Prisioneiro do trânsito na Lagoa Rodrigo de Freitas, olho pela janela do carro. Vejo a luz amarela, meio afogueada, faiscar na água. No outono, a luminosidade difusa no céu azul da cidade do Rio de Janeiro é assim, um espetáculo de rara beleza, capaz de converter ateus empedernidos. Aí, ligo o rádio e ouço uma voz anasalada cantando:
- Há um lugar para ser feliz, além de abril em Paris. Outono, outono no Rio.
Era o Ed Mota, em tom plangente, interpretando uma das músicas do seu último cd.
A coincidência é chocante. Afinal, nesse momento eu estou vendo aquilo que o Ed Motta está cantando. Sou testemunha ocular do crepúsculo luminoso, dos restos de brasa daquele céu incendiado. O referido é verdade e dou fé. Tabelião do tempo, meu coração lembra aquele abril, em Paris, onde conheci, há trinta anos, o outro pedaço de mim, com quem estou enlaçado de tal maneira, que não sei onde um começa e outro termina. "Merece uma crônica", eu penso.
MAUS POEMAS
Enquanto dirijo, vou redigindo mentalmente o texto dominical. Dois poetas, no entanto, mudam o meu itinerário. Durante a travessia do túnel Rebouças, um deles me aconselha a não escrever sobre aquilo que sinto. É Drummond, com sua "Procura da Poesia":
- "Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Não me reveles teus sentimentos. Não recomponhas tua sepultada e merencória infância".
Enfim, o recado é claro: não enche o saco do leitor com tuas lembranças e problemas pessoais.
Quando o carro entra na ponte Rio-Niterói, além de Drummond - "o tempo é de fezes, maus poemas e alucinações" - quem começa a me falar é o poeta alemão Bertold Brecht, argumentando que não há um lugar para ser feliz num mundo em que predomina a maldade, o sofrimento, a miséria e a injustiça:
- "Que tempos são esses em que falar de flores é quase um crime" - ele proclama, porque quem hoje fala de flores e amores se omite diante dos acms, barbalhos e outros atentados contra a vida.
Chego em casa, ligo o computador, abro os e-mails dos leitores e aí dou razão a Brecht. Entendo direitinho porque nós ficamos tão amargos, cáusticos, corrosivos, raivosos, com o coração endurecido. Caio na real. Nem outono no Rio, nem abril em Paris. Estamos em maio, em Manaus. Incapaz de compartilhar contigo minhas lembranças, guardo no baú da privacidade o outro pedaço de mim. Os e-mails, implacáveis, pedem passagem.
Recebi mais de 50 cartas, nessa semana. Uma delas, do leitor Eduardo, comentando matéria do Jornal do Brasil, enviada de Brasília por Luiz Orlando Carneiro, intitulada: "Corte Especial do STJ investiga Amazonino". Ficamos sabendo que o governador do Amazonas está sendo formalmente acusado de crimes contra a ordem tributária e de improbidade administrativa, por haver beneficiado a empresa Enconcel - da qual era sócio - com obras sem licitação pública, como a recuperação do Vivaldão.
Enfim, cada estado tem o barbalho que merece.
TEMPO DE FEZES
Cerca de 28 cartas sobre a Maternidade Balbina Mestrinho me intrigaram, porque cada uma delas foi assinada por uma pessoa diferente, mas o texto é exatamente o mesmo. Reclamam que estou "denegrindo a instituição" e "difamando seus profissionais", quando faço eco do índice de mortalidade ali constatado. ACM também considera qualquer crítica a seu comportamento como uma "ofensa à Bahia".
A leitora Maria Adelaide escreve, acrescentando uma frase:
"Se os bebês que nasceram na Balbina pudessem responder a você, acredito que eles diriam como você é bobo. Sou mãe e meu filho foi tão bem tratado, assim como eu".
Dona Adelaide, sortuda, devia solidarizar-se com centenas de mães, cujos bebés falecidos se pudessem me escreveriam gritando: "Pelo amor de Deus, denuncia isso, não deixa que esse assunto morra, como nós".
Outra leitora, Nilce Celestino, apresenta-se como usuária da Balbina, cujos serviços ela elogia "porque várias sobrinhas minhas deram luz na citada Maternidade". No entanto, parece que ela não é uma usuária comum, se for a mesma pessoa citada na carta de um funcionário da instituição, que assinou embaixo, enviando nome, endereço, telefone, CPF, RG. Pediu, no entanto, que omitisse seu nome, para evitar retaliações. Ele escreve:
"Há algumas coisas na Balbina que a população ignora. As praças. Se você não sabe a Maternidade tem duas praças 'mitológicas'. Uma delas fica próximo ao berçário e é envolta por paredes. É isso mesmo! É uma praça aonde os transeuntes olham para um espaço vazio, construído com dinheiro público! E que não serve para nada.
"Porém, coisa pior é a outra praça. Meu amigo, essa daí é brincadeira! As diretoras gerais pintaram uma parede com desenhos tristes do frajola, piu-piu, perna-longa, etc. Colocaram dois bancos de plástico e uma plaquinha com o nome: Praça Amazonino Mendes. Sinceramente, não gosto do Amazonino, mas não acho que ele mereça tamanha humilhação. Essa praça é uma das coisas mais ridículas que eu já vi na minha vida. Não desejaria isso nem para o meu pior inimigo político. Suportar esse tipo de puxa-saquismo deve ser uma coisa horrenda".
"Como se isso não bastasse ainda fomos obrigados a assinar um "abaixo-assinado" que supostamente seria enviado a você, neste abaixo assinado todos os funcionários concordariam que as denúncias da imprensa são mentirosas e um tanto fantasiosas. Acredito não ser necessário dizer que isto é mais uma mentira da Direção Geral".
ABRIL EM MANAUS
"As câmeras de vídeo. Toda a maternidade está repleta de câmeras, até aí tudo bem! Seria bom para a segurança, porém existem câmeras em salas administrativas, para monitorar os funcionários. Como se não bastasse, existem câmeras filmando a entrada e saída de viaturas, para detectar a vinda de carros jornalísticos que querem investigar atos praticados na maternidade. Parece cinema, né? Porém na vida real as coisas são bem amargas e difíceis de aceitar e mais ainda de conviver!!!"
"Nilce Celestino. Guarde esse nome, meu amigo! É o nome da diretora administrativa, que só cursou até a sétima série e está despreparada para o exercício da função. Um exemplo disso foi a seguinte frase estampada em uma página: SE ABRIL, FECHE. Não foi erro de digitação, foi falta de conhecimento, o que ela queria dizer, era: SE ABRIU, FECHE. Isso só para você ter uma ideia".
"Além disso, é notório dizer que existem funcionários com o terceiro grau e com o curso de administração hospitalar trabalhando em postos mais modestos. Meu emprego está em suas mãos, por favor não me identifique, conto com você! Peço porém que você use essas linhas na sua coluna".
"Só para terminar, quero que você saiba que a Dr. Luiza, aquela que fez as denúncias, está totalmente certa. Eu que trabalho aqui, sei. Aliás todos os funcionários sabem, mas ninguém abre o bico por medo e alguns por acomodação, sabe? Olha, alguns médicos foram chamados para depor e entregaram dados à promotora, confirmando as denúncias. Esse tipo de coisa a Direção não fala. Trabalho aqui há algum tempo, se tiveres qualquer pergunta, pode mandar".
Termino a leitura da carta com a voz do Ed Motta cantando: "há um lugar para ser feliz, além de abril em Paris. Outono, outono no Rio". Te aconselho, leitor, a ouvir a música e, se possível, a construir o verso que falta. É possível diminuir o índice de mortalidade na Balbina e ser feliz em Manaus. A doutora Luiza Mendonça, os médicos que estão confirmando suas denúncias, os funcionários íntegros da Balbina estão lutando para que a gente chegue lá. Luta tu também. Faz alguma coisa.
P.S 1 - Ontem, quando acabei de escrever esta crônica, recebi e-mail, cujo remetente é apenas 'Maternidade Balbina Mestrinho". O assunto: protestos e indignações de 276 "funcionários humildes". No entanto, ninguém o assina. Prometo publicar o documento, se me fizerem chegar os nomes dos signatários.
P.S 2 - Fiquei orgulhoso de ser amazonense, quando vi o sucesso de três jornalistas e de um historiador. Mário Adolfo e Simão Pessoa aconteceram na Bienal do Livro, Elaine Meneghini teve o documentário sobre a pupunha que ela roteirizou divulgado ontem por um canal de Tv do Rio de Janeiro e o livro de Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro sobre A Cabanagem estava lá, fazendo sucesso no stand do Amazonas.