CRÔNICAS

Revivendo Cosme

Em: 19 de Novembro de 2006 Visualizações: 9510
Revivendo Cosme
Ele estava lá, inteirinho, com seu sorriso largo e generoso, vestindo uma daquelas “goiabeiras” cubanas cheias de bolsos, ou então metido em um casaco azul chinês. Dava baforadas no charutão, se balançava numa rede com varandas, sempre falando de cinema, respirando cinema, vivendo cinema, lembrando cinema, sonhando cinema.
Fui ao cinema só para vê-lo, nessa quarta-feira, dia 15, na sessão de encerramento da 11ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico, realizada no Arte Sesc, no Rio de Janeiro. Na entrada, uma mostra de fotografias com imagens de Cosme. Lá dentro, a exibição do documentário ‘Revivendo Cosme’. Quanta saudade!

Assisti tudo pensando em ti, jovem leitor (a). Creio que tua geração merece saber quem é Cosme Alves Netto, esse amazonense tão especial que nos deixou cedo, em 1996, com apenas 59 anos, mas que ressuscita cada vez que pessoas se juntam em qualquer lugar da América Latina para falar de cinema, organizar um cine-clube ou participar de uma mostra.
Foi o que aconteceu nesse ano em Havana, Buenos Aires, Lima, Salvador, Rio Claro e, agora, no Rio de Janeiro. Essas cidades organizaram eventos que homenagearam Cosme, um apaixonado pelo cinema, pela contribuição decisiva que ele deu para a preservação da memória e do patrimônio cinematográfico brasileiro.
O Gordo e o Magro
O encantamento de Cosme pelo mundo mágico do cinema inicia na década de 1940. Nessa época, em Manaus, as pessoas abastadas comemoravam o aniversário dos filhos, contratando projeção a domicílio, que era interrompida várias vezes para trocar o rolo de filme. O projetor era manual.
Numa dessas celebrações, seu pai, o velho Cosme Ferreira Filho, empresário e escritor, alugou ‘O Gordo e o Magro’. Era a história de um playboy, que contrata o Gordo como mordomo e o Magro como motorista. Os três vão servir o Exército e bagunçam o quartel. De passagem por Manaus, em 1980, Cosme relembrou o fato, enquanto saboreava uma peixada no restaurante Panorama, na Baixa da Égua.
- Em Manaus, passava tudo e eu vi tudo - ele conta. Em sua infância e adolescência, não perdia uma matinê do Polytheama ou do Guarani: comédia, bang-bang, seriado, faroeste, chanchada, suspense, musical. Recortava notícias e anúncios de jornais sobre o filme, colando-os num caderno, onde anotava também seus comentários e impressões.
Ele fez parte, em Manaus, de uma geração fascinada com o cinema, gente inteligente e brilhante como os irmãos Djalma e Gualter Batista, Márcio Souza, Freida Bittencourt, Renan Freitas Pinto, Felix Valois, Ediney Azancoth, Joaquim Marinho, Selda Costa, aos quais se somaram Felipe Lindoso, Aldisio Filgueiras, Narciso Lobo, Aurélio Michilles, entre outros.
Quando terminou o segundo grau, Cosme mudou de mala e cuia para o Rio de Janeiro, onde eu o conheci, em 1966, apresentado por um amigo comum, o professor Orígenes Martins. Cosme dedicou suas energias às atividades do Grupo de Estudos Cinematográficos (GEC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE) e depois à Cinemateca do Museu de Arte Moderna, da qual foi curador.
Embaixador do cinema
O documentário mostra, muito discretamente, a atuação política de Cosme, primeiro como militante da Juventude Universitária Católica (JUC) e depois da Ação Popular (AP), na luta contra a ditadura militar. Mas exibe, sobretudo, entrevistas com pessoas ligadas ao cinema que o conheceram. Outras informações são complementadas pelo Catálogo da 11ª Mostra.
- Cosme empenhou sua grande vitalidade intelectual na busca de filmes que não chegavam ao circuito comercial, em particular produções da União Soviética, do Leste Europeu e da América Latina. Para ele, a razão de uma cinemateca sempre foi a pesquisa, o restauro, a conservação e a difusão do bom cinema - diz Guido Araújo, explicando porque a XXXIII Jornada Internacional do Cinema na Bahia resolveu homenageá-lo.
Cosme, ‘o embaixador do cinema brasileiro’, foi também um dos organizadores da programação alternativa do Cinema Paissandu, no Rio, de 1966 a 1970. No documentário, há trechos de uma entrevista gravada por Zelito Viana duas semanas antes de sua morte. Ele transmite paz, serenidade, bom humor, alguém de bem com a vida.
- Nunca houve entre nós uma preocupação permanente de guardar o produto cinematográfico, que é um documento valioso para compreender o país - lamenta Cosme, informando que no Brasil, entre 1911 e 1913, foram produzidos mais de duzentos filmes que se perderam. Seu trabalho consistiu em tirar do esquecimento parte dessa memória.
Era membro do Comitê Diretor da Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF) e foi eleito presidente do Júri do Festival Internacional de Filmes Etnográficos (Cinema du Réel) realizado em abril de 1982, no Centro Georges Pompidou, em Paris, com uma atuação que foi registrada por Marcos Mendes:
- “O brasileiro Cosme, moreno, baixo, parecendo um hindu, falava francês corretamente na sala de projeção, como se conversasse com amigos. Sua voz fluía suave, simpática, tranquila, sem afetação”. Aparece na foto com Joris Ivens e Jean Rouch, três homens “que optaram por um cinema moral e poético, distante do lucro fácil e da massificação”.
Dias antes de morrer, telefonou para uma amiga:
- Quero morrer dormindo.
Morreu dormindo.
 O texto mais comovente registrado no Catálogo é o depoimento de Glória Barbosa, companheira de Cosme, depois de sua morte. “A mim coube dar um destino aos seus objetos sagrados: o casaco azul chinês está no armário... O guardo como tesouro de uma velha sovina. Só a rede não está no lugar, pois me abstive dessa tristeza. A farinha d’água deitei no mar para servir de alimento aos outros filhos da grande mãe...”
A melhor homenagem a Cosme é converter suas ideias em políticas públicas para a cultura e para o cinema. Não é o que ocorre no Amazonas. O secretário estadual de Cultura, Roubério Braga, responsável pelo Amazonas Film Festival, ignorou a intelligentsia amazonense na pessoa de Cosme, que tem reconhecimento internacional, preferindo reverenciar “celebridades” como Luciano Szafir e Mauro Shampoo (vixe, vixe!), numa visão mais comercial e midiática do que cultural. Faz sentido, porque sua política é a negação daquilo que Cosme pensou e fez.
O que Berinho entende por política cultural é uma macaquice. Para ele, filme é ‘film’, o que foi ironizado no Jornal Nacional. Convidou 150 “celebridades”, pagou cachê para eles com dinheiro do contribuinte, proporcionou-lhes boca livre, macaqueou Hollywood com um tapete vermelho para que desfilassem, botou o Matt Dillon para dar mamadeira ao filhote de peixe-boi no INPA e impressionou os bocós com um discurso digno de Odorico Paraguassu, com tradução simultânea para o inglês. Bem que eu queria escrever um artigo apoiando a candidatura de Aristófanes Filho para a OAB, mas o Berinho não deixou.

 

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