E à noite nas tabas, se alguém duvidava / do que ele contava / tornava prudente: “Meninos, eu vi!” (Gonçalves Dias. I-Juca-Pirama, 1851)
- Minha filha, se eles invadem a aldeia e começam a matar teus irmãos, foge. Foge, minha filha. Foge!
Este conselho do cacique Payaré dado na língua Jê-Timbira à sua filha pequena Tônkyre Akrãtikatêjê, a primeira cacica do povo Gavião hoje com 53 anos, parece desconcertante na boca do valente guerreiro, cuja vida foi marcada por coragem e solidariedade. Estava ele se acovardando? Ou queria manter viva a filha, tal qual o literário guerreiro tupi I-Juca-Pirama preso pelos Timbira, que chorou diante da morte para salvar seu pai cego? Nada disso. Na sequência, Payaré completou:
- Escapa, minha filha, porque alguém tem de sobreviver para contar o que testemunhou com seus próprios olhos.
A filha, que depois substituiria o pai, sobreviveu e seguiu a recomendação sobre a necessidade de ocupar outra trincheira de combate: a da luta pela memória, sempre controlada pelo inimigo, que a manipula e distorce. Não era uma fuga, mas a escolha do campo de batalha, que requer combatentes do lado de cá, como no poema épico de Gonçalves Dias, de dez cantos e 484 versos, no qual o “velho Timbira, coberto de glória, guardou a memória” daquilo que presenciara.
A luta pela memória passou pela recuperação da sua identidade e de seu nome indígena recusado pelo Cartório, que a registrou como Kátia - assim é hoje conhecida no Brasil. A conversa com o pai, aqui contada do meu jeito, está no filme "Pisar Suavemente na Terra" de Marcos Colón, lançado no Rio, sábado (5). Mas Kátia Tônkyre aparece ainda em outros dois filmes: “Entre Rios e Palavras: as línguas indígenas no Pará em 2021”, de Maurício Correia e indiretamente em Segredos do Putumayo, de Aurélio Michiles, os três filmes unidos pela temática da memória.
Pisar de leve na terra
O combate pela preservação da memória, das línguas e do território atravessa toda a Amazônia indígena assaltada por empreendimentos modernizantes, que falam em nome do progresso, numa destruição planejada pela “economia do desastre” – segundo Ailton Krenak, um dos narradores do Pisar Suavemente na Terra. “Só trazem destruição, drogas, prostituição” diz o cacique Manoel Munduruku e criam “miséria, pobreza, contaminação, corrupção” nas palavras do Kokama José Manuyana.
As imagens revelam a área desmatada da mina de bauxita da Alcoa, em Juriti (PA), a rodovia Br-222, a estrada de ferro Carajás que corta a aldeia da mesma forma que os linhões de transmissão elétrica, o trem noturno que desperta moradores e espanta animais, o embarque da soja em Santarém, as hidrelétricas de Belo Monte e Tucuruí, o garimpo do rio Tapajós que mata a vida aquática, a ação devastadora de madeireiros e até o desfile de urubus entre as palafitas de Iquitos, no Peru. A Amazônia está ferida de morte.
Como resistir num contexto em que a economia só existe se o desastre acontece, como ocorreu com mineração na Terra Indígena Krenak em área do Rio Doce narrada por Ailton?
A câmara acompanha o professor Kokama na Amazônia peruana, de onde se desloca para as aldeias do Pará. Em uma delas está o cacique Manoel Munduruku. Na outra Kátia Tônkyre, com sua assombrosa lucidez, relembra quando, aos 9 anos, presenciou o cerco à sua família, em Tucuruí, nos anos 1980, e três jagunços tentaram degolar seu pai. Mas o documentário registra também a resistência. No debate que se seguiu até às 23h00 com Ailton Krenak, Marcos Colón declarou:
- A Amazônia é geralmente pensada como mercadoria, como objeto de exploração. Mas devemos pensar a Pan-Amazônia a partir dos seus povos, do que é importante para eles: os modos de sobrevivência, a água, a floresta, a biodiversidade, as culturas locais porque, como disse Ailton Krenak “a gente só existe porque a terra deixa a gente viver. É a mãe terra que nos dá a vida. É preciso pisar suavemente na terra”.
Entre rios e palavras cantadas
Katia Tônkyre protagoniza também o outro filme Entre rios e palavras, onde dialoga sobre a história do Nheengatu e das línguas na Amazônia com vários indígenas, entre eles Bewari Tembé, Muraygawa Assurini, Márcia Kambeba e Dayana Borari. O filme exibido no V Colóquio Internacional Mídia e Discurso na Amazônia (DCIMA), em Belém, nesta quinta (10), foi seguido da mesa A Revolução Linguística no Baixo Tapajós com falas de Sâmela Ramos, Luana Kumaruara, Raquel Tupinambá e Vera Arapium.
O tema do evento “Outros Possíveis” foi na mesma direção do “Pisar suavemente na terra”. Seu objetivo foi visibilizar e fortalecer formas de vida diferentes das normas ditadas pelo sistema capitalista, com propostas para desconstruir a colonialidade, consciente de que “o planeta não é uma propriedade privada do homem”, que existem muitas outras linguagens além da palavra e que é necessário ver o mundo a partir de outro lugar.
A revolução linguística feita pelos Grupos de Consciência Indígena do Tapajós (GCI) recupera a memória e os processos próprios de aprendizagem do Nheengatu e de outras línguas indígenas duramente reprimidas. Kátia Tônkyre fala da preocupação do seu pai para que fosse alfabetizada em sua língua e resume a pedagogia Akrãtikatêjê, explicando como os ensinamentos são passados por meio de canções, com lições aprendidas na vivência diária. A língua é falada e, sobretudo, cantada, antes de ser escrita.
- É a aprendizagem de como a gente inventa as músicas, como elas podem ser cantadas para entender a época de plantar, de conservar as sementes, da importância de guardar as músicas através das brincadeiras, do dia a dia, do tempo. Nossas músicas cantam os animais, o tempo, a madrugada, a noite, o cotidiano, o caminhar. Nós temos músicas da cabeça da onça, do peixe, da anta, da guariba, de cada animal, que são repassadas como mensagens, um recado através da cantiga.
Segredos do Putumayo
Embora os Gaviões Akrãtikatêjê não tenham presença física no longa-metragem Segredos do Putumayo, a preocupação pela memória foi discutida pelo diretor Aurélio Michiles e por Wanda Uitoto na quinta (27/10), quando o filme foi exibido no seminário “Darcy Ribeiro: pensamento humanista em tempos de barbárie” organizado pela Casa de Oswaldo Cruz.
O extermínio de mais de 30 mil indígenas no rio Putumayo aparece em todo seu horror no documentário, que recupera o diário do diplomata e nacionalista irlandês a serviço da Coroa Britânica, Roger Casement (1864-1916), cônsul no Brasil. Ele foi encarregado de investigar, em 1910, as condições de trabalho da Peruvian Amazon Company, financiada pela Bolsa de Londres, que escravizava indígenas nos seringais.
As informações do Diário de Casement, julgado e condenado à morte na forca pelo crime de “traição, sabotagem e espionagem contra o Reino”, são complementadas por imagens de Silvino Santos No País das Amazonas (1922), depoimentos, entre outros, do historiador Angus Mitchell, do escritor Milton Hatoum e de indígenas dos povos Uitoto, Bora, Okaina e Muinames, habitantes de La Chorera (Colômbia), depositários da memória e da documentação oral. Lá Michiles entrevistou uma igualmente brilhante Kátia local.
A exibição dos três filmes que tive a sorte de ver antecedem o 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena (FeCCI) a ser realizado em Brasília de 2 a 11 de dezembro, com programação de longas-metragens de temática indígena e ambiental focada no tema central: “Como você cuida da sua aldeia?” e com indicações de caminhos sobre outras formas de viver no mundo. Já sabemos como os Gaviáo- Akrãtikatêjê cuidam de sua aldeia, onde a cacica Kátia vive com sua sabedoria. Meninas, ela viu. E todo mundo também agora pode ver, graças ao testemunho dela.
- Pisar suavemente na terra. Direção de Marcos Colón, filmado no Brasil, Colômbia e Peru e vencedor do Prêmio de Melhor Fotografia no Festival Filmambiente 2022. Com Kátia Akrãtikatêjê, Manoel Munduruku, José Manuyama e Ailton Krenak. 83 minutos.
- Entre rios e palavras: as línguas indígenas no Pará, direção e montagem de Mauricio Neves Correia. Produção Ivânia Neves GEDAI. Elícia Tupinambá – Se anama (versão de Florêncio Vaz). 76 minutos
- Segredos do Putumayo dirigido por Aurélio Michiles e filmado na Amazônia brasileira e colombiana, inspirado no “Diário da Amazônia” de Roger Casement. Fotografia de André Lorenz Michiles. 83 minutos