CRÔNICAS

Somos o lugar onde nascemos: Manaus Radiant

Em: 30 de Janeiro de 2025 Visualizações: 34
Somos o lugar onde nascemos: Manaus Radiant

Para o querido poetinha Aldísio e Margarida em seu castelo

“Mestre Machado de Assis afirmou que somos o lugar onde nascemos”. (Tenório Telles. 2024)

Peço permissão ao poeta pernambucano Félix Athayde (1932-1995), com quem trabalhei no jornal O Paiz, para parodiar esses versos do seu poema machadiano dedicado a Olinda, sua cidade natal:

Quando eu quero Manaus / não é lá que eu vou,

busco-a em mim mesmo, / onde Manaus eu sou.

Ficamos assim combinados: sou Manaus, por isso meu corpo, outrora sadio, está se desintegrando. Lá nasci cercado por igarapés, antes centros de lazer, hoje esgotos a céu aberto. Mangueiras, ingazeiras e benjaminzeiros, que davam sombra e ar puro, foram decepados por prefeitos e edis arboricidas, o que não evitou engarrafamentos, mas aumentou a poluição e o calor infernal. O patrimônio histórico, ecológico e afetivo foi sendo demolido. Os bairros novos da periferia cresceram sem qualquer planejamento, instaurando o caos urbano.

Corpo em decomposição: desmatamento e queimadas na floresta do entorno produziram recentemente um fumacê durante semanas, que asfixiou a cidade que eu sou, degradou a paisagem, adulterou cheiros, sons, cores e sabores, aumentando o número de doentes. Quem relata tal catástrofe é a pesquisadora Margarida Campos – ela também é Manaus -  em seu livro “Estação Radiant: Uma viagem por Manaus nos ônibus de madeira: anos finais da década de 1940 a 1960”:

- A cidade já foi bonita, cheirosa e atraente, antes de ser transformada nesse acampamento caótico e incontrolável que é hoje – escreveu, observando que a saúde e a qualidade de vida foram prejudicadas pelas inovações e mudanças da desordem e do progresso. Ela entende do riscado.  

Apareceu a Margarida

Pós-graduada em saúde comunitária pela UFBA e pela USP, a enfermeira Margarida dedicou sua vida à saúde física e mental dos moradores de Manaus. Lutou pela criação da carreira de sanitarista no Amazonas, coordenou o Planejamento da Secretaria de Saúde e dirigiu o Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, além de exercer docência nas faculdades de medicina da UFAM e da UEA. É deste lugar de fala que ela registra a precariedade do saneamento básico em “uma cidade pelada, sufocante e embrutecida”.

Sem mencionar os critérios usados, a revista britânica The Economist divulgou há dias que “Manaus é uma das melhores cidades para viver na América Latina em 2025”. Melhor para quem, cara pálida? Metade da população vive em favelas, sem esgoto. Melhor para empresários em busca do lucro fácil? A afirmação beira o cinismo, equivale a dizer que Trump é o presidente mais democrata do mundo, como postado no Instagram por um professor aposentado da UFAM, apaixonado pelo “DNA da democracia” yankee.

Foi aí que apareceu a Margarida, autora do livro que acabo de ler:

- Manaus está entre os dez piores municípios do Brasil no setor de saneamento, com a cobertura inferior a 10% - escreveu, apoiada em dados do Ministério das Cidades em seu Relatório sobre a Situação do Saneamento do país.

A autora, “mulher negra e pobre”, foi definida por Aldísio Filgueiras como “uma profissional que não compra vacina em casas de vinho” e que “vê a sua cidade de dentro do ônibus, pela janela, como se estivesse filmando os acontecimentos e os personagens com olhar seletivo, por isso mesmo crítico”.

É uma referência ao pai da pesquisadora, João Damasceno dos Santos, um marceneiro que, no final dos anos 1940, começou a construir em sua oficina carrocerias de madeira para ônibus, lotações e camionetes sobre chassi de caminhões para enfrentar o colapso dos bondes, que gerou a crise no transporte público de Manaus.  

O bonde: dlém dlém

Dez anos antes, esse “negro alto, elegante, de feições afiladas, faceiro e sedutor”, conheceu Lola, entendida em ervas medicinais e grande contadora de histórias, em um baile no “Onze Brilhantes” – clube popular do bairro da Cachoeirinha. Dançaram. Foi amor à primeira vista. Juntaram os trapos no final dos anos 1930 e tiveram cinco filhos: dois homens e três mulheres, entre elas, a autora.

Centenas de fotos e um texto fluente ancorado em dados convidam o leitor a passear por seus nove capítulos, cada um denominado “estação”. O que era a história da família se tornou história da cidade. Afinal, cada membro de sua família também é Manaus.

A viagem de ônibus, entre uma estação e outra, ocupa suas 560 páginas através do espaço e do tempo e permite conhecer a Manaus antiga.  O seu trajeto inicia com prefácios de três escritores: Tenório Telles, Aldísio Filgueiras e David Pennington. E termina com o posfácio de Etelvina Garcia. Tudo biscoito fino, meu caro Oswald.

Durante três dias viajei por essas páginas que fizeram cafuné nas minhas lembranças e reavivaram minhas recordações. A história do bonde, cujo som é evocado por Margarida, me fez lembrar a marchinha de Herivelto Martins tocada na Rádio Baré na voz da dupla sertaneja Alvarenga & Ranchinho:

Seu condutor, dlém, dlém (bis)

Para o bonde pra descer o meu amor.

O condutor parou. Dona Lola desceu. Subimos com ela no ônibus Radiant construído por Damasceno. Nele viajamos sobre o asfalto que cobriu os trilhos para esconder a memória resgatada agora por Margarida: lembranças da molecada pendurada no estribo, “morcegando” – subindo e descendo em movimento para fugir do cobrador, a fabricação de cerol com vidro triturado nos trilhos para a linha de empinar papagaio e os anúncios do bonde: Maizena, Biotônico Fontoura, Pílulas de vida do dr. Ross.

As estações

Essa foi a primeira estação - a Manáos Tramways and Light Company que, em 1909, assumiu a operação dos bondes e o fornecimento de energia elétrica e, dois anos depois, enfrentou uma greve de seus trabalhadores. O jornal Vida Operária denunciou a empresa como “um antro de ruínas, que ameaça a vida de dezenas de operários e da população, uma hydra que asfixia o povo e as rendas do Estado”.

Asfixiou mesmo. Depois de sugar o sangue amazonense, a Manáos Tramways devolveu, em 1949, a concessão de bondes ao Estado com sua frota já obsoleta. A alternativa local foi artesanal, com a construção de carrocerias de ônibus dotados de nomes sugestivos.

Um capítulo foca o trabalho de Damasceno na oficina com detalhes da compra de madeira.  Percorremos com ele as madeireiras. A autora se detém na Serraria Pereira para rememorar o caso Delmo, filho do dono que, em 1952, matou duas pessoas e foi assassinado por motoristas de táxi em crimes que abalaram a cidade. Discorre sobre a serragem usada para fabricar os Judas na Semana Santa e mergulha na cultural popular: a malhação do Judas e a prática do “serra-velho”.

De estação em estação, o nosso ônibus dá umas paradinhas para registrar brincadeiras de criança e cantigas de roda, com tempo para ouvir as histórias fantásticas de dona Lola e a crônica do dia na voz de Josué Cláudio de Souza em plena era de ouro do rádio. Revela também o que ocorria dentro do ônibus, onde havia “um clima psicológico próprio para o estabelecimento das relações humanas”. No meio de um solavanco e outro, ouvimos conversas entre passageiros e até o surgimento de namoro, quando rolava um clima.

Inventário de saudades

O ônibus vai atravessando o tempo. Nós, passageiros, da janela olhamos as batalhas de confete na avenida Eduardo Ribeiro, os bailes nos clubes populares, o desfile da escola de samba da praça XIV. Em uma parada, descemos para matar a sede com guaraná Tuxaua, Magistral, Baré ou Luseia, o resto era prosopopeia.

O ônibus avança no tempo. Contemplamos as festas juninas, as adivinhações, os compadres de fogueira, os suspiros dos Cantores de Ébano entoando “oi leva eu minha saudade”:

- Na noite de São João, no terreiro uma bacia, que é pra ver se para o ano nosso amor ainda vivia.   

O amor de Damasceno e Lola viveu longos anos. Em outra estação, ao lado do casal, admiramos o Festival Folclórico na praça general Osório, que era pública e foi privatizada na ditadura pelo quartel do Exército. Em algumas páginas, assistimos o desfile dos diferentes bois-bumbá e o resumo da história que contam. De dentro do ônibus, ouvimos brincantes do Corre Campo:

- Pisei, pisei, pisei / pisei torno a pisar / pisei Mina de Ouro / Na esquina do Boulevard.

O inventário das saudades é feito em cada parada: Aeroporto de Ponta Pelada, Iapetec, o Aviaquário da Praça da Matriz, Praça da Saudade com caramanchões de bougainvilles, Maloca dos Barés, o Mercadão com vitrais e arquitetura de ferro inspirado no Les Halles de Paris e construído no período áureo da borracha, os cinemas, o Teatro da Divina Providência, vovô Branco no Teatro Amazonas, Oscarino e o boneco Peteleco divertindo a meninada nas ruas, o Batuque da Mãe Joana, quermesses, restaurantes, padarias portuguesas, bancas de tacacá - centro de fofoca sadia (nem sempre).

Cada estação é recheada de detalhes. Um capítulo à parte são os igarapés saudáveis e límpidos, com banhos no fim de semana. Meu irmão morreu afogado em um deles – o Mindu – mas foi em suas águas que aprendi a nadar. A linha do ônibus de madeira chega até o Parque Dez, inaugurado em 1943 por Antóvila Mourão Vieira, cujo jingle lembrei:

- Povo, povo, povo, o senador do povo, oi (bis)

Antóvila Mourão Vieira no Amazonas tudo novo.

Era uma paródia da cantiga de roda: “Fogo, fogo, fogo, fogo de abrasar”.

Um tour melancólico

Que fogo abrasador.  À medida que avança no tempo, o tour se torna melancólico: no centro da cidade, se depara com escombros e cinzas. Os paralelepípedos de lioz importados de Portugal foram cobertos por asfalto. Prédios públicos, casas residenciais e bangalôs com fachadas de azulejos lusos foram derrubados e substituídos por edifícios de gosto duvidoso:

- “Nada escapou ao processo predatório: praças, jardins, monumentos, chafarizes, vias, palacetes que proliferaram no boom da borracha foram demolidos ou desfigurados” – diz Margarida.

O ônibus trafega pela periferia, os novos bairros estão cercados por favelas “transformadas em espaços devastados de vegetação, sufocante, com esgoto a céu aberto, sem coleta e destino final do lixo”. O Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM), de nome pomposo e alto custo, não fez saneamento algum, só aterrou igarapés, aumentando o desastre ecológico e “a destruição irreversível desses mananciais transformados em canais receptores de esgotos”.

Os defensores dessas transformações chamam isso de “progresso”, mas para Margarida o progresso é exatamente o contrário. A verdadeira civilização “preserva o belo, a natureza, a cultura, a história, os saberes e as referências tradicionais”.

- Então o mundo antigo era melhor? – a autora se pergunta. Assume que não é maniqueísta e sabe que o assunto é complexo, consciente da crítica do poeta espanhol Jorge Manrique que, no século XV, versejou: “Cómo, a nuestro parecer, cualquiera tiempo passado fue mejor”. No entanto, ela reconhece que as boas lembranças do passado lhe trouxeram vida e inspiração em meio a desolação do mundo atual.

O livro traz esse passado para o presente como “uma forma de oposição e denúncia da destruição da história, tradições, cultura e do espaço de vivências”. A viagem na contramão dessa tendência estimula “o sentimento pela reconstrução, restauração e preservação do espaço social e histórico da cidade, valorizando as vivencias saudáveis e civilizadas da Manaus que o vento levou”. A autora nutre a esperança de que os manauenses se reconheçam no processo histórico de sua cidade e participem do esforço para reinventá-la.

Marcas dos passos

A autora entrevistou construtores e proprietários de ônibus ou suas famílias, motoristas, cobradores, passageiros e a si mesma, já que é ao mesmo tempo informante e narradora. Trabalhou com fontes primárias e informais de memória oral, consultou fontes secundárias, bibliográficas, documentais e de mídia impressa e digital, jornais, blogs como do inesquecível Rogélio Casado, além de fontes secundárias como obras de Djalma Batista, Jefferson Peres, Márcio Souza, Luiz Ruas, Bradford Burns, Etelvina Garcia, entre outros.

Dessa forma, conseguiu elaborar tabelas com a lista dos ônibus, de seus proprietários e até das marcas dos chassis. Foi uma “coleta penosa e incompleta” devido à raridade de fontes primárias e da fragilidade da memória dos informantes – ela sinaliza.

- A narrativa se distancia de certo memorialismo nostálgico – avalia Aldisio. Efetivamente, Margarida não chora sobre as cinzas do passado, ela sopra a brasa para ativar a memória. Parece seguir a recomendação do socialista Jean Jaurés, para quem “preservar a tradição não é conservar as cinzas, é soprar a brasa para garantir que o fogo permaneça aceso”.

O poeta amazonense Ernesto Penafort (1936-1992), que lutou contra a ditadura, escreveu esses versos sobre a memória da resistência:

Dos passos que foram dados, nem marcas restam no chão.

E dos seus sonhos alados? Nem as asas restarão,

pois foram todos sonhados no espaço de um porão.

O livro de Margarida é uma tentativa arqueológica de cavar o chão para buscar debaixo dos trilhos e dos paralelepípedos as marcas escondidas dos passos que foram dados por Damasceno, falecido em 1977, por dona Lola, em 2010 e por aqueles da nossa geração que ainda sobrevivem. Ela conseguiu.

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