneando com o ´Bonitão´. Nada que não pudesse ser resolvido com uma ou outra pedrada. Mal ou bem, a família e o bairro cuidavam de seus loucos. 

Um dia de setembro, na quermesse de Aparecida, depois de observar o Bingo gritado pelo Brigido Nogueira, o Moacir Fortes Xavier e o Zé Velho, ´Bonitão´ desenhou no tronco de uma árvore um triângulo isósceles e formulou o seguinte problema, escrevendo com giz sobre a calçada da casa dos padres redentoristas: “Numa festa, foi possível formar 12 casais diferentes para dançar. Se havia três moças – Walterlidia, Waltercília e Waltercirema - e todas elas dançaram com todos os rapazes, quantos eram os rapazes?”

Esse problema não foi resolvido sequer por Chiquinho, companheiro de lutas e de ideais do Bonitão´. Chiquinho tinha também uma família que cuidava dele, andava bem arrumado, de paletó, gravata e calça de tergal, que não amassava. Nos anos 1960, encasquetou que era funcionário da Secretária de Interior e Justiça, cuja sede funcionava na Praça da Prefeitura. Passou a dar expediente normal, diariamente, fazia pequenos mandados para os funcionários, comprava merenda, levava encomendas. Era querido de todos. O duelo dos dois merece um capítulo à parte.

´Bonitão´, Chiquinho, Professor Guilherme, Raimundo Mucura, Jaú, Solaninho, Neide Pipoca, Porca Vadia - esses foram alguns  dos nossos doidos do bairro de Aparecida, pedaços e retratos de nós mesmos. Havia ainda o Zé Mário, que vestido num camisolão branco, com a barba comprida, sai pregando pelas ruas, jurando que era o Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”.  Todos eles, na realidade, eram pequenos cristos, crucificados um pouco, cada dia, quase sempre sem marias para consolá-los.

P.S. – Queria contar mais coisas do Bonitão e dos nossos malucos para as memórias que o psiquiatra Rogelio Casado está organizando. No entanto, estou isolado, no interior do Paraná ministrando curso para os índios Guarani. Ontem, às 16:00 horas, interrompemos as aulas para ver Brasil e França. Depois eu conto como é que foi a torcida.

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3 Comentário(s)

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Claudio comentou:
15/12/2023
O autor não deixou bem claro qual sua intenção num texto que, tinha tudo para ser extraordinário, pois menciona uma personagem da literatura clássica. Caro José, qual era mesmo sua verdadeira intenção?
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Manoel Carlos Xavier comentou:
10/09/2016
Agradeço em nome da familia de Moacyr Fortes Xavier sua citação, fazendo-se apenas uma correção, não é Moacir Marques, mais sim Moacyr Xavier. Um fraterno abraço do povo de Aparecida.
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Taquiprati comentou:
11/09/2016
Obrigado,, Manoel, correçao feita.
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