CRÔNICAS

Nem Trump, nem Temer: xereca no rio Solimões

Em: 29 de Janeiro de 2017 Visualizações: 23192
Nem Trump, nem Temer: xereca no rio Solimões

“O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem

 sobre o homem que não sabe ler".  Mark Twain (1835-1910).

O prazer. Não foi através dos olhos, mas dos ouvidos, que descobri no final dos anos 1950 o prazer da leitura. Aconteceu em Coari (AM), no Solimões. Lá, no seminário redentorista, no refeitório, na hora do almoço, enquanto a gente comia em silêncio, um colega maior lia em voz alta romances consagrados da literatura universal. Cada dia um leitor diferente avançava alguns capítulos, que seriam comentados no recreio. Dava de dez a zero nas telenovelas. Foi assim com o Trem de Istambul de Graham Green, Lord Jim de Joseph Conrad e As aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain, entre tantos outros.

Literatura para nós não era a palavra escrita, mas a falada. A voz desses leitores, num passe de mágica, imprimia cor local a qualquer narrativa, transformando cenários e personagens. O rio Mississipi, palco das peripécias de Tom Sawyer, se convertia no Solimões. O Cass Lake vinha lá de Minnesota para desaguar no Lago Mamiá e a pequena aldeia de São Petersburgo, no Missouri, se tornava a comunidade São Francisco do Jacaré. Mastigávamos o feijão cozinhado pela dona Maritó, saboreando em silêncio histórias narradas por grandes escritores. Era uma senhora viagem.

O sucesso de cada capítulo dependia de quem estava lendo em voz alta. Quando o leitor era inexpressivo, monocórdio, sem variação, tropeçando nas palavras com uma enunciação desleixada, aí diminuía o interesse e a comida provocava indigestão. Mas havia leitores que se tornavam coautores entusiasmados do texto que liam, envolviam os ouvintes com seu timbre bem ajustado, pausa na hora certa, ritmo de leitura cadenciado, mostrando ângulos que talvez não fossem percebidos numa leitura silenciosa individual. Era o caso do Danilo Xereca. Ele só teve um pequeno vacilo, mas que lhe foi fatal.

O ex-Guabiru

O Danilo era alto, magricela, tinha pescoço curto e fino, o que lhe valeu o apelido de Guabiru, com o qual entrou no seminário, mas quando "polacou" anos depois e saiu para a vida leiga, já estava carimbado com o codinome de Xereca, adquirido numa de suas empolgadas leituras das aventuras de Tom Sawyer. O curioso é que no dia a dia, era tímido, meio gago, mas se agigantava ao ler no refeitório. Sem qualquer afetação, criava vozes diversas para cada personagem, grossa ou fina, chorosa ou alegre, perplexa ou indiferente, de acordo com a situação. Enfim, um extraordinário leitor-ator.      

Depois de ouvi-lo, aí sim queríamos ler o livro silenciosamente e, nesse sentido, nos fizemos leitores através da voz do Xereca e de outros igualmente competentes e performáticos, que dominavam o sentido da leitura através da voz impostada, da entonação, da dicção e da pronúncia, da dramatização, enfim da interpretação convincente. A leitura em voz alta era uma oportunidade de compartilhar coletivamente emoções e sentidos.

As Aventuras de Tom Sawyer se prolongaram por inúmeros almoços ao longo de muitas semanas. Saboreávamos diariamente cada capítulo, esperando ansiosamente a vez do Danilo Xereca, que com sua voz modulada retornava uma vez na semana para imortalizar a obra de Mark Twain. No recreio, discutíamos apaixonadamente quem matou o dr. Robinson: o índio Joe ou o bêbado Muff Potter flagrado com a faca na mão? E isso algumas décadas antes da novela Vale Tudo que mobilizou o Brasil inteiro para identificar a assassina de Odete Roitman.     

Tom Sawyer desenhado por Mark Twain e colorido pela voz de Danilo Xereca era um moleque, órfão, que morava com sua tia Polly num povoadozinho sulista às margens do rio Mississipi, no séc. XIX, na época cruel da escravidão. Seu grande sonho era se tornar pirata, mas tudo mudou no dia em que testemunhou um assassinato no cemitério.

Xereca: a viúva

Embora cada seminarista, como futuro padre, estivesse fadado ao celibato, todos nós nos apaixonamos pela namoradinha do Tom, a sedutora Becky Thatcher, filha do juiz da comarca, que desfilava com suas tranças louras e seus olhos azuis. Na nossa imaginação a Bequinha era uma caboquinha linda daquelas de pé roxo. Quando a mocinha entrava em cena, Danilo Xereca, ofegante, caprichava na leitura, com enfeitiçados suspiros capazes de  nocautear o mais renitente celibatário. Até mesmo o controvertido Ives Gandra Filho, da Opus Dei, para obrigar a bela Becky a obedecê-lo, seria capaz de desistir da vaga do Teori Zavaski no Supremo Tribunal Federal (STF), vaga que implora ajoelhado ou de cócoras.

Não lembro mais se foi antes de Tom Sawyer se perder numa gruta com a fulgurante Becky, ou se foi depois das férias escolares quando ficou acamado com sarampo. Sei que em algum momento entra na história um personagem absolutamente secundário, a viúva do juiz Douglas, mãe de Becky, justamente num dos capítulos lidos por Danilo, que a essas alturas ainda não era Xereca. Foi o episódio vivido pela viúva do juiz que lhe pespegou o apelido.

Acontece que a palavra viúva, que aparece seis vezes no texto, foi lida em voz alta, já no final do almoço, eletrizando a todos nós com uma pequena mudança. É  que o nosso leitor, com a empolgação, pretendendo realçar o papel da protagonista, viu outra coisa. Embora tenha aprendido a ler na cartilha em que o Ivo viu a uva, o que Danilo viu foi a "vulva" e, em vez de pronunciar "viúva", com todas as letras, falou seis vezes "vulva", em alto e bom som. Usou todos os recursos vocais para trazer a "vulva" para cá, levar a "vulva" para lá, era "vulva" aqui e "vulva" ali. Não deu outra. Perdeu ali mesmo o apelido de Guabiru, passando a ser conhecido, a partir de então, com a honrosa alcunha de Danilo Xereca, com o qual ficou célebre.

Tudo bem, em tempos de Trump, Temer, Gilmar Mendes, Ives Gandra Pai e Filho, Eike Batista e Sérgio Cabral posso ser cobrado por contar aqui abobrinhas. Acontece que passei a semana sem ler jornal, nem ver televisão, ministrando curso em Aracruz (ES) para os Tupinikin e os Guarani, que me salvaram, poupando-me desses dissabores. Deixo-vos aqui, portanto, com o Danilo que talvez agora nem seja mais Xereca.

Aliás, em algum lugar, um jornalista escreveu sobre a pobreza vocabular do Trump, suas limitações discursivas, que podem ser extensivas ao Michel Fora e a toda sua corriola. Desconfio que esses caras nunca tiveram acesso à literatura de grande porte. Saudades dos livros de Mark Twain.

P.S. - A disciplina Línguas Indígenas, que compartilhei com a profa. Ana Suely Cabral, faz parte do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal do Espírito Santos (UFES), criado em 2010 dentro do Programa de Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (PROLIND), vinculado à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), ligada ao Ministério da Educação (MEC). São 73 alunos, a maioria esmagadora formada por mulheres muito inteligentes, que tornam ainda mais agradável o trabalho do professor. Foi a literatura oral indígena que me trouxe a lembrança da leitura coletiva em voz alta, aproveitando os intervalos do curso para escrever essas mal traçadas linhas. Na disciplina trabalhei, entre outros, com textos dos linguistas Wilmar D´Angelis e Márcio Silva e da antropóloga Maria Inês Ladeira. O curso é coordenado com entusiasmo e eficiência pela antropóloga Celeste Ciccarone.

 

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23 Comentário(s)

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graça barreto comentou:
19/05/2017
Até agora Bessa contas as histórias malinas dos seminaristas que furavam o cerco das opressões eclesiásticas, mas quero te contar outras malinesas, aquelas que as mulheres sofreram com as repressões que fizeram a vocês e que sofremos, como mulheres suas experiências de malinesas e escapes. Tinha 18 anos, desde os 14 anos trabalhei na paróquia da Santíssima Trindade, junto com Lúcio Flávio Pinto, no Movimento da Juventude Católica. Perdi meu pai nessa idade e substituí por outro, que foi meu guia espiritual. Homem honesto e querido e até hoje, mesmo após sua morte considero meu pai espiritual. Foi com ele que aprendi Filosofia, li São Thomas de Aquino, São João Batista de de la Salle, Michel Quoist e caminhei até Sartre e Paulo Freire. Achei que estava pronta para vida e saí para as CEB´s. Trabalhei com as comunidades de base, ingressei na FASE e fui para o interior: Cametá, Santo Antônio de Tauá e daí por diante. Mas a mais importante experiência foi no bairro do Jurunas, em Belém, quando criei as Escolas Comunitárias. E lá estava eu lutando pelos comunitários no direito pela terra urbana. Até que os padres me descobriram e fiquei grávida. Me denunciaram, me encarceraram na casa das redes, aquela lá no centro de Manaus. Me enviaram para o Maranhão, afinal o vigário da Betânia tinha que ser livrado e continuar vigário. Doente, sem recursos me mandaram de volta para Manaus. Matheus, aquele filho da puta, chefe da CNBB e do MEB de Manaus ( um veado que foi flagrado na estrada do aeroporto com um Jovem) me condenou a ficar sem emprego. As irmãs Dorothéias foram cumplices. Tenho que narrar mais desse exílio eclesiástico. Fiquei estéril seus seminaristas eunucos. olhe a foto no seu face. VAI ME DELETAR?
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Cledes Markus comentou:
01/02/2017
Maravilhosa esta crônica. Lato Maravilhoso ver a valorização da linguagem e narrativa oral. Bom ouvir também sobre o Povo Tupinikin. Tivemos vários estudantes deste povo aqui no curso de Especialização Sensu sobre \"Educação, Diversidade e Culturas Indígenas\" realizado pelo COMIN em parceria com a Universidade comunitária Luterana - Faculdades EST. Estudantes Tupinikin sempre muito empolgados e envolventes. Abraço amigo do COMIN! Cledes - Assessora de Formação do COMIN
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Ana Stanislaw comentou:
30/01/2017
Maravilha Bessa! Li, as tuas mal traçadas linhas, ouvindo você me narrar. Não pude evitar o riso. Obrigada por essa tua crônica inteligente, divertida, bem no teu estilo.
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Félix Adugoenau Rondon comentou:
30/01/2017
A literatura oral indígena é ainda uma literatura pouquíssima explorada - para não dizer que não é explorada na maioria das universidades brasileiras - no mundo acadêmico e também escolar.
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Antônio Fernandes, o Tracajá (de Alenquer) (via FB) comentou:
30/01/2017
Catatote, você tem boa memória, mas falhou. Ninguém nunca chamou o Guabiru de Xereca, só voce. Como ele era comprido, o apelido mesmo era Xerecão, mas ninguém ousava falar com medo do padre diretor que um dia deu uma surra, acho que no Tiburcio, porque chamou o Xerecão.pelo apelido. Mas já lá vão 60 anos.
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João Pedro Gonçalves (via FB) comentou:
29/01/2017
Lembrei de momentos do meu Colégio Agrotécnico. Bonito texto estimado Bessa.
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Eunice Maria Ferreira (via FB) comentou:
29/01/2017
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Egydio Schwade (via FB) comentou:
29/01/2017
Bessa, tambem passei por essa experiencia da leitura durante o almoço, na Escola Apostólica de Salvador do Sul/rs. Ali o mesmo leitor ocupava a \"tribuna\" durante uma semana inteira. Lindas lembranças!
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Nilda Alves (via FB) comentou:
29/01/2017
Independente de ser, segundo o autor, uma história ligeira, sabemos como mão, avó e professora a importância da leitura oral para formar um leitor.
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Alfredo Mario Lopes (via FB) comentou:
29/01/2017
As bases epistemológicas da Teoria Xavasca
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Severiano Rodrigues (via FB) comentou:
29/01/2017
Realmente essa é um bom caminho para despertar o gosto pela leitura: ler em voz alta. Se todos nós tivessemos um Xereca em nossas vidas, seriamos excelentes leitores.
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Adeice Torreias (via FB) comentou:
29/01/2017
Depois dessas \"abobrinhas\" letradas , é capaz que se tenha de temer pelo futuro das aulas dos índios capixabas. \" ENSINAR ÍNDIO É TEMEROSO\" TRUMP/TREME.
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Rita de Cássia Diogo comentou:
29/01/2017
Kkkkk... começando pelo título, não tem como não ler. Realmente, só esculhambando o já mais q esculhambado. Uma forma mais q adequada ao conteúdo. Abraços pra vcs.
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Ronaldo De Maria Derzy (via FB) comentou:
29/01/2017
Maravilha. Rindo muito dessas presepadas Xerequentas, TEMERarias e Trumpianas.
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Alessandra Marques (VIA FB) comentou:
29/01/2017
Nesses tempos de crescente conservadorismo, até o apelido do Danilo é um ato de rebeldia. Mais Danilos Xerecas, antes que a caretice acabe conosco.
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Josias Nunes comentou:
29/01/2017
Voltando aqui para dizer que eu me lembro da dona Maritó, ela tinha uma ferida braba na perna que náo cicatrizava nunca e por isso andava caxigando, mas cozinhava bem.
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Josias Nunes comentou:
29/01/2017
Não sei se você se lembra de mim, eu sou o Josias, mas conhecido como \"Cavaquinho\". Se o tal do Xereca, - esse apelido não é da minha época - for o Danilo Guabiru, então éle é a irmão do Tadeu, o \"Burrico\" (um cara super-inteligente, falava inglês fluentemente). Se o Xereca for o Danilo Guabiru, a ultima noticia que tive dele é que morava em Roraima.
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Marcelo Timotheo comentou:
29/01/2017
Adorei o texto, Bessa querido. E um viva ao Xereca.
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Felipe José Lindoso comentou:
28/01/2017
Bessa, sem firulas, a pergunta que não quer calar: onde anda o Xereca? Virou padre,.sina da qual escapaste? É pastor de igreja pentecostal. Ou cultiva vulvas?
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Bruno Vilela (via FB) comentou:
28/01/2017
E por onde anda o Xereca, Bessa?
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Artur Nobre Mendes (via FB) comentou:
28/01/2017
Leitura saborosa como de costume. Teus textos também me fazem recordar um professor que sempre destacava a origem comum das palavras saber e sabor e recomendava saborearmos a leitura. É o que sempre faço com tuas crônicas.
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Bruno Vilela (via FB) comentou:
28/01/2017
Um elogio jocoso à leitura em épocas de mediocridade.
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Elvira Eliza França (via FB) comentou:
28/01/2017
Muito divertido esse texto. Vale a pena ler.
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