CRÔNICAS

Museu da favela: um programa de índio

Em: 15 de Junho de 2014 Visualizações: 26890
Museu da favela: um programa de índio

 Ocupadíssima (o) leitora (o), eu te entendo. Sei que não dispões de tempo para passear por favelas, ainda mais num fim de semana que é sempre destinado ao descanso e ao lazer familiar. Talvez não tenhas sequer cinco minutinhos para ouvir o que tenho para te contar. De qualquer forma, conto assim mesmo. Suspeito que pode te interessar. Quem sabe?

Domingo passado, com alunos do curso de Museologia da UNIRIO, percorri durante mais de três horas um caminho que começa na escadaria do morro do Cantagalo, em Ipanema, atravessa o Pavãozinho e termina – não poderia ter melhor destino - no Beco do Amor Perfeito, no morro do Pavão, já em Copacabana. Vale a pena conferir.

A caminhada dominical foi programada para repor uma aula que não aconteceu durante a semana por ter sido abortada pela greve dos rodoviários. Demos 2.050 passos por um labirinto de becos estreitos, ruas, ruelas, dobras, vielas, bifurcações, ladeiras íngremes e escadarias empinadas que conectam um território de três favelas, onde hoje vivem quase 20 mil pessoas em mais de cinco mil moradias. Visitamos as favelas, que são representadas na mídia sempre como palco de violência e de bandidagem, quase nunca como lugar de expressão cultural.

- Mas isso é um "programa de índio" – dirá alguém desavisado.

Nós, os desocupados que dispomos de tempo, concordamos, mas atribuímos um sentido positivo ao termo, porque vemos os indígenas com outros olhos. Foi efetivamente um belo programa de índio. Quem passa ali embaixo, nem suspeita o que acontece lá nas alturas. Lá, a ONG Museu da Favela (MUF), que integra o Programa Pontos de Memória do Ministério da Cultura, instalou 40 obras de arte constituídas por três portais de acesso, dez placas indicando o caminho e 27 telas gigantes de arte grafite pintadas em grandes painéis nas fachadas de algumas casas.

As escutadoras

Foi assim. Logo após o início do projeto de reurbanização da favela lançado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2008, moradores cederam paredes externas de suas casas situadas em diferentes pontos das três comunidades, onde 25 artistas grafiteiros locais, mas também de fora, inclusive estrangeiros, pintaram painéis contando a história das favelas. Para isso, se apoiaram na documentação oral obtida em entrevistas feitas com 13 idosos ilustres que são enciclopédias vivas.

As moradoras da comunidade que contaram suas histórias de vida receberam o prêmio Mulheres Guerreiras, concedido pelo MUF. O projeto, ampliado agora com as “escutadoras de memórias” - dez mulheres que receberam treinamento para ouvir histórias – criou uma galeria a céu aberto do primeiro museu territorial de favela do Brasil.

- Ali, no museu territorial, a arte da narrativa está viva e a metamorfose é cotidiana – diz o representante externo na direção do Museu da Favela, Mário Chagas, museólogo e professor da UNIRIO.

A partir das histórias narradas, o Museu da Favela programou o MUFTUR, composto por três circuitos que equivalem às exposições permanentes num museu tradicional. O Circuito do Alto é uma ecotrilha educativa pelas matas do topo do morro, contendo as memórias da natureza antes da favela. O Circuito do Meio, em construção, pretende reunir esculturas gigantes similares - pelo que entendi - às esculturas de Brennand, em Recife, mas que se movem, cantam, tocam violão. O Circuito de Baixo ou Circuito das Casas-Tela, já implantado desde 2009, foi o que nós percorremos.

Esse circuito conta a história das três favelas a partir das imagens representadas nas telas. Está tudo lá. A origem da favela do Cantagalo, com a chegada dos quilombolas e de escravos libertos que se refugiaram no morro, vindos de Minas Gerais e do Espírito Santo, bem como a imigração dos nordestinos para o Pavão-Pavãozinho. O perrengue dos moradores, o descaso do Estado e a ausência de políticas públicas, as estratégias de sobrevivência das famílias, a resistência, o papel celofane colorido diante da tela da TV preto e branco, o fogão a querosene...

Apoiado pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o MUF constitui uma experiência no campo da museologia social, que reivindica o direito à memória. Foi inaugurado em fevereiro de 2009 na quadra da Escola de Samba Alegria da Zona Sul. Criou as Casas-Tela, acompanhadas de poesia de cordel em homenagem à cultura nordestina. Segundo Carlos Esquivel Gomes da Silva, conhecido como ACME, grafiteiro que mora na favela e coordenou a oficina de artistas, a falta d’água obrigava os moradores a subir as escadarias com lata na cabeça:

- Voltando da Catacumba / fincando as unhas no chão /

com lata de banha e rodilha / à luz de vela e lampião /

cortando por dentro da trilha /Meu Deus como o povo sofria /

Mas tinha bem mais união.

Pombo sem asa

Quando os dois artistas ACME e Marcelo Eco foram pintar a tela da Casa 2, explicaram à moradora, dona Regina, a Teteca, que iriam retratar na parede de sua casa a falta de saneamento básico, esgotos a céu aberto, valas negras e pinguelas que ocuparam grande parte da história da favela. Dona Teteca discordou e deu várias sugestões alternativas:

- Essa não. Não quero a imagem do mal sujando meu muro. Quero coisa bonita, flores, paisagens, cores alegres embelezando aquilo que é ruim.

Depois de muita negociação, ACME, que ajudou a fundar e presidiu o MUF, achou a solução. Ele se inspirou na Ponte Japonesa do impressionista francês Monet: “A vala ficou azul, a pinguela virou uma ponte colorida. Da penúria do passado, só sobrou de símbolo o cachorro magricela. Teteca ficou satisfeita, elogiou o resultado, afirmando que sua parede tem que refletir coisas boas, porque a realidade já não é das mais bonitas”.

No entanto, em outras casas-tela, os artistas retrataram também a realidade dura: a falta de energia elétrica, com o uso da vela e do lampião; a falta de água do tempo da lata d’água na cabeça; a bica, a torneira ao pé do morro só instalada em 1972; a falta de saneamento básico, a existência de esgotos a céu aberto, as valas negras, o mau cheiro, as pinguelas, a lama, o lixo, as ratazanas gordas, o tráfico e a polícia que ceifaram vidas de entes queridos, os tiroteios, o medo, a insegurança, a repressão à fé e à religiosidade, a intolerância e a proibição do candomblé, o velório dentro das casas...

- Certas memórias são doídas, narrativas de violências, uma palavra maldita, uma pergunta mal feita fere como uma bala perdida. Mesmo quando a memória guarda algo negativo é importante lembrar, porque ajuda a cicatrizar e fortalece para a vida e para decidir novas e melhores escolhas – escrevem ACME, Rita de Cássia Pinto e Kátia Loureiro no livro Circuito das Casas-Tela – Caminhos de vida no Museu da Favela.

Uma das casas-tela retrata o “pombo sem asa” em pleno voo. Quando não havia latrina, o coco era feito num jornal, embrulhado e arremessado morro abaixo, atingindo às vezes as pessoas, o que não era prática exclusiva das favelas. Segundo o viajante inglês John Luccock, que veio ao Brasil em 1808 e escreveu “Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil”, o “pombo sem asa” voava, tendo como ponto de arremesso casas das melhores famílias da Corte na época de D. João VI.

Programa de branco

No final do circuito, já quase no asfalto, em Copacabana, há o registro da tragédia que em 1983 matou treze pessoas, feriu dezenas de outras e destruiu casas, em decorrência do deslizamento de uma caixa d’água na noite de natal provocada pelo acúmulo de lixo. Foi então que o governador Leonel Brizola decidiu construir o Plano Inclinado com a instalação de um elevador com cinco estações para facilitar o acesso dos moradores ao morro.

As paredes das casas-tela revelam também o outro lado da realidade, registrando uma nostalgia do tempo que se foi: o lazer das crianças, o futebol, a pipa nos céus da favela, as brincadeiras de roda, as roupas no varal, as conversas na porta dos barracos, a solidariedade dos vizinhos, a musicalidade da favela, a dança do calango e o arrasta-pé de fim de semana. Lembram ainda que o sambista Bezerra da Silva morou mais de vinte anos no Cantagalo.

Para se conciliar com esse tempo, o MUF projetou uma Brinquedoteca para crianças da comunidade, que foi contemplada pela Ação Pontinhos da Cultura, além de criar o Cine-MUF, com exibição de filmes escolhidos pelos moradores. 

A visita ao Museu de Favela foi tão gratificante que, com greve ou sem greve, a partir de agora cada semestre levarei meus alunos lá. Eles avaliaram – e eu concordo - que foi a melhor aula que tiveram na disciplina: justamente a que assisti com eles, ministrada por Sidnei Tartaruga e Valquíria Cabral, que nos guiaram favela adentro. Arruma tempo, leitora (o) e sobe o morro num domingo. A vista panorâmica da Laje Cultural do Museu é deslumbrante. É melhor do que ficar vendo Faustão, Silvio Santos, Fantástico, isso sim é que é “programa de branco”. 

P.S.1 – Participaram da criação do MUF, além dos já citados, Rita de Cássia, Antônia Soares, Kátia Loureiro, Márcia Souza e Josy Manhães. Eles contribuíram para a dissertação de mestrado sobre o Museu da Favela que está sendo elaborada por Fernanda Silva F. Rodrigues orientada pelo doutor Agripa Faria Alexandre do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS).

P.S. 2 – Fotos: a primeira de Gilson Camargo, as demais de Juliana Venturelli do PPGMS

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17 Comentário(s)

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valdemiro comentou:
19/06/2014
Espero um dia vivenciar a caminhada. Esperançar é preciso
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Heliete comentou:
17/06/2014
Parabéns pelo texto! Fui até lá de elevador, panorâmico, e voltei. Não quis entrar assim, sem mais nem menos, supondo ser necessário algum tipo de "convite", e depois da leitura continuei na dúvida. Posso ir assim, sem lenço nem documento?
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Thais Rosa Pinheiro comentou:
16/06/2014
Eu me apaixonei pelo Museu da Favela, levei meus alunos quando dava aula no Senac e descobri atraves da Fernanda que estuda comigo alem de ser amiga de profissao. A forma de dar voz a comunidade, o caminhar entre as casas, o contato com a historia e com os moradores e de fato apaixonante.
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Eneida Simoes da Fonseca comentou:
16/06/2014
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Luciane Santos (via FB) comentou:
15/06/2014
Maravilha de texto, de José Bessa. José Ribamar Bessa já era professor quando eu era aluna e depois foi meu colega na Faculdade de Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mas a verdade é que falamos muito pouco nestes anos todos, quase nada. Cumprimentos de corredor. Rápidos. Entre um abrir e fechar de portas. Deveríamos ter conversado mais, Bessa. Olhando para o seu texto, como eu lamento não termos tido uma conversa decente antes. E embora entre nós tenha havido mais silêncio do que palavra nestes anos todos, parece que um mar atrasado de comunicação aconteceu entre a minha aproximação com o tema indígena e a leitura do seu texto. Recomendo que todos leiam, principalmente os que moram no Rio de Janeiro e pouco conhecem das suas histórias. Bessa fala das casas-tela, das histórias das favelas inscritas nas paredes dos moradores, da importância dos relatos orais. Deu vontade sincera de estar acompanhando esta sua aula de Museologia, Bessa, percorrendo do Cantagalo ao Morro do Pavão. Parabéns pelo texto. Parabéns pela trajetória e pelas escolhas.
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Ana Claudia Lima e Alves comentou:
15/06/2014
Linda narrativa de uma riquíssima experiência, Bessa. Obrigada por nos dar a conhecer o MUF, seus projetos e circuitos e toda a gente empenhada em concretizá-lo. A próxima vez que eu for ao Rio vou me programar para o MUFTUR.
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Ligia T. Lopes Simonian comentou:
15/06/2014
Havia me programado e tentei fazer esse circuito em dez. de 2013, mas ante um tiroteio em uma dessas favelas, proibiram a subida. Mas, na próxima viagem, se tudo der certo, irei.
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Carmo Vasconcelos comentou:
15/06/2014
As crônicas do Professor Bessa Freire são sempre, para além de rica literatura, valioso conhecimento e aprendizado. Sou portuguesa, residente em Portugal, e longe do panorama descrito habilmente pelo insigne Professor. Todas leio e divulgo através da Revista eisFluências e das Antologias LOGOS, ambas alojadas no nosso site Fénix. Esta foi uma surpreendente leitura neste Domingo. Parabéns, Prof. Bessa Freire! Leiam outras crónicas do nobre autor, publicadas em: http://www.carmovasconcelos-fenix.org/revista/eisFluencias/publicacoes.htm http://www.carmovasconcelos-fenix.org/CV-LOGOS.htm Obrigada, Prof. Bessa Freire! Carmo Vasconcelos http://www.carmovasconcelos-fenix.org Contato de Carmo Vasconcelos
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Susana Grillo comentou:
15/06/2014
Muito boa iniciativa e excelente ideia quando eu foi ao Rio. Abraços
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Ana Stanislaw c comentou:
15/06/2014
Li, adorei e também quero conhecer. Parabéns pelo belo texto, Bessa.
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José Bahiana comentou:
15/06/2014
Maravilha de aula, professor! Sinto não ter participado da mesma mesmo que fosse como expectador.De qualquer forma, um forte abraço!
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Simone Melo comentou:
15/06/2014
incrível e delicioso ler, valeu os meus minutos d eelitura de domingo pois quero ir neste MUF
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Rita Sidmar Alencar Gil comentou:
15/06/2014
Parabéns!, texto bem escrito e a aula deve ter sido uma delícia
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Agripa Faria Alexandre comentou:
15/06/2014
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Socorro Lima comentou:
15/06/2014
Esse é um fato interessante que responde com vozes silenciosas, mas carregadas de barulho, sobre a essência social dos menos favorecidos,que gritam, nesse silencio,suas ansiedades e sonhos de educação ... de qualidade,saúde ...na mesma perspectiva entre outras coisas.Parabéns pelas ricas palavras e por tirar essas vozes do silêncio.
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Fernanda Figueira comentou:
14/06/2014
Professor, que postagem mais linda! Fico muito feliz de ter contribuído na sua disciplina, com seus alunos e principalmente pelo fato desta visita se tornar uma constante a partir de agora. Eu amo esse museu e as pessoas que atuam nele! Amo essa vontade de memória do Museu de Favela. Espero que mais pessoas possam conhecer essa experiência museológica inusitada e marcante. Obrigada por compartilhar a sua experiência com seus leitores!
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Ana comentou:
14/06/2014
Na proxima, quero ser convidada. Deve ter sido uma delicia.
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