A maioria dos jornalistas brasileiros – eu entre eles – está mais apta a limpar bunda de elefante do que a explicar para seus leitores o que são neutrinos ou partículas supersimétricas. Com os devidos descontos, foi o que aconteceu, em 1971, em Paris. Uma organização de ajuda a exilados me deu carta de recomendação para trabalhar no Circo Medrano, em Lyon, como “auxiliar em recolhimento de dejetos indesejáveis de animais de grande porte”, fato testemunhado por Alberto Santoro e sua esposa Beth. A humilhação foi maior, porque não era pra ser "titular", mas um mero "auxiliar".
Na época, no exílio, era eu um jornalista desempregado que topava qualquer parada, só um ano depois passei a ser correspondente do semanário Opinião. Santoro, cientista ligado ao Serviço de Física Teórica, em Saclay, engatilhava seu doutorado na Universidade Paris VII. Hoje, ambos aposentados, mas em plena atividade acadêmica, recebo dele convite para proferir palestra no Encontro da International School on High Physics (Lishep) que, desde 1993, ocorre a cada dois anos, realizado agora nos primeiros dias de março na UERJ.
Embora lisonjeado, me perguntei: o que alguém, que nunca estudou física, tem a dizer num evento dedicado aos “Cem anos de descoberta da Física de Partículas”, cujos participantes são pesquisadores de mais de 15 países? Entre eles o Prêmio Nobel de Física (1997), Claude Cohen-Tannoudji, professor de Física Atômica e Molecular do Collège de France, em Paris. Tremi nas bases. Uma sobrinha jornalista casada com renomado físico da USP, quando viu os nomes dos físicos, achou que eu nada tinha a fazer no evento e debochou:
- Tio, ainda tens a carta de recomendação? Acho bom você começar a procurar o fiofó do elefante, talvez agora - quem sabe? - promovido a "titular" e não mais como "auxiliar".
Linguagem escrita
Por que limpar cocô de elefante, um dos piores empregos do mundo, é mais fácil para um jornalista do que navegar entre Altas Energias, Quarks, Glueball, Master Class e Aceleradores de Partículas? Tentei responder com a palestra “Midia, analfabetismo cientifico e o Big-Bang no mito Tukano de criação do mundo” proferida na quinta-feira (2), destinada a professores de física e jornalistas de ciência.
Abordei a formação do jornalista em sua relação, de um lado com a ciência e de outro, com os saberes dos povos originários. Não somos preparados nos cursos de jornalismo para ler os discursos científicos nem as narrativas míticas, bases dos saberes da humanidade. Em consequência, com honrosas exceções, a mídia é analfabeta nos dois casos, entendendo “alfabetização” como um dos instrumentos – não o único – de leitura do mundo.
O repórter que cobre a área da ciência não sabe, coitado, se neutrino se come com farinha e, fruto do currículo anacrônico, ele acaba produzindo aberrações como chamar preconceituosamente de “dialetos” as línguas indígenas. Em alguns países desenvolvidos, jornalismo não é curso de graduação, mas de especialização. Um físico, um químico, um linguista ou um antropólogo, um economista, um botânico ou um zoólogo cursam pós-graduação em jornalismo, levando para lá teorias e conceitos da sua área específica.
Levantamento feito por Graciele Almeida e Diogo Lopes revela que menos de 5% dos cursos de graduação de jornalismo tem disciplinas dedicadas ao jornalismo científico. Várias iniciativas louváveis, mas ainda nascentes, foram feitas ultimamente em cursos de especialização por diferentes instituições: Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), Laboratório de Jornalismo da Unicamp, Agência Bori, Ambiental Media, Curso da UFMG denominado de Amerek (cutucão, beliscão, em língua Krenak).
Ler a oralidade
Se cada ciência constrói sua própria linguagem, quem a desconhece não pode “traduzir” com propriedade aos leitores as descobertas feitas nesse campo. Mesmo dominando técnicas de entrevista, até para formular perguntas ao especialista e entender a resposta, é necessário se apropriar desses conceitos. Em aulas na ECO da UFRJ, Zuenir Ventura definia criticamente o jornalista graduado, sem formação para entrar no campo de qualquer ciência, como um profissional superficialmente profundo e profundamente superficial.
Mas o problema não se limita à escrita. Somos também analfabetos da oralidade, não sabermos ler os discursos orais de povos sem escrita alfabética, considerados grafocentricamente como povos carentes de escrita, quando na realidade são independentes dela, possuem outras formas de registro e não precisam do alfabeto para reproduzir suas culturas. É claro que o contato sistemático com a sociedade nacional leva os povos oralizados a se apropriarem da escrita, o que fazem com o pé nas costas.
Lembrei dois grandes cientistas do séc. XIX, o botânico Martius e o zoólogo Spix, que viajaram em 1819-1820 pelo rio Amazonas e consideraram "fantasioso" o mito Tikuna de origem da vida, que fala de um único ser saído da água e do qual descendem os demais. A ciência da época - foi antes de Darwin e sua teoria da evolução - achava que o homem havia surgido prontinho e acabadinho no planeta. Por isso, os dois alemães, com uma arrogância abissal, desqualificaram a narrativa Tikuna.
Hoje, o biólogos ensinam nas universidades que toda vida existente na terra descende de um único ancestral, de um organismo unicelular que deu origem a todas as espécies vivas, visão mais próxima do mito Tikuna do que da ciência de Martius e Spix. "Se vê cada vez mais claro que a compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo" – diz Boaventura de Souza Santos, que considera como “epistemícidio” a negação de outros modos de produzir conhecimento.
A avó do mundo
Já nos dizia o físico e matemático da Universidade da Califórnia, Brian Swimme, no seu livro The Universe is a Green Dragon, que os cientistas começaram a perceber as limitações do texto científico para dar conta do universo e que a linguagem que melhor consegue expressar sua grandiosidade é a linguagem poética, metafórica, que afirma que o universo é um dragão verde.
No mito Tukano, povo do rio Negro (AM), quem criou o universo e os seres humanos foi a avó do mundo, que tem útero e pode parir gente, ao contrário do Deus masculino do Velho Testamento. O corpo dela foi abraçado, beijado e acariciado pela música, em forma de redemoinho de vento, que penetra sua carne, seus ossos e até seus pensamentos e a engravida, fazendo aumentar a temperatura ambiente. O ato amoroso provoca enorme explosão, com grande estrondo. Esse é o Big Bang Tukano. Somos todos filhos da avó do mundo fecundada pela música.
Lévi-Strauss vê a grandeza do Ocidente no pensamento científico, mas chama a atenção para a função do mito na contemporaneidade e mostra como a própria ciência produz mitos para explicar aos não-cientistas verdades inacessíveis ao leigo: big-bang, universo em expansão, etc. Depois de estudar mitos indígenas, o antropólogo francês concluiu em História de Lince que "de modo mais inesperado, é o diálogo com a ciência que torna o pensamento mítico novamente atual".
Depois do evento, tenho uma vaga ideia do que são os neutrinos. Parece que escapei por pouco do elefante. No final, o auditório foi condescendente. Respirei aliviado. Nem doeu.
Ver também: 1) Carta a Rogério de Cerqueira Leite escrita em 7 de setembro de 2014 sob o título: Marina, o Dragão Verde e a Avó do Mundo. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1104-marina-o-dragao-verde-e-a-avo-do-mundo 2) Alberto Santoro: a particula de Deus? https://www.taquiprati.com.br/cronica/949-alberto-santoro-a-particula-de-deus-
P.S. 1 Ailton Krenak na Academia Mineira de Letras
"Minha escrita é pela oralidade. Alguém me perguntou certa vez se, agora, eu me dedicaria a sentar para escrever um livro, afinal, as minhas obras são transcrições de palestras. Aí eu respondi: pode ser que eu me dedique a falar um livro, porque é assim que eu escrevo" – disse Ailton Krenak em seu discurso de posse na cadeira nº 24 da Academia Mineira de Letras (AML), nesta sexta (3). Para nós, ele já era imortal, mas agora sua “imortalidade” foi reconhecida institucionalmente.
No discurso de recepção, a acadêmica Maria Esther Maciel destacou o trânsito criativo de Ailton “por diferentes linguagens, culturas e territórios. Seus livros, depoimentos, relatos, narrativas e poemas são registros vivos de um pensador-escritor que, com sabedoria, inteligência e sensibilidade poética, é capaz de ver a ancestralidade no futuro e nos apresentar vias possíveis para o adiamento do fim do mundo”. Salientou ainda sua “reflexão sobre o mundo devastado do presente pelas práticas genocidas”.
Ailton, que recebeu o diploma pelas mãos do deputado federal Patrus Ananias (PT), revelou que desde o início da cerimônia a presidente da Funai, Joênia Wapichana, ali presente, havia saído do auditório três vezes para atender telefonemas, porque grileiros do Mato Grosso do Sul haviam acabado de atacar o povo Guarani-Kaiowá no território Laranjeira Nhanderu.
P.S. 2 – Marilza de Mello Foucher, escritora amazonense residente em Paris, está no Brasil para lançar em várias cidades brasileiras seu livro Fragmentos de Tempos Vividos (Editora Valer, Manaus, 2020). Começa em Manaus, nesta terça-feira (7) às 18h00 no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). No Rio, às 17h00, no sábado (18) no Espaço Itaú Unibanco, Praia de Botafogo. O livro vem recebendo elogios da crítica especializada. Gutemberg Guerra, professor aposentado da Universidade Federal do Pará (UFPA), avalia que “o livro é um registro importante sobre a vida universitária na França e a inserção de brasileiros nesse universo cosmopolita”.