CRÔNICAS

Navegando pelo Marajó com pajés e capoeirista

Em: 23 de Setembro de 2007 Visualizações: 11146
Navegando pelo Marajó com pajés e capoeirista

Estou escrevendo dentro de um barco que navega rumo a Belém. Passei a semana toda na ilha do Marajó, ministrando um curso de História da Amazônia no Campus de Soure da Universidade Federal do Pará. O curso faz parte da programação da IV Jornada de Oficinas e Palestras organizada pela Instituição Caruanas, uma ONG presidida pela pajé Zeneida Lima. Vim acompanhando um sábio guarani, Wherá Tupã, de 96 anos.

Não foi possivel me informar sobre as fofocas do noticiário politico ao longo da semana, devido às dificuldades de acesso à internet, aos jornais e à televisão. Só agora tomo conhecimento de que a representação contra o presidente do Senado, Renan Calheiros, no caso da Schincariol não foi arquivada, que Lula  esteve em São Gabriel da Cachoeira, no Rio Negro (AM) e que o senador Tião Viana chamou Hugo Chaves de doido, três temas que poderiam ser explorados no nosso encontro semanal.

No entanto, como o barco está jogando muito e só vou conseguir acessar a internet no hotel em Belém,  te convido, leitor (a) amigo (a), a fazer essa viagem comigo pela ilha do Marajó, junto com o karai Wherá Tupã, também conhecido pelo nome de Alcindo Moreira.  Ele é um grande líder religioso guarani do litoral sul e mora na aldeia de Biguaçu, em Santa Catarina. Veio encontrar Zeneida Lima, herdeira da pajelança cabocla, e acabou se reunindo também  com dois grandes mestres da capoeira do Rio de Janeiro.

O encontro de Zeneida Lima com Wherá Tupã e com os mestres Formiga e Zé Carlos foi algo comovente, carregado de intenso simbolismo. Eles representam três formas de expressão da cultura brasileira, que foram historicamente reprimidas. Durante uma semana, a ilha do Marajó presenciou, durante o dia, o vigor e atualidade da pajelança cabocla, da religião guarani e da capoeira da Angola.  À noite, na principal praça de Soure, se apresentaram Fafá de Belém, Jane Duboc, Leila Pinheiro e Egberto Gismonti. Foi uma semana de festa para a cultura marajoara.

CULTURA MARAJOARA

Os arqueólogos chamam de cultura marajoara o estilo de antigos povos ceramistas que viveram no Marajó entre os anos 400 e 1.300 d.C. Sua cerâmica bonita e refinada – urnas, vasos, tigelas, pratos, tangas, adornos – representam seres mitológicos da floresta: cobras, jacarés, tartarugas, lagartos, corujas, macacos. A arte marajoara é uma linguagem, só que em vez de falada ou escrita, é visual. Cria narrativas gráficas que contam histórias, expressam crenças, emoçõs e idéias. Os estudiosos acham que servia para registrar, armazenar e divulgar conhecimentos. Esse estilo de vida desapareceu muito antes da chegada dos portugueses ao Pará, em 1616.

No curso ministrado para professores e membros da comunidade, discutimos essas questões. Lembramos que os povos que viviam na ilha do Marajó, no século XVII, estimados em cem mil habitantes, foram chamados pelos portugueses com o nome genérico de Nheengaíba, que em tupinambá significa ‘língua ruim’ou ‘língua difícil’, porque esses povos falavam línguas diferentes da Língua Geral, usada na catequese, que ficou conhecida como Nheengatu (‘língua boa’).

Um desses povos, hoje extinto, era o Sacaca, que resistiu às tropas de Guerra e à escravidão até o acordo de paz assinado com o padre Vieira, em 1659. Seus pajés conheciam tão profundamente as plantas medicinais que ‘sacaca’ passou a designar curandeiro em Nheengatu. Em algumas gerações, os povos do Marajó adotaram a Lingua Geral e depois o português, línguas que registraram suas narrativas míticas e seus conhecimentos.

Hoje, a modernidade invade a vida de cada brasileiro, trazendo novas informações, novos meios de vidas e novas preocupações. A Ilha do Marajó luta para preservar o que tem de  melhor – o homem marajoara – sem medo das inovações e das mudanças. Mas a grande questão que se coloca é: como incorporar as inovações sem perder a identidade, a tradição e os saberes locais?

O enfrentamento de problemas como o desmatamento desregrado, a proteção da fauna e da flora e até problemas modernos como o aquecimento global estão intimamente ligados com o papel que o homem da Amazônia deve desempenhar na luta pela preservação da natureza. A preservação está conectada com sua própria existência, como parte de um organismo ameaçado pela mão do homem moderno: o mesmo que destrói, aniquila e reduz a pó culturas, paisagens e pessoas.

Os índios marajoaras, através dos séculos, criaram formas majestosas de arte como a cerâmica, a pintura e a arquitetura deixada nos traços das aldeias encontradas, além de mitologias, narrativas, poesias, cantos, pajelanças, etnosaberes e muito mais coisas que hoje ainda inspiram a alma do caboclo.

Esses saberes, acumulados durante milênios, podem nos ajudar, hoje, a melhorar a qualidade de vida na Amazônia. Daí surge a necessidade de fortalecimento dessas expressões culturais,   herdeiras dos povos que resistiram às invasões, aos bombardeios e à imposição do dominador, mas que ao mesmo tempo souberam dialogar com outras culturas, incorporando novos elementos. A cultura marajoara prevaleceu e desde então são quase 7.000 anos de história descritas nas primeiras cerâmicas encontradas em escavações arqueológicas.

De lá para cá, esses conhecimentos foram, em parte, preservados e enriquecidos, como é o caso dos saberes cultivados pelos índios, pela pajelança cabocla e pela medicina popular. Tive a sorte de entrar na floresta com a pajé Zeneida Lima e com o karai Wherá Tupã, assistindo ao vivo uma aula de botânica. Cada planta foi nomeada, tocada com carinho, reverenciada, catalogada, classificada, com suas propriedades medicinais reconhecidas e enaltecidas. Diante de tantos saberes, pensei que navegar pelo Marajó nessas condições pode ser tão interessante como navegar na internet. Ainda voltaremos ao assunto.

 

 

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1 Comentário(s)

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José Marajó Varela comentou:
07/10/2017
Obrigado Mestre José Bessa por nos instruir e ajudar a revalorizar o patrimônio humano profundo da amazonidade. preste a completar 80 anos de idade, somente perto dos 20 de idade é que soube ser minha avó paterna verdadeira uma índia marajoara que morreu de parto de gêmeos dos quais só meu pai sobreviveu. Eu sabia sim desde criança que meu pai havia sido adotado por sua irmã mais velha, minha avó Sophia. Uma história de família como muitas outras, envergonhada de suas raízes indígenas e/ou negro africana. Conheci dona Zeneida pessoalmente depois de ouvir falar muito mal dela. Uma pessoa maravilhosa que se dedica a manter viva a tradição da pajelança cabocla. Marajó pode ser a meca da pajelança e sua resistência é notável depois de mais de 300 anos de ataques por todos os lados, Os Caruanas do Marajó são uma fortaleza ecocultural onde através da singular biografia de dona Zeneida Lima se descobre a figura magistral de Manuel Nunes Pereira. Acho que a Amazônia precisa popularizar suas raízes. Os pajés são os últimos bastiões da amazonidade. Nunca me esqueço da definição que o padre Giovanni Gallo, criador do Museu DO Marajó, deu ao papel do pajé na sociedade tradicional caboca (cf. "Marajó, a ditadura da água): o pajé está no centro da cosmovisão do homem marajoara, mas esse homem prodígio também é aquele pobre carente que precisa do médico e do remédio do posto de saúde, da caridade do poder público em sua dilacerante complexidade e ambiguidade. Portanto, a universidade tem um papel de grave responsabilidade nesta história. li não sei onde há muito tempo uma lenda supostamente de origem sakaka: Diz-que antigamente caiu uma estrela cadente no lago Guajará e a "estrela" (meteorito) ao tocar as águas explodiu lançando "pedras de raio" longe. Os mais antigos pajés fizeram dessas pedras machados de grande poder mágico. Havia no acervo do Museu do Marajó um exemplar de machado feito de pedra de raio...O índio sacaca e sargento-mor da vila de Monforte (Joanes velha) Severino dos Santos relatou ("Notícia Histórica", Alexandre Rodrigues Ferreira, 1783) que seus povo na verdade chamava-se IONA (Joanes na corruptela em língua portuguesa), que diante da guerra com seus inimigos Aruãs viram-se obrigados deixar suas terras no centro da ilha e de tempos em tempos os ditos Aruãs lhes vinham atacar em Joanes, na costa da baia do Marajó. Que seus compadres Caripunas penalizados aconselharam a ir buscar aliança com os portugueses no Pará. Por sorte um parente chamado João Sapatu cativo dos portugueses lhes serviu de intérprete em sua demanda. Severino havia cerca de 70 anos de idade quando o naturalista o conheceu, porém aquela história oral vinha dos idos de 1686... Prova de que não deve desprezar as tradições dos "nossos" índios... Os "joanes" obtiveram ajuda de soldados e armas contra os seus inimigos Aruãs, todavia tiveram que ajudar na construção da fortaleza da Barra (uma ilhota em frente à Val de Cães, em servia de paiol e explodiu em 1947 atingida por raio sendo arrasada). Na faxina os índios chamavam atenção pela presteza do serviço, e o tuxaua animava os seus dizendo-lhe "Sakakun, sakakun!", que na língua IONA significa "depressa, depressa"... Era a urgência em chegar logo à aldeia para a defender do curtumeiro assalto. Como de fato sucedeu, só que desta vez os belicosos índios da contracosta tiveram uma surpresa que foi topar com os novos amigos dos dali em diante chamados SAKAKAS armados de "paus de fogo"... A história acabou com os Aruãs rncurralados no igarapé Água Boa e massacrados. Restaram dois que esperavam com as canoas no igarapé Jubim e levaram a notícia.
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