O título vai no singular por pura modéstia, mas confesso que foi muito mais sério: furei greves. No plural. Dei aulas durante todas as greves realizadas desde 2002 até hoje nas duas universidades públicas onde trabalho. Contrariei as decisões das assembleias docentes, a partir de uma vaia consagradora na última delas em que participei, há quinze anos, quando falei contra a paralisação. Até aí tudo bem: vaias e aplausos fazem parte do jogo democrático. Mas não houve debate. Minha palavra foi cassada por quem presidia a mesa, que me brindou, em alto e bom som, com o mesmo palavrão com o qual Collor injuriou, em voz baixa, o procurador-geral Rodrigo Janot.
No lugar do ofensivo fdp, podiam demonstrar que eu estava equivocado. O insulto, que não agrega, só não repercutiu mais porque as testemunhas eram apenas quatro gatos pingados, já que a assembleia, como quase sempre ocorre, estava esvaziada, sem que seus organizadores desconfiem o porquê. Depois disso, me ausentei delas por entender que, neste caso, negavam aquilo que deve ser função da universidade: um espaço democrático de debate, de livre expressão do pensamento, de discordância com respeito ao outro, de reflexão, de tentativa de convencer com argumento sólido e fundamentado e não com o grito, insulto, intimidação.
Quando furo greve, como gesto explícito de desobediência sindical similar à desobediência civil, acabo trabalhando duplamente: aulas para alunos que não fazem greve, depois reposição para os grevistas. Há mais de cinco anos, durante uma greve na UERJ, encontrei de manhã cedo uma equipe do RJ-TV com câmaras e equipamentos. No corredor, saindo da reitoria ocupada por estudantes vejo um ex-aluno meu enrolado em uma bandeira do Brasil. Ele ia ser entrevistado, mas antes acenou para mim e, sem saber que eu estava furando a greve, exclamou radiante:
- Professor, o sr. viu? Ocupamos a reitoria!
- Uma cagada! - respondi.
- Mas foi para apoiar a greve de vocês - ele retrucou.
- Outra cagada - eu disse.
Sua expressão de desolação não conseguiu esconder a decepção. Ele não podia imaginar que um ex-vice-presidente regional do Sindicato Nacional dos Docentes (Andes) - que eu fui e ex-presidente do PT-Amazonas, eleitor quase sempre do PSOL - que eu sou, fosse um furador de greve. Justifiquei: se o movimento ocorresse em uma universidade particular, contaria com minha adesão, eu correria o risco de demissão e de salário cortado na luta contra os tubarões do ensino. Mas numa universidade pública, embora as reivindicações sejam mais do que justas, sem corte de salário não é greve, mas férias remuneradas contra a instituição.
É um tiro no próprio pé - eu disse ao aluno. Lembrei as críticas feitas por Marx aos operários que na Inglaterra, no século XIX, indignados com a situação de exploração e de extrema miséria, quebravam máquinas e incendiavam fábricas. Mutatis mutandis é o que o denominado movimento paredista vem fazendo com as universidades públicas: degrada o nosso lugar de trabalho, destrói os nossos instrumentos simbólicos de produção, rebaixa a qualidade do ensino e da pesquisa, mesmo se o discurso é diferente e se a intenção é outra. Não focaliza no inimigo.
Houve época em que participei ativamente de greves. De muitas. Na última delas, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em meados dos anos 1980, percorri as salas de aula de diferentes cursos pedindo apoio dos alunos. Um deles perguntou pelo resultado da greve do ano anterior.
- Foi vitoriosa graças ao apoio de vocês - eu disse didaticamente entusiasmado.
- Se foi vitoriosa e era para melhorar a qualidade do ensino, gostaria de saber o que melhorou neste último ano? - ele perguntou.
Aluno é bicho cruel. Ele foi dando nomes aos bois. Disse que o professor X havia comprado um carro do ano, mas entrava em sala de aula com as mesmas fichas amarelas e desatualizadas porque não comprava livros. Esse ainda dava aulas. O professor Y faltava sistematicamente, o professor Z chegava sempre atrasado e não corrigia os trabalhos. Concluiu avaliando que a greve era corporativista, não melhorava a universidade. Contestei a generalização, citando nominalmente outros colegas comprometidos com a instituição. Não convenci. E fiquei balançado por dentro.
Anos depois, já no Rio, expliquei isso ao outro jovem enrolado na bandeira do Brasil, que aliás havia sido excelente aluno. Para relativizar sua decepção, confessei que eu havia cometido erros semelhantes, que minha vida inteira foi uma sucessão de equívocos políticos, que naquele exato momento eu podia estar enganado, que por isso sempre ouvia quem pensava diferente, que era melhor errar do que se omitir, mas que minha obrigação era dizer-lhe o que estava pensando, embora consciente de que eu podia estar equivocado.
Agora, tomo conhecimento que na UFAM, o professor da Faculdade de Educação com quem aqui me solidarizo e que atende pelo sugestivo nome de Paulo Freire foi hostilizado por haver furado a greve, com direito à nota oficial de repúdio e à execração pública. Antes de contar o acontecido, advirto que ele é primo do Pão Molhado, que vem a ser meu sobrinho. Foi assim.
Uma amiga do Paulo Freire lhe contou que a filha queria acampar na reitoria junto com o namorado e lhe havia dito que "pelo menos assim eu posso dormir com ele", em tom de brincadeira. Com o mesmo espírito, o professor fez uma charge e postou no facebook apenas para os amigos. Um "amigo" leu e repassou para o Comando de Greve que publicou nota de repúdio ao professor por estar desrespeitando a mulher e "debochando do movimento estudantil" na luta "para defender a universidade pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada", seja lá o que isso signifique.
A nota de um falso moralismo, absolutamente descontextualizada, expõe a entidade ao ridículo, não mobiliza, não fortalece a organização e nem o movimento. Trata-se de notável contribuição ao FEBEAUFA - o Festival da Besteira que Assola a Universidade Federal do Amazonas. Francamente, a que ponto de desagregação chegamos! Uma nota do Comando de Greve da Faculdade de Educação e logo contra um professor que atende pelo nome de Paulo Freire. Francamente! Esse pessoal não tem mesmo o que fazer. E aí fica dando tiro no pé.