Para a Preta, uma das minhas nove xereindy, que leu e gostou.
Eu nunca vi homem de renda e de filó. Daí a surpresa, quando ele entrou no ônibus vestido com aquela camisa bordada. O tecido era o mesmo da roupa das cinco meninas que o seguiam em fila pelo corredor, acompanhadas da mãe. Ah, mas os óculos escuros, mas o gingado de cauboi, mas a cara fechada não deixavam dúvidas para nenhum passageiro quem era o chefe daquela família uniformizada que ocupou os últimos assentos do ônibus. Macho pacas!
O ônibus, da Viação Colibri, desconjuntado e sujo, saía naquela manhã de agosto de Porto Velho a Cuiabá, sacolejando pela rota do pó, a trans-coca, tantas vezes trilhada pelos narcotraficantes. O “cata-corno” da Colibri ia pescando, nos terminais rodoviários de cada cidadezinha, os desgarrados da vida: garimpeiros, colonos, peões, bóias-frias. índios e migrantes que, carregavam suas tralhas, zanzando como formiguinhas pra lá e pra cá. Gente descia, gente subia. Ele continuava. De óculos raibán, comandava sua família. Antes de Ariquemes, descobri o seu nome, porque a cada instante a senhora lhe dizia:
- Magnum, vigia o “borná”. Magnum, passa o “borná”.
O “borná” era uma sacola de pano com farinha e rapadura, distribuída parcimoniosamente às meninas, cujos nomes fiquei sabendo entre Ariquemes e Jaru: Rosenda, Rosicler, Rosali, Rosilda e Rosilene.
Uma das flores do roseiral, barrigudinha e catarrenta - acho que era a Rosilene - se empanzinou com farinha e bebeu mais água do que bêbado de ressaca. Numa das voltas do ônibus pela buraqueira, levantando um poeiral vermelho, ela vomitou uma pasta amarela e três lombrigas, uma das quais deslizou para baixo do meu assento, no outro lado do corredor. Magnum, carinhoso, segurava a cabecinha dela e, sábio, a consolava:
- Eu avisei que não era pra beber água, que ia “chocaiá” na barriga.
Solicitei ao motorista a retirada daqueles três novos incômodos passageiros que não pagaram bilhete. Apesar disso, as lombrigas viajaram de graça ainda por duas cidades, até Ji-Paraná, onde a Viação Colibri tem garagem. Uma hora e meia de espera na Rodoviária para regular os freios e dar uma sepultura cristã aos ascarídeos.
- Magnum, olha o “borná”. Magnum, segura a mão da Rosenda. Magnum, a Rosicler está chorando.
Magnum, a consciência da responsabilidade de chefe. Magum, solicitado, querido e requerido. Magnum amparando, socorrendo e defendendo todo o roseiral. Magnum, galo de crista levantada, protegendo os pintinhos do galinheiro. Magnum, pavoneando-se com os óculos raiban: cocoricó. Magnum, forte e viril. Magnum, a autoridade. Magnum.
Na saída de Ji-Paraná, toda aquela fortaleza se desmorona. Magnum esquecera os óculos escuros na Rodoviária. Parece que sem óculos, perdia sua energia vital, não passava de um Sansão careca. Surpreendentemente, começou a chorar, com soluços desgarradores. Cadê aquela força e determinação? As lágrimas exibiam sua fragilidade, mostrando o que realmente era: apenas uma criança de dez anos, o primeiro filho, obrigado a amadurecer precocemente, o braço direito da mãe sem marido, que agora tentava inutilmente consolar o seu menininho, o seu homem.
Rosilene, a catarrenta, solidária, alisava com seu dedinho o braço do irmão, parecia se sentir desamparada. Para mapear essas relações fraternas, nenhuma língua é tão precisa como o guarani. A palavra que um menino usa para designar sua irmã é "xereindy" que significa "luz de minha vida". Já a menina, quando se refere ao irmão, usa "xe kywy" que equivale em português a "aquele que está sempre ao meu lado". Magnum e suas irmãs não sabiam, mas eram legítimos herdeiros desse universo poético, dessa forma de organizar o mundo.
Na Rodoviária de Presidente Médici, o roseiral desceu, uniformizado, e da janela do ônibus ainda vi Magnum, o "xe kywy", que envelhecera anos em alguns minutos, protegendo o seu jardim florido, caminhando com seu gingado de cauboi e sua camisa bordada, iluminado pelas "xereindy", diminuindo, diminuindo, até desaparecer no poeiral, carregando, sem saber, o seu heroísmo anônimo e cotidiano.
Novos baianos
O ônibus da história não podia parar. Os assentos do roseiral foram ocupados por uma família de baianos: avó, dois filhos casados – Waldeci e Ubaldino – e uma porrada de meninos. A baianada inundou o ônibus de alegria. Falavam alto, gargalhavam, irrequietos, escancaravam, contavam histórias. A avó, de vez em quando, sem nenhum pudor, pipocava umas flatulências sonoras e fétidas, que eram comemoradas no banco de trás pelos netos debochados com gritos de “Gooooool do Brasil-il-il”.
Tapei o nariz, tirei caneta e papel e fui anotando discretamente: eles tinham vindo do Nordeste nos anos setenta. Waldeci veio na frente, caiu na mineração, faiscou nos igarapés e bateu nas catas, lavando cascalho, passando pelos rios Machado, Machadinho, Jamari e Candeias. No garimpo, aprendeu a tratar piolho com mercúrio. Santo remédio! Quando chegou Ubaldino, anos depois, eles se instalaram em vinte alqueires de terra, casaram, se reproduziram, mandaram buscar a mãe: a velha com alegria gástrica. Conseguiram financiamento do banco, plantaram feijão, milho e arroz e se ferraram com os preços, pegaram cada um umas quinze malárias, faliram. Agora, estavam fazendo o caminho de volta. Um deles, grave, me cutucou com o cotovelo e filosofou:
- Professor, Rondônia já foi. Hoje não é mais.
Depois de uma rajada de metralhadora, a vovó decidiu fazer o que devia ter feito desde o início: ir ao banheiro. Já próximo de Cacoal, uma freiada brusca, a porta mal fechada do banheiro se abre e a vovó desliza pelo corredor até quase os pés do motorista, com a calcinha no meio das pernas. A baianada explodiu em gargalhada, enquanto a vovó, rindo, se queixava que o banheiro estava entupido.
Escurecia. De Cacoal até Vilhena, passando por Pimenta Bueno, um dos baianos, com uma banana na mão servindo de microfone, imitava a voz cavernosa do locutor Gil Gomes, do programa “Aqui e Agora”. Entrevistava passageiros, querendo saber a opinião de cada um sobre as causas do entupimento do banheiro.
- A Po-lí-cia já des-co-briu quem dei-xou lá den-tro aquele ca-ga-lhão.
A minha descida em Vilhena, às duas da madrugada, foi triunfal, filmada pelas câmaras atentas do SBT e narrada pelo Gil Gomes que não dormia em serviço:
- Nes-te mo-men-tô, eu digô e repitô, nes-te mo-men-tô está des-cen-do ô ho-mem que en-tu-piu ô ban-hei-rô: ô professor de Ciên-cias Ocul-tas e de Le-tras A-pa-ga-das.
Ri. Rimos. Me despedi da baianada. Havia dito a eles que minha vinda a Vilhena era para dar um curso de História do Amazonas para agentes de pastoral indígena da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Acabei recebendo muitas lições num curso intensivo de 16 horas no ônibus da Viação Colibri: migração, verminose, malária, subnutrição, garimpo, cassiterita, crédito agrícola, bancos, preços, estrutura fundiária, terra indígena, floresta nacional, relações familiares, exploração e, apesar de tudo solidariedade e alegria de viver.
O Brasil continuou rodando, desenraizado, pela rota do pó, em direção a Cuiabá, levando os esquecidos, os deserdados e os sobreviventes da BR-364. E eu fiquei, diminuindo, diminuindo, como o Magnum, sem compreender como a gente não consegue construir um país decente, tendo um povo capaz de enfrentar tanto trabalho, sofrimento e dor com inteligência, alegria, criatividade e bom humor. Minha vista ficou embaçada. Cadê minhas irmãs? Cadê os meus óculos? Roubaram os meus óculos.