Agora, lábios meus / dizei e anunciai...
(Ofício da Imaculada Conceição)
O que significa “pissi nossi core”? Só Deus sabe. Ele e sua mãe Maria entendiam, mas não atendiam aquilo que os lábios de Jean-Paul pediam insistentemente, isso por razões que a leitora logo saberá, se tiver um pouquinho de paciência para conhecer os dois personagens reais dessa história do bairro de Aparecida: o Ademir Doido e a Amazonina, bem como sua relação com as eleições municipais de 15 de novembro.
Comecemos pelo morador de rua chamado inapropriadamente de Doido por analfabetos que não sabem ler a liberdade quando com ela se confrontam. Ele não era doido, era tão somente um homem livre que fazia o que lhe dava na telha. Ademir era louco sim, mas louco de amor pela Amazonina, embora não fosse correspondido. Vivia rindo, não de felicidade. O sorriso enganador se devia ao fato de que seus dentes superiores desalinhados apontavam para fora da boca e davam-lhe a aparência de cotia risonha, o que prejudicou sua articulação têmporo-mandibular.
Ao falar, sempre dançava com um pé na frente e outro atrás, balançando o corpo e sacudindo freneticamente a cabeça. Não era doidice não. Havia razões para isso, conforme constatou o “doutor” Newton Bocão, que cursou medicina em Belém até o 2º ano e era, portanto, a maior autoridade médico-sanitária do bairro. Um dia, a pedido de sua namorada Dile, ele examinou Ademir de cabo a rabo e constatou que o balanço da cabeça se devia ao excesso de seborreia atrás da orelha, o que causava coceira. O diagnóstico foi confirmado pelos médicos do Hospício Eduardo Ribeiro.
Internado no manicômio por meses, mergulhou em profunda tristeza. O conhecido enfermeiro, sr. Urbano, quis distraí-lo. Deu-lhe de presente um exemplar da Cinelândia, revista de cinema, cuja capa trazia foto de Jean-Paul Belmondo que em 1963 filmou “O homem do Rio” em Paris, Brasília, Rio e nas vielas da Cidade Flutuante de Manaus, onde seu personagem dá porrada em bandidos, se lança de paraquedas de um teco-teco, fica pendurado numa árvore e escapa por pouco de ser devorado por um jacaré. Os jornais locais e “O quintal da minha casa”, projeto de documentário do cineasta Aurélio Michilles, deram ampla cobertura ao fato.
Belmondo de igarapé
Na sua passagem por Manaus, Jean-Paul Belmondo ficou hospedado no Hotel Amazonas. Uma noite, cansado das filmagens, se recolheu a seu quarto. E para se divertir, de pura molecagem, colocou farinha de mandioca na tubulação do ar condicionado, arruinando o sono de todos os hóspedes, inclusive o seu. No dia seguinte, o Diário da Tarde da Empresa Archer Pinto ostentava a manchete berrada por jornaleiros nas ruas de Manaus e nos becos de Aparecida: “Ator francês enlouquecido bota farofa no ventilador”. A cidade não comentava outra coisa.
Dizem que o remédio de um é outro na porta. Ademir ficou fascinado ao saber que havia alguém com um parafuso frouxo, considerado tão tantã e biruta quanto ele. O deslumbramento cresceu quando viu na página interna da Cinelândia uma foto de Jean-Paul Belmondo beijando Brigitte Bardot com direito a chupão no cangote. Com todo o respeito, era isso o que Ademir queria fazer com a Amazonina, por quem estava gamado. Por isso, trocou de nome. Exigiu doravante ser chamado de Jean-Paul, uma espécie de Belmondo de igarapé, esperando dessa forma atrair a beleza feminina a seu redor.
Celeiro de mulheres bonitas, o bairro de Aparecida foi o berço da Terezinha Morango, Miss Brasil escolhida em 1957 como a segunda mais bela do mundo. Lá viveram Auxiliadora Câmara, Anette Stone e Maria Those-Those. De beleza estonteante, Amazonina não fugia à regra. Aos sábados, chovesse ou fizesse sol, às 5h50 da manhã, quando o rádio da dona Zilda Garcia, sua vizinha de parede, anunciava o programa “Acorda Manaus” na Rádio Rio-Mar, ela cumpria um ritual ao sair de sua casa na rua Carolina Neves. Para onde ia a “belle de jour”?
Vestida com o uniforme branco da Pia União das Filhas de Maria, a fita azul em volta do pescoço, Amazonina ia assistir à missa. Moça recatada e do lar, seus olhos verdes incendiavam o coração do nosso Jean-Paul, que já a esperava na porta da igreja de Aparecida, onde dormira. Ela o ignorava olimpicamente e entrava no templo altaneira, seguida por ele, fiel escudeiro, sujo e em jejum, todo desmilinguido. Seus dentes iam alguns palmos na frente do corpo. Sentado sempre no banco atrás dela, cantava o Ofício inteirinho da Imaculada Conceição.
Comédia da marmita
Regina, filha de dona Elisa, puxava o canto, secundada por sua irmã Tequinha:
“Agora lábios meus / Dizei e anunciai
Os grandes louvores / da Virgem Mãe de Deus”.
Jean-Paul acompanhava a melodia, mas seus lábios diziam e anunciavam outros louvores. Ele improvisava a letra com palavras incongruentes, tudo dentro do ritmo e da regra litúrgica:
“Tuturubim tetê / Quatipuru Nerupecê /
Cunhado Osmanzinho / Cadê tua maninha?”
As moças do coral riam discretamente, girando o dedo indicador em movimentos circulares em torno da têmpora. No final do longo canto na parte que versa: “Ouvi, Mãe de Deus / minha oração / toquem vosso peito / os clamores meus”, Jean-Paul balançava a cabeça, batia palmas e pedia que a Mãe de Deus ouvisse o seu clamor particular:
Pissi nossi core / Virge Sacratisse
Que Amazonina seja / Minha namorada.
O discurso ininteligível nos dois primeiros versos e profano nos dois seguintes provocava galhofa de quem achava que era tudo invenção do Jean-Paul de igarapé. E era. Aconteceu, no entanto, uma estranhissima coincidência. O pesquisador Bepi Sarto, funcionário do IPHAN, fuçando os arquivos do Vaticano, encontrou pedaços de um manuscrito do séc. XV com o Ofício da Imaculada Conceição redigido pelo monge franciscano Bernardino de Bustis em louvor à Nossa Senhora. O documento mostra que a frase entoada pelo ex-Ademir Doido vem do latim arcaico e foi usada no séc. II a.C. por Plauto na sua peça teatral Aulularia (A Comédia da Marmita). O verso Pissi nossi core pode ser traduzido como Atendei o nosso pedido. Na Idade Média, o monge acrescentou o Virge Sacratisse, endereçando a súplica à Virgem Santíssima.
O manuscrito assegura ainda que a graça seria sempre concedida aos que cantavam o Ofício durante vinte sábados seguidos. Ora, o nosso Jean-Paul havia percorrido o dobro disso, mas sua amada, hoje ministra da Eucaristia, nunca lhe deu bola e casou com um advogado com quem vive feliz. Resta saber: por que as súplicas não foram ouvidas?
Acorda, Manaus
Na resposta – é incrível! – reside a chave para explicar até os resultados antecipados das eleições. O documento rasurado decifrado por Bepi Sarto esclarece que o pedido, para ser atendido, tem de ser expressão de uma vontade coletiva na busca do bem comum. O “pissi” é “nossi” (nosso). Acontece que o ex-Ademir perdeu a Amazonina porque rezava sozinho por um desejo individual.
Conscientes desse senso comunitário, aos sábados, Regina e Tequinha seguem a filosofia adotada como lema pela Escola Oga Mitá, no Rio, alicerçada no Ubuntu, que traduzido das línguas Bantu quer dizer: Eu sou porque nós somos. Agora, elas puxam assim o canto coletivo com suas irmãs que entoam uníssonas:
Pissi nossi core / Virge sacratisse
Zé Ricardo seja / Prefeito de Manaus.
A vontade coletiva de parte da família e do bairro de Aparecida pede votos para Zé Ricardo (13) e para vereador Waldemir José (13067), João Pedro (13610), Socorro Papoula (13813) e Delmir Tikuna (13601).
O ramo familiar de Niterói, que é extenso e diverso, canta coletivamente por Flávio Serafini (50) para prefeito e para vereadores Renatinho do PSOL (50123) ou Paulo Eduardo (50001) e, no Rio, Tarciso Motta de Carvalho (50123). O canto vai também para todos os candidatos indígenas, representados aqui por Fidelis Baniwa (50) para prefeito de Santa Isabel (AM), Daniel Munduruku (65-PCdoB) para prefeito de Lorena (SP) e para vereadores, Márcia Kambeba (50777) em Belém do Pará, Tereza Arapium (50577) no Rio, Cacique Hyral Moreira (PV 43433) em Biguaçu (SC) e tantos outros.
São mais de meio milhão de candidatos em todo o Brasil, mais precisamente 556.033, entre os quais muitos reconhecidamente picaretas e oportunistas. Não acredite em quem anuncia demagogicamente que “Juntos podemos mais”, quando sua prática sempre foi na base do “Então morra”, “Eu sou eu e o boi não lambe”, “Farinha pouca meu pirão primeiro”, “Mateus, primeiro os meus”. É preciso saber checar o discurso com a prática seguindo a proposta curricular de Bertrand Russell: “Que as escolas primárias ensinem a arte de ler com incredulidade os jornais” e agora de desconfiar também dos discursos no horário eleitoral gratuito.
Ah, nos Estados Unidos, pissi core para o Biden ganhar. Se acaso ele der uma de Tancredo Neves, como insinúa certa mídia, pissi nossi core para que Kamala Harris assuma a presidência. No dia da eleição pissi nossi core neles!
P.S. Meu amigo Euclides do Teatro de Bonecos Dadá diz que confia no que escrevo porque viveu e testemunhou parte do que aqui costumo relatar. No entanto, desconfia que quando falo do bairro de Aparecida é pura invencionice, mas mesmo assim ele acredita “porque é para o bem da humanidade”. Discordo. É tudo verdade. Quero ver o Capitão mortinho no inferno se eu estiver inventando. Mudei apenas os nomes dos atores que estão vivos. Taí o Bepi Sarto que não me deixa mentir. Ou deixa?