Cinco camas, cinco opiniões.
O paciente do leito 116, seu Luiz, disse sem muita convicção:
- “Sei lá! Não contei. Devia ser uns 50 bacuris”.
O morador da cama ao lado, Valdeci, somou hip caroço hip por hip caroço, entre soluços, elevando o número para 80. – “Menos, menos! Foi a metade disso” -corrigiu Geraldão. Mas Levi discordou dele: “Seu cálculo está errado” - e fez, assim, um trocadilho com os rins cheios de pedras de seu vizinho. O maior de todos - um argentino apelidado de Dona-Mara (Maradona de revestrés) - aloprou:
-“Vos sos loco, che, el pibe se comió unos 200 bacuris”.
Cadê o bacuri que estava aqui? O gato comeu? Quem quiser ouvir a história do menino comedor de bacuris, que prossiga a leitura. Apresento-lhes, primeiro, o cenário, depois os personagens e finalmente a comilança de bacuris, que têm a ver com o trânsito de Manaus e o prefeito Amazonino (PTB – vixe, vixe!), como a seguir demonstraremos.
O cenário é o Hospital Pronto Socorro João Lúcio, em Manaus, um prédio de quatro andares. Vem, comigo, leitor (a). No térreo, passamos pela emergência, ambulatórios e centro cirúrgico. Subimos: no primeiro andar, atravessamos duas enfermarias divididas por um cortinado de plástico, com um total de 36 leitos. Agora, chegamos ao segundo andar, onde funcionam várias pequenas enfermarias, destinadas a pacientes cirúrgicos. Numa delas, a 209, com cinco leitos, estão os atores dessa história.
Os personagens cabem nos dedos da mão. São cinco recém-operados, numa enfermaria masculina, todos eles, portanto, marmanjos. Uns gozadores. Ficam o tempo todo na maior esculhambação, contagiando médicos, meninas da cozinha, pessoal da limpeza, maqueiros, acompanhantes e até enfermeiras emburradas. “O astral aqui é alto” – disse uma delas, considerada “gostosinha” pelo Pão Molhado. Esse bom humor se deve, talvez, ao fato de que, apesar da gravidade dos casos, nenhum deles é paciente classificado pelo jargão médico como JECA (Jesus está chamando agorinha).
Nenhum Jeca
O leito 116 é ocupado por seu Luiz, um senhor de idade, calmo e discreto, que mora em um sítio na estrada que vai para Iranduba. Na última terça-feira, ele foi operado, retirou a vesícula, dois cistos no fígado e a próstata. Seu vizinho da direita é um argentino boa-praça, parecidíssimo com meu amigo portenho que vive no Rio, o Carlos Sprei. Dona-Mara – coitado! – ficou todo esfulepado quando o ônibus em que viajava chocou de frente com um caminhão na periferia de Manaus. O outro vizinho, do leito 115, é o Valdecir, que teve uma trombose no braço.
Esse Valdecir tinha a porra de um soluço interminável, que não passava nunca. Dias e dias e ele não conseguia hip falar três palavras hip sem soluçar hip hip. Esgotados todos os recursos locais, os médicos recomendaram viagem de tratamento a Houston, Texas, onde foi curado o soluço do papa Pio XII. Lá, o doctor Joseph Oversea, famoso soluçólogo, trata com sucesso contrações espasmódicas do diafragma. Consciente de que Valdecir não tinha grana para tal viagem, Geraldão gritou apavorado:
- “Socorro! Ele está morrendo. Tem um refluxo no soro dele”.
Não era verdade, mas com o susto, Valdecir curou o soluço. A mulher dele agradeceu o tratamento de choque.
O quarto paciente – o mais sacana – é Levi Vieira Machado, 44 anos, maranhense, residindo atualmente na Rua 11, bairro Monte Pascoal. Estava trabalhando na construção de uma casa na Rua Uirapuru, fazendo o telhado, quando de repente, como uma manga, amadureceu, caiu lá de cima, e fraturou o fêmur.
- “Ele se esborrachou porque pensou que o par de chifres que a mulher lhe colocou era um par de asas” - zoou o Pão Molhado. Levi leva tudo na gozação. Os médicos furaram a tíbia dele com uma broca, atravessaram um ferro e colocaram um peso para fazer a tração.
O quinto paciente é Geraldo Lopes de Souza, 62 anos, cujo acompanhante é o seu próprio filho, o famigerado Pão Molhado, que fica olhando as pernas das enfermeiras em vez de cuidar do pai. Professor de história respeitado, Geraldão formou várias gerações de alunos no Colégio Militar. Com problemas renais, ficou durante cinco semanas na enfermaria do primeiro andar. Depois de operado, foi transferido para a enfermaria 209, vindo a ocupar justamente o leito 114, vago com a saída do Edmundo, o menino comedor de bacuris.
O comedor de bacuris
Quando Geraldão chegou, o colchão ainda cheirava a bacuri. O menino havia acabado de sair. A história estava viva, rolando por conta própria na comunidade narrativa da Enfermaria 209, gerando grande polêmica sobre a quantidade de bacuris ingeridos, motivada pelo fato de que essa fruta tem, muitas vezes, mais de um caroço.
Foi assim. Edmundo Pereira, um menino de 15 anos, morador do bairro de São Lázaro, em Manaus, viajou para Janauacá, no interior. Lá, pela primeira vez em sua vida, viu um bacurizeiro. Ficou deslumbrado e encantado com a baga volumosa do bacuri, com sua polpa branca, macia, delicadamente fibrosa, com seu cheiro e com seu sabor muito agradáveis. Alguns bacuris são ácidos, só servem para sorvete, refresco, doce ou pudim. Mas esses eram docinhos, docinhos, docinhos. Edmundo danou a comer.
Sem manual de instrução, ele foi comendo. Comeu um, comeu dois, comeu dez, vinte, trinta, foi comendo um depois do outro, engolindo casca, caroço e oscambau a quatro. Depois, almoçou jaraqui frito com farinha do uarini. Ficou entupido, dias e dias sem fazer cocô. Foi inchando, inchando. A família internou no João Lúcio, antes que ele explodisse. O raio x revelou que no seu aparelho digestivo havia inumeráveis caroços, como se fosse um cacho de uvas. O médico receitou duas lavagens. Sem sucesso. Injetou óleo mineral. Nada. Deu-lhe uma dedada, um toque retal, conseguindo retirar 17 caroços. E os outros? Tiveram que ser pulverizados e triturados com raios laser.
Levi se despediu de Edmundo, no dia em que lhe deram alta:
- “Meu filho, tudo tem seu lado positivo. Agradeça a Deus ter comido bacuri, que tem caroço pequeno. Já pensou se fosse tucumã?”.
O garoto ficou meio envergonhado com as gozações, mas saiu do hospital como membro de uma nova família – de sobrenome Bacury – da qual fazem parte a doutora Eneida, a Piticó e o Geraldo Coroca, nascidos no bairro de Aparecida.
Essas e outras histórias me foram contadas por telefone pelo Geraldão, quando liguei pra ele, querendo saber o resultado de sua cirurgia. Ele em Manaus, eu no Rio. Esse amigo de infância, fiel e querido, pai dos meus sobrinhos, que agora envelhece comigo, está geograficamente distanciado. A forma que encontrei de ficar perto dele foi ouvir e repassar essas histórias. Assim, compartilho o universo da enfermaria 209, onde pacientes bem humorados sabem que rir da própria dor faz bem à saúde.
Se o Lula, lá do Cazaquistão, com um chapéu de Luiz Gonzaga, pode declarar que o pústula do Sarney é um “homem especial”, por que eu não posso dizer que meu amigo Geraldão – o cara mais generoso que conheci – é uma pessoa comum, como eu, o Levi e tu, leitor (a)? É com ele que quero, hoje, fechar a coluna.
P.S.
- Ih, cacildes, havia esquecido do Amazonino Mendes, que está se revelando o pior prefeito que a cidade já teve. Humilhado pelo governador Eduardo Braga, que lhe deu um chá de cadeira de quase uma hora, ele sequer lembra as promessas de campanha. Onde estão as creches? Cadê o gabinete itinerante e os ônibus com internet de graça? Manaus, hoje, é um paciente Jeca. Está doente como o menino dos bacuris: com um nó na barriga. Um trânsito simplesmente in-fer-nal. A gente levava dez minutos de carro da Bola do Coroado até o Parque Dez, e agora pode ficar até uma hora e meia no mesmo trajeto. Vai piorar. Não adianta o prefeito receitar lavagem ou dedadas com viadutos. Vai piorar. Quem votou nele, que peça perdão aos que não votaram.