CRÔNICAS

Dois vampiros na Praça da Saudade

Em: 01 de Dezembro de 1992 Visualizações: 1566
Dois vampiros na Praça da Saudade

Na semana passada, ao sair da Caixa Econômica, em Manaus, vi dois vampiros amazonenses instalados com suas barraquinhas na Praça da Saudade. Um era um vampiro de origem turca. O outro, um vampiro careca. Ambos buscavam aquilo que qualquer vampiro procura: sangue. No caso, sangue manauara.

Que eram vampiros, não tenho a menor dúvida, porque de vez em quando fisgavam a veia jugular de algum incauto transeunte. Mas que um era bem diferente do outro, tenho certeza, porque enquanto o vampiro careca bebia gota a gota todo o sangue sugado, o vampiro turco guardava o líquido vermelho numa bolsa de plástico.

O leitor mais curioso deve estar se perguntando: por que o vampiro turco não bebe logo o sangue? Será que ele está guardando-o para a hora da merenda? Ou pretende vende-lo como se fosse xarope de groselha.

Vampiro turco

Nem uma coisa, nem outra. Cada gota de sangue retirada pelo vampiro turco vai para o HEMOAM - o Hemocentro do Amazonas, que abastece toda a cidade de Manaus, salvando inúmeras vidas. A vampiragem não é feita em benefício próprio, mas da coletividade.

Se o leitor quiser saber quem é o vampiro careca, vai ter que continuar lendo até o fim. Já o vampiro turco, pode ficar sabendo agorinha: é o doutor Nelson Fraiji, que passou toda a sua vida coletando sangue.

Quando conheci Nelson Fraiji, no final da década de 1970, ainda não existia o Hemoam, isto é, existia como algo absolutamente necessário, mas só na cabeça e no coração dele. Nesta época, ele já era obcecado por sangue, fissurado por plasma e glóbulo vermelho. Andava sempre com um canudinho no bolso e uma caneca na mão, pronto para em qualquer circunstância, retirar sangue de doadores potenciais. Neguinho bobeava, ele enfiava o canudinho.

Sangue é vida. Permanentemente angustiado com a falta de sangue para abastecer os hospitais de Manaus, Nelson se transformou numa espécie de apóstolo da vida, de militante do sangue. No meio de uma conversa qualquer, de repente ele te olha com um olhar profissional, aquele olhar fascinante de vampiro. Avalia todo o teu sistema vascular sanguíneo e te convencer a doar.

Pensa bem, leitora. Quantas vidas foram salvas no Amazonas graças ao trabalho persistente e obstinado de Nelson Fraiji, da doutora Leny Passos, atual diretora do Hemoam, e de toda a equipe anônima que lá trabalha com dedicação.

Sigo de longe pelos jornais a campanha de convencimento para que a população faça doação de sangue, um trabalho pedagógico que tem um profundo sentido político, porque através da doação, você passa a pensar no outro., naquele que, para sobreviver, necessita de um pouquinho da tua vida.

Doar sangue é compartilhar a vida com os outros, é sentir-se responsável pela coletividade. E somente quem se doa a uma causa, pode convencer os demais a doar. É o caso. Nelson Fraiji sempre foi um cara extremamente generoso, contagiando com o seu desprendimento e sua capacidade de entrega a todos aqueles que o cercam.

A única semelhança de Nelson Fraiji com o vampiro é a busca do sangue. No resto, é exatamente o contrário. Como cantou o poeta João Cabral de Mello Neto, o Nelson “corrompe com sangue novo a anemia e infecciona a miséria com vida nova e alegria” .

Vampiro careca

Já o vampiro careca tem tudo de vampiro: os dentes incisivos superiores enormes e afiados como uma navalha, da mesma forma que os caninos superiores dotados de extremidade cortante. Ele enfia-os no pescoço da sociedade amazonense e suga tudo o que pode: albumina, globulina, vitamina e se duvidar a tia Ernestina só para rimar.

No dia em que passei pela Praça da Saudade, Nelson estava lá. Enquanto ele estocava o sangue em bolsas de plástico para depois distribuir vida, o vampiro careca, guloso, bebia o sangue de suas vítimas numa cuia de tacacá e ainda usava o palitinho para pescar a parte coagulada do sangue, como se fosse jambu ou camarão.

O Fraiji tira sangue de quem tem para dar a quem precisa. Convence o indivíduo a compartilhar com a comunidade. O vampiro careca, ao contrário, tira sangue de quem não tem, do amazonense anônimo, em seu proveito próprio. Estoca o sangue no Tribunal de Contas do Município (TCM), onde existe um centrifugador de alta velocidade, que o transforma em mordomias.

Segundo denúncias do deputado Sebastião Nunes (PT) na quarta feira passada, o TCM é um ninho de vampiros que, em 1993, vai drenar do organismo social do Amazonas mais de 126 bilhões de cruzeiros, o que merece ser colocado aqui em algarismos: Cr$ 126.000.000.000,00. Esta é a soma prevista no orçamento do Estado para manter o TCM, que é exatamente o contrário do Hemoam.

De acordo ainda com Sebastião Nunes, todo esse sangue retirado do sistema vascular da nossa economia, “serve apenas para beneficiar a família Lis e seus comparsas”. Enquanto em todo o Brasil as contas dos municípios são julgadas pelo Tribuna de Contas de cada Estado, no nosso caso, onde já existe o Tribunal de Contas do Amazonas (TCM) para cumprir tal função, foi criado a excrecência de um Tribunal só para atender as mordomias da família Lins.

Olhem só o que o TCM, conhecido como Tribulins, fez com o César Bomfim. O Cezinha foi acusado de desviar mais de Cr$ 14 bilhões do Orçamento da Câmara Municipal. O TCM deu-lhe um leve puxão de orelhas, mandou que devolvesse menos de dois bilhões e estamos conversados.

Por essa razão, Sebastião Nunes quer cravar uma estaca no coração do Drácula e está propondo a extinção do TCM. Ah, Margarida, pra quê!  O deputado Belarmino Lins – o Belão (PFL vixe vixe), irmão do presidente do TCM, tio, primo, cunhado, genro, sogro e oscambau de uma cacetada de funcionários do mesmo Tribulins, se rebelou, saiu pra porrada e agrediu fisicamente o bravo e solitário Tião Nunes, deixando toda Itacoatiara, sua cidade natal, em estado de alerta.

Tribulins

O deputado Lupércio Ramos (PDC vixe vixe) discursou a favor do Tribulins, com um palavrório cheio de trololó e de generalidades:

- É certo – disse o deputado Lulu – que o TCM estava cheio de vícios (não disse quais), mas é oportuno observar que esses vícios do passado já foram superados” (não disse como).

Como é possível, numa sociedade anêmica como a nossa, com um alto índice de desemprego, com fome e miséria extremas, desencanto e desesperança, favela, violência, menores infratores que não sabem o que é um lar, manter uma aberração como o Tribulins, que consumirá no próximo ano os citados Cr$ 126 bilhões.

Belarmino, mano velho, não fica zangado não, mas acho que você vai ter que chamar o mano Átila e toda a parentada e avisá-los que a mamata tem de acabar. Não dá para continuar com a prática da vampiragem, porque já não há mais sangue para chupar. Leio nas colunas sociais os banquetaço que o Átila Lins oferece em Brasília, as viagens dos Lins para Miami e Orlando e nas páginas policiais as últimas gotas de sangue sendo derramadas. Não dá, bicho. Será que não é possível ceder os anéis para ficar com os dedos?

Aliás, na campanha eleitoral de 1982, o então candidato Gilberto Mestrinho prometeu acabar com o Tribulins, até como uma forma de moralidade. Se eu estivesse no lugar do Sebastião Nunes, faria um projeto com apenas três artigos:

Art. 1º - Fica extinto o Tribulins.

Art. 2º - Os Cr$ 126 bilhões a ele destinados serão canalizados para o Hemoam e a área da saúde.

Art. 3º - Ficam garantidos os direitos daqueles funcionários anônimos concursados que nada têm a ver com mamatas, maracutaias e mordomias.

P.S. No final de novembro de 1992, vindo de Roraima onde ministramos palestras, participamos do Ciclo de Debates sobre a História do Amazonas no Memorial Álvaro Maia, no Parque Dez, em Manaus.

 

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