Discretos, anônimos, distantes dos holofotes, os ‘sujeitos da esquina’ acabaram aparecendo duas vezes na mídia, nessa semana. Primeiro, na fala do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, para quem os juízes, antes de tomar suas decisões, não devem ouvir o que diz ‘o sujeito da esquina’. Depois, na declaração do deputado gaúcho Sérgio Moraes (PTB–vixe, vixe!), do Conselho de Ética da Câmara, que afirmou: “Estou me lixando para a opinião pública”. Afinal, o sujeito da esquina e a opinião pública atrapalham as decisões no campo da Justiça e da Ética?
Gilmar Mendes diz que sim, que compromete a autonomia do Judiciário:
“Não se dá independência ao juiz para ele ficar consultando o sujeito da esquina. O juiz tem o dever de arrostar a opinião pública em muitos casos. Do contrário, teríamos o linchamento como prática institucional”.
Ora, se ele sabe muito bem que ‘arrostar’ (enfrentar, confrontar) é um verbo que o povo não conjuga, suspeitamos que sua fala difícil é para que o dito cujo sujeito da esquina não entenda o que está dizendo.
Quem arrosta quem
Acontece que o sujeito da esquina entendeu e arrostou o ministro. No dia 6, manifestações simultâneas foram realizadas em três capitais, incluindo Brasília, que é uma cidade sem esquinas, mas com muitos ‘sujeitos’. Em todas elas, pediram a renúncia do ministro e exibiram cartazes “Fora Gilmar Dantas”, numa alusão ao banqueiro trambiqueiro Daniel Dantas, a quem o ministro concedeu dois habeas-corpus em menos de 48 horas, contrariando decisão de juiz de primeira instância.
Centenas de velas foram acesas “por uma nova luz no Judiciário”, iluminando a Praça dos Três Poderes, em Brasília, a Praça Afonso Arinos, em Belo Horizonte, e a Avenida Paulista, em São Paulo. As fotos, publicadas no site www.saiagilmar.blogspot.com, mostram um ato político inédito no Brasil: uma manifestação contra um representante do Poder Judiciário. Ou seja, o ministro não pode mesmo ouvir o sujeito da esquina, porque nesse caso terá que pedir o boné e se pirulitar.
Com ironia, Gilmar Mendes respondeu às críticas feitas, há duas semanas, pelo seu colega, ministro Joaquim Barbosa, que o acusou de destruir a imagem do Judiciário, sugerindo que saísse às ruas para saber o que pensam de suas atitudes: “Vamos ouvir as ruas para saber o que o povo pensa sobre o STF conceder ou não habeas-corpus? Ou os nossos blogueiros?” - pergunta ele, confundindo alhos com bugalhos.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Gilmar Mendes tem razão quando defende a independência do magistrado, que não deve ceder ao grito. Deve examinar os autos, os fatos, para decidir o que é justo. No entanto, sua independência deve se manifestar não apenas em relação ao grito popular – como quer o ministro - mas sobretudo ao sussurro e ao cochicho dos salões, dos gabinetes, dos palácios. E é aqui que o fiofó da cotia assovia – hic culum cotiae sibilare – como dizia o saudoso Orozimbo Nonato.
É que Gilmar Mendes perde a razão, quando rejeita os sujeitos da esquina, a quem se refere de forma depreciativa, mas cala quanto ao outro segmento da opinião pública, com quem convive, formada por banqueiros, empresários, fazendeiros, donos de terra e do agronegócio. O presidente do STF não freqüenta os mesmos lugares que os sujeitos da esquina, mas participa de coquetéis e comilanças com os poderosos. Nós, sujeitos da esquina, desconfiamos que ele ouve esse mundo, no qual circula.
Um grupo de 42 juízes e ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) teve passagens, hospedagens e refeições pagas pela Febraban – Federação Brasileira de Bancos, para participar de um congresso promovido em um hotel cinco estrelas, em Salvador (BA), durante o feriado prolongado de 21 de abril, incluindo as despesas dos respectivos cônjuges. Será que essa promiscuidade lhes permite arrostar esse segmento da opinião pública? Onde fica a independência?
Arrostar o sujeito da esquina é muito fácil, qualquer um arrosta diariamente, cuspindo, pisoteando, humilhando. O sujeito da esquina – coitado! – é um pé rapado. Quero ver o cabra macho que tem coragem de arrostar o sujeito do salão, como fez o juiz Fausto De Sanctis, que mandou duas vezes para o xilindró o trambiqueiro Daniel Dantas. O magistrado da operação Satiagraha – esse sim – foi independente, porque se limitou aos autos. Quando decretou a prisão do banqueiro delinqüente, o sujeito da esquina não havia ainda se manifestado. Por que Gilmar não arrosta a opinião dos banqueiros?
A mãe do recruta
Embora a vara da Justiça não deva ser dobrada pelo grito, não é pecado escutar o clamor popular, num crime que brada aos céus e clama a Deus por vingança, como o de Daniel Dantas. O banqueiro - que é acusado de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, sonegação e evasão de divisas - subornou um policial, tudo filmado, documentado e ainda por cima afirmou em alto e bom som que se o seu processo chegasse ao STF, ele tiraria de letra. Tirou de letra, indignando a sociedade e consolidando uma sensação de impunidade revoltante.
É para isso que serve o clamor popular. Não significa se subordinar ao sujeito da esquina, que – é verdade - não conhece os autos, nem os labirintos da lei. Não se trata, portanto, de “consultá-lo” tecnicamente. Mas quando ele se manifesta, é bom ouvi-lo, nem que seja para estabelecer um diálogo convencendo-o quando estiver errado. Isso não compromete a independência do julgamento. Afinal, o Direito não é uma ciência exata, o juiz não é infalível, a lei permite várias interpretações sobre a mesma questão e o juiz tem de ter responsabilidade social, não pode interpretar sempre contra o sujeito da esquina.
Se o ministro Gilmar lesse as mensagens que circulam na internet, arrostando-o, entenderia que a sociedade brasileira não acredita na independência do Poder que ele preside. Por causa dele, que se comporta como um político e não como um juiz, como afirmou o jurista Dalmo Dallari. A nossa esperança está em Joaquim Barbosa, que chutou corajosamente o pau da barraca e expressou o sentimento de todos nós contra uma justiça classista.
Quem concorda com Gilmar Mendes é o deputado Sérgio Moraes, que vai relatar no Conselho de Ética da Câmara o processo do deputado do castelo, Edmar Moreira (vixe, vixe!), acusado de sonegar impostos e de roubar a contribuição previdenciária dos funcionários de sua empresa. Moraes declarou que vai agir de forma “independente” e que está se “lixando para a opinião pública”. De saída, antes de ouvir as partes, ele já absolveu o acusado, seguindo sua própria consciência.
Como se formou a consciência dele? Segundo a revista ‘Veja’ do ano passado, Moraes e sua mulher, Kelly, foram denunciados por lenocínio, favorecimento de prostituição e receptação de jóias roubadas. Em 1990 foi até condenado a três anos e meio de prisão, mas a sentença foi posteriormente cancelada, por quem, como ele, não ouve o sujeito da esquina. Podemos confiar em sua consciência e em sua independência para julgar?
O ministro e o deputado seguem a mesma lógica da mãe do recruta, cujo passo não estava sincronizado com o resto do batalhão: “todo mundo está marchando errado, só meu filho está certo”. Estão errados o ministro Joaquim Barbosa, o juiz Fausto De Sanctis, o jurista Dalmo Dallari, os sujeitos da esquina, a opinião pública, as torcidas do Flamengo e do Corinthians. Só Gilmar Mendes e Sérgio Moraes estão com o passo certo. Eles não possuem desconfiômetro.
Quando Sancho Pança se tornou governador da Ilha, Dom Quixote lhe deu alguns conselhos. Para fazer justiça – disse Quixote – procura ser modesto, te observa e te conhece, para não inchares como o sapo que queria igualar-se ao boi. Sê humilde e não desprezes os pobres. Ele conclui com uma recomendação sobre a relação do juiz com os sujeitos da esquina - ‘los muchachos del barrio’ - e os sujeitos dos salões, que apresentamos aqui em tradução livre do espanhol:
“Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça, do que as versões do rico. Procura descobrir a verdade que se esconde detrás das promessas e dos brindes do rico, da mesma forma que detrás dos soluços e das lamúrias do pobre. Mas, se por acaso, dobrares a vara da justiça, que pelo menos não seja em conseqüência do peso do suborno, mas sim do da misericórdia”.