Estou escrevendo dentro de um barco que navega rumo a Belém. Passei a semana toda na ilha do Marajó, ministrando um curso de História da Amazônia no Campus de Soure da Universidade Federal do Pará. O curso faz parte da programação da IV Jornada de Oficinas e Palestras organizada pela Instituição Caruanas, uma ONG presidida pela pajé Zeneida Lima. Vim acompanhando um sábio guarani, Wherá Tupã, de 96 anos.
Não foi possivel me informar sobre as fofocas do noticiário politico ao longo da semana, devido às dificuldades de acesso à internet, aos jornais e à televisão. Só agora tomo conhecimento de que a representação contra o presidente do Senado, Renan Calheiros, no caso da Schincariol não foi arquivada, que Lula esteve em São Gabriel da Cachoeira, no Rio Negro (AM) e que o senador Tião Viana chamou Hugo Chaves de doido, três temas que poderiam ser explorados no nosso encontro semanal.
No entanto, como o barco está jogando muito e só vou conseguir acessar a internet no hotel em Belém, te convido, leitor (a) amigo (a), a fazer essa viagem comigo pela ilha do Marajó, junto com o karai Wherá Tupã, também conhecido pelo nome de Alcindo Moreira. Ele é um grande líder religioso guarani do litoral sul e mora na aldeia de Biguaçu, em Santa Catarina. Veio encontrar Zeneida Lima, herdeira da pajelança cabocla, e acabou se reunindo também com dois grandes mestres da capoeira do Rio de Janeiro.
O encontro de Zeneida Lima com Wherá Tupã e com os mestres Formiga e Zé Carlos foi algo comovente, carregado de intenso simbolismo. Eles representam três formas de expressão da cultura brasileira, que foram historicamente reprimidas. Durante uma semana, a ilha do Marajó presenciou, durante o dia, o vigor e atualidade da pajelança cabocla, da religião guarani e da capoeira da Angola. À noite, na principal praça de Soure, se apresentaram Fafá de Belém, Jane Duboc, Leila Pinheiro e Egberto Gismonti. Foi uma semana de festa para a cultura marajoara.
CULTURA MARAJOARA
Os arqueólogos chamam de cultura marajoara o estilo de antigos povos ceramistas que viveram no Marajó entre os anos 400 e 1.300 d.C. Sua cerâmica bonita e refinada – urnas, vasos, tigelas, pratos, tangas, adornos – representam seres mitológicos da floresta: cobras, jacarés, tartarugas, lagartos, corujas, macacos. A arte marajoara é uma linguagem, só que em vez de falada ou escrita, é visual. Cria narrativas gráficas que contam histórias, expressam crenças, emoçõs e idéias. Os estudiosos acham que servia para registrar, armazenar e divulgar conhecimentos. Esse estilo de vida desapareceu muito antes da chegada dos portugueses ao Pará, em 1616.
No curso ministrado para professores e membros da comunidade, discutimos essas questões. Lembramos que os povos que viviam na ilha do Marajó, no século XVII, estimados em cem mil habitantes, foram chamados pelos portugueses com o nome genérico de Nheengaíba, que em tupinambá significa ‘língua ruim’ou ‘língua difícil’, porque esses povos falavam línguas diferentes da Língua Geral, usada na catequese, que ficou conhecida como Nheengatu (‘língua boa’).
Um desses povos, hoje extinto, era o Sacaca, que resistiu às tropas de Guerra e à escravidão até o acordo de paz assinado com o padre Vieira, em 1659. Seus pajés conheciam tão profundamente as plantas medicinais que ‘sacaca’ passou a designar curandeiro em Nheengatu. Em algumas gerações, os povos do Marajó adotaram a Lingua Geral e depois o português, línguas que registraram suas narrativas míticas e seus conhecimentos.
Hoje, a modernidade invade a vida de cada brasileiro, trazendo novas informações, novos meios de vidas e novas preocupações. A Ilha do Marajó luta para preservar o que tem de melhor – o homem marajoara – sem medo das inovações e das mudanças. Mas a grande questão que se coloca é: como incorporar as inovações sem perder a identidade, a tradição e os saberes locais?
O enfrentamento de problemas como o desmatamento desregrado, a proteção da fauna e da flora e até problemas modernos como o aquecimento global estão intimamente ligados com o papel que o homem da Amazônia deve desempenhar na luta pela preservação da natureza. A preservação está conectada com sua própria existência, como parte de um organismo ameaçado pela mão do homem moderno: o mesmo que destrói, aniquila e reduz a pó culturas, paisagens e pessoas.
Os índios marajoaras, através dos séculos, criaram formas majestosas de arte como a cerâmica, a pintura e a arquitetura deixada nos traços das aldeias encontradas, além de mitologias, narrativas, poesias, cantos, pajelanças, etnosaberes e muito mais coisas que hoje ainda inspiram a alma do caboclo.
Esses saberes, acumulados durante milênios, podem nos ajudar, hoje, a melhorar a qualidade de vida na Amazônia. Daí surge a necessidade de fortalecimento dessas expressões culturais, herdeiras dos povos que resistiram às invasões, aos bombardeios e à imposição do dominador, mas que ao mesmo tempo souberam dialogar com outras culturas, incorporando novos elementos. A cultura marajoara prevaleceu e desde então são quase 7.000 anos de história descritas nas primeiras cerâmicas encontradas em escavações arqueológicas.
De lá para cá, esses conhecimentos foram, em parte, preservados e enriquecidos, como é o caso dos saberes cultivados pelos índios, pela pajelança cabocla e pela medicina popular. Tive a sorte de entrar na floresta com a pajé Zeneida Lima e com o karai Wherá Tupã, assistindo ao vivo uma aula de botânica. Cada planta foi nomeada, tocada com carinho, reverenciada, catalogada, classificada, com suas propriedades medicinais reconhecidas e enaltecidas. Diante de tantos saberes, pensei que navegar pelo Marajó nessas condições pode ser tão interessante como navegar na internet. Ainda voltaremos ao assunto.