Companheiro João Pedro,
Mui digno senador da República
Saudações!
Escrevo esta carta, mas não repare os senões, para dizer o que sinto sobre o julgamento, depois de amanhã, no Conselho de Ética, da representação contra o presidente do Senado, Renan Calheiros. Ele é acusado de usar o cargo para anular uma dívida de R$ 100 milhões da Schincariol com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em troca, a Cervejaria comprou por R$ 27 milhões uma fábrica falida de refrigerantes da família Calheiros, avaliada em R$ 10 milhões.
Em nome da nossa velha amizade, senador, não vou tratá-lo de Vossa Excelência, porque poderia soar, aqui, como ironia. Afinal, nós nos conhecemos há trinta anos num contexto muito singular. Você era, então, um calouro universitário, arrojado e idealista, filho de uma mulher de fibra, funcionária da Biblioteca Pública, comprometida com o livro, a luz e o saber. Veio de Parintins, a terra do Garantido e do Caprichoso. Já o seu amigo aqui havia acabado de retornar do exílio e de amargar uma prisão de três semanas na Polícia Federal, antes de ser aprovado em concurso para professor da Universidade Federal do Amazonas.
Procedentes de diferentes horizontes, você estudante, eu professor, nos encontramos pela primeira vez ali, no pátio do velho ICHL, ao lado da cantina, numa assembléia estudantil. Posso dizer que foi amizade à primeira vista. Descobrimos rapidamente que éramos cúmplices, pois compartilhávamos os mesmos sonhos de transformar o Brasil num país politicamente democrático, economicamente forte e socialmente justo. Ambos estávamos dispostos a correr riscos e a fazer sacrifícios em nome desse ideal.
Naquele ano de 1977, a ditadura militar ainda tinha bastante fôlego. Dentro da Universidade funcionava um sistema de espionagem e delação, através da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI). O medo nos paralisava. De repente, vejo um jovem discursar numa assembléia, com sua voz meio gasguita. Era um menino ainda, mas com talento de organizador, de agitador e de orador. No seu discurso, sentou o sarrafo no Poder, eletrizando os ouvintes, emocionando-os, convencendo-os. Aquilo nos deu coragem. É essa a imagem que guardo de você, companheiro senador.
Você se lembra, João Pedro? Estivemos em todas as lutas no Amazonas: movimento dos professores, mobilização estudantil, aliança com os índios, oposição sindical metalúrgica, passeatas, comícios, manifestações em defesa da floresta, campanhas pela anistia e pelas Diretas-já. Você, inicialmente, pelo PC do B. E eu, como presidente do recém-criado Partido dos Trabalhadores, ao qual você depois aderiu.
Por isso, não acreditei no que li ontem nos jornais. As notícias informam que você, como relator do caso Renan/Schincariol, declarou que “existem poucos elementos de prova na representação”. No entanto, em vez de sugerir a convocação de testemunhas para ouvir depoimentos e ampliar as investigações, como era de se esperar, você declarou que vai pedir, depois de amanhã, que o Conselho de Ética arquive o processo. Tapou os ouvidos e, na defensiva, anunciou da tribuna: “Ninguém vai dizer como devo escrever. Ninguém vai interferir no meu juízo e nos meus valores”.
Ora, meu amigo, isso é uma bravata. Ninguém? Como assim? Todo texto traz um intertexto, isto é, está irremediavelmente relacionado com outros textos. Portanto, a questão não é saber se vai ou não haver interferência, mas QUEM é que vai interferir no seu texto, com quem você vai dialogar. Ou com o clamor da população desiludida, desesperançada, gritando por Justiça, ou com o discurso patético da corrupção e da subserviência ao poder.
Foi para isso que lutamos? Foi para isso que fomos presos, exilados, muitos torturados, outros assassinados, como o amazonense Tomás Meirelles? O nosso sacrifício foi para que senadores eleitos pelo PT, como a pitibull Ideli Salvati e Sibá Machado, numa sessão clandestina, votassem a favor da trapaça, da falcatrua, do uso de laranjas para comprar rádios e de notas frias de frigoríficos fantasmas? O Tomazinho e tantos outros morreram para que hoje Aloisio Mercadante e você se abstenham, favorecendo um trapaceiro, que usa guias falsas de vacinação e de transporte de gado para justificar rendimentos com negócios agropecuários?
Companheiro João Pedro, gostaria de continuar te admirando, mas para isso você não pode deixar que esses caras façam de ti um político safado, manipulado pelo compadrio, por jogadas políticas abjetas, por troca de interesses escusos. Olha o exemplo de teus companheiros de luta daquela época. Te espelha no exemplo do Eron Bezerra, da Vanessa Grazziotin, do Eduardo Suplicy, que mantêm uma linha de coerência e dignidade. Você não pode ser um traíra como Amazonino ou Omar Aziz.
Não coloca tua inteligência, teu saber e tuas energias a serviço de quem pode muito bem pagar advogados caros. O teu lado é aqui, junto das pessoas honradas. Ainda é tempo, João Pedro. Deixa aflorar aquele menino combativo que há trinta anos lutava sem medo contra a ditadura. Dá um reviravolta no caso. Terça feira, na sessão do Conselho de Ética, surpreende todo mundo e não pede o arquivamento do processo. Em lugar de alimentar a imagem do capachildo que a imprensa começa a desenhar, enquadra o sem-vergonha do Renan e te transforma num herói nacional, com direito a figurar como personagem da história do Brasil.
João Pedro, nesse momento, tenho diante de meus olhos um Diploma assinado por você, já como presidente do Diretório Regional do PT, em 10 de fevereiro de 2000, me homenageando por haver “contribuído de forma significativa para o crescimento do PT no Amazonas”. Com esse histórico de vida e de militância, creio que tenho autoridade moral para te cobrar coerência e compromisso com os interesses da população brasileira.
No entanto, se você for fraco e pusilânime e preferir pedir o arquivamento do processo do Renan, se você preferir envergonhar aquela funcionária dedicada da Biblioteca Pública que te gerou e te educou, nós vamos lutar para que você, João Pedro, seja arquivado e fique fora do cenário político brasileiro para o resto da tua vida. Não me obriga a rasgar o diploma assinado por ti, nem me obriga a colocar um PS denunciando a tua conduta em cada crônica a partir de hoje. Mas, sobretudo, companheiro, não deixa que esses bandidos roubem o discurso da ética que sempre foi nosso.