CRÔNICAS

O Parque dos Orixás e as antas de paletó

Em: 10 de Dezembro de 2006 Visualizações: 11446
O Parque dos Orixás e as antas de paletó

.Vinte antas de paletó e gravata, calçadas com sapatos bem engraxados, atuam na Câmara Municipal de Manaus. Elas serão processadas por profanação de túmulos, porque nessa semana, por puro preconceito, remexeram os ossos do doutor Geraldo Pinheiro e, por extensão, os ossos de dona Elisa, que é sua vizinha, no cemitério de São João Batista. Calma, que eu me explico, mas antes quero filosofar sobre o preconceito.

O preconceito é uma merda. Desculpa, leitor (a) pudibundo (a), mas essa é a palavra certa: uma merda. É a pior forma de burrice, exatamente porque é um pré-conceito, ou seja, ANTES MESMO de conhecer a realidade, o indivíduo forma um conceito definitivo sobre ela. Pior: ele se recusa a conhecê-la, porque não quer mudar de opinião.

Se o preconceito for compartilhado por pessoas humildes, sem acesso à informação, é recomendável ter paciência para ajudá-las. Mas se o preconceito é de quem tem o poder para decidir sobre nossas vidas, aí devemos ser implacáveis. Foi o que aconteceu nesta semana na Câmara Municipal de Manaus, quando vinte antas barrigudas arquivaram um projeto, não aceitando sequer discuti-lo para saber se era bom ou ruim.

Parque dos Orixás

O projeto, apresentado pela vereadora Lúcia Antony (PCdoB), é muito bom. Pretende criar em Manaus o “Parque dos Orixás”, um local público para as manifestações religiosas do Candomblé e da Umbanda, como existe em muitas cidades brasileiras em homenagem à religiosidade afrobrasileira. É uma forma do povo de Manaus agradecer a contribuição dos negros pra nossa cultura local. Foi engavetado na hora, sem discussão, por decisão das antas municipais, comandadas pelo vereador do PSC (vixe, vixe!), um tal de Amauri Colares (pé-de-pato mangalô três vezes), chefe da bancada evangélica.

Pode até parecer que as antas adotaram postura republicana, separando a religião da política. Mas não foi assim. A prova é que, na mesmíssima sessão, como se quisessem tripudiar a fé dos outros, aprovaram a criação do Dia das Assembléias de Deus e do Movimento Pentecostal. Ora, homenagear uma religião e negar às outras o mesmo direito revela intolerância religiosa, preconceito e ignorância.

O que é que essas antas mesquinhas ignoram? Elas desconhecem, por exemplo, o trabalho do saudoso Geraldo Pinheiro, falecido em março de 1996. Ele pesquisou os terreiros de sobrevivências africanas nos subúrbios de Manaus, sobretudo os batuques da Mãe Joana, Mãe Quintina, Maria Rita, Ifigênia e Negro Marcos. Publicou em 1942 uma breve, mas decisiva comunicação, no livro “A Casa das Minas” de Nunes Pereira.

Lá, o doutor Geraldo nos mostra que os negros no Amazonas foram poucos durante o período da escravidão, mas na época da borracha muitos deles vieram do Maranhão e enriqueceram nossa cultura local, influenciando nosso jeitão de ser e “a vida moral e intelectual da cidade”. A importância desse grupo Mina-Jeje, em São Luis, foi tão forte que sua influência se espalhou por todo o vale amazônico.

A Mãe Joana, por exemplo, era maranhense, de um terreiro de Cabinda. Geraldo Pinheiro, que conviveu com ela, diz que era “portadora de um nome tradicional em Manaus, conceituada por muitos que lhe conheciam, de perto, as excelências de uma alma boa e abnegada, mas que enchia de terror, por sua vez, a nós outros, quando crianças, ao ouvir nas noites fechadas, o som longínquo e soturno dos tambores”.

A bancada da macumba

O terror. Antes do ecumenismo do papa João XXIII, a igreja católica combatia, de forma intolerante e sem conhecimento de causa, as religiões e os cultos afro-brasileiros. Os donos de escravos convenceram muita gente de que macumba era um rito secreto celebrado por negros sedentos de sangue, mortes misteriosas, bruxarias e feitiçarias. Discriminaram a fé dos negros e seus orixás, as belas indumentárias e as canções ritmadas, algumas delas recolhidas em Manaus pelo doutor Geraldo nos anos 40.

Nessa época, um decreto de Getúlio Vargas permitia considerar as religiões afro-brasileiras como contravenção penal, passível de um a seis meses de prisão (Decreto-lei  nº 3.688, de 3/10/1941, art. 27). Quase meio século depois, a Constituição Federal de 1988 garantiu o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de suas liturgias. Mas só recentemente, em 1999, o decreto de Vargas foi revogado por FHC e o Brasil, enfim, se libertou, legalmente, do preconceito dos donos de escravos.

Fica claro que as antas municipais de Manaus, atrasadas e arcaicas, querem uma volta ao passado escravista de “perseguição às bruxas”. Vários leitores me enviaram mensagens indignadas. Numa delas, o biólogo Ivo Seixas Rodrigues, da Fundação de Medicina Tropical de Manaus, reclama: “Escreve alguma coisa a respeito, pelo amor de Deus, de Oxossi, de Budha, de Maomé, de Moisés, do povo...”

O Ivo e os outros leitores têm razão. Não podemos deixar que as antas triunfem. Temos de combatê-las, fazendo alguma coisa. Fiquei com saudades do padre Guidotti, um jesuíta porreta, que comprava todas as brigas boas de Manaus. Ele contrataria um bom advogado para impetrar um “hábeas Oxossi”, para entrar com uma liminar, uma ação pública, um mandado de insegurança qualquer, sem poupar o latinorum, é claro. Afinal, “in dubita, pro macumborum et pombagirorum”.  

Felizmente, a população de Manaus reagiu politicamente. Na sexta-feira, uma passeata desceu a av. Eduardo Ribeiro cantando músicas afro-sacras. Os manifestantes entraram na Catedral, onde foram recebidos com respeito e carinho pelo padre Luis Gonzaga, representando o bispo, dom Luis, que tem sensibilidade ecumênica. Depois, cercaram a Câmara Municipal e promoveram um descarrego, explodindo uma pequena porção de pólvora para expulsar os maus espíritos. Despejaram sal grosso e lavaram a entrada do local.

Se isso não der certo, já encomendei um despacho bem pai d’égua, com urubu e farofa de farinha do Uarini. A repórter Ariranha me mandou fotos de cada anta, e como na música do Zeca Pagodinho, vou botar esses retratos num prato com pimenta, raspa de chifre de bode, pedaço de rabo de jumenta, asa de morcego, sexo do boto e da bota, emprestado pela minha amiga Charufe, e pó de chulé de anta.Dessa forma, nas próximas eleições, despachamos essas antas boçais, que não nos representam, para o balatal.

O que jamais perdoarei a essas antas encapirotadas é de terem me obrigado a fazer o que vou fazer agorinha: elogiar Paulo De Carli (PDT), Fabrício Lima (PSDB) e Braz Silva (PFL). Os três, somados com o PT e o PC do B, formaram a bancada da macumba e defenderam o “Parque dos Orixás”, com argumentos inteligentes. Sem qualquer ironia, digo que estou orgulhoso da atuação, nesse caso, do Di Carlinho, do Fabrício e do Braz.  Prometo que se o Di Carlinho fizer uma corrupçãozinha, bem pequena – espero que não faça – vou fingir que não vi, só por causa de sua defesa da liberdade religiosa.

P.S. – Participei no inicio da semana, em Soure, da III Jornada Cultural da Ilha do Marajó organizada pela Pajé Zeneida Lima. Agora, estou em São Paulo, com outros pesquisadores, no seminário de preparação para uma ópera multimídia sobre a Amazônia. Queria escrever sobre os dois eventos. Ou então sobre o preconceito de outra anta, Edmilton Neves, que em polêmica com Welton Oda, em A Crítica, esculhambou os paraenses, argumentando: “Sou um amazonense puro (quá,quá quá).Defendo meu Estado com unhas e dentes”. Que tal tentar defender também com a cabeça, Edmilton Antinha?

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