Empresários espertalhões, com certidão falsa de propriedade na mão, estão vendendo terras que não lhes pertencem, localizadas na Ponta Negra - área nobre de Manaus - onde foram construídos condomínios de luxo, o Tropical Hotel e uma obra inacabada do Maksoud. Quem denunciou foi o empresário amazonense José Souza do Nascimento, em anúncios publicados num jornal local nos dias cinco e sete de setembro, afirmando que se trata de um crime da iniciativa privada contra os cofres públicos do Amazonas.
A certidão, expedida em 7 de novembro de 1953, atesta que um tal Felippe Joaquim de Souza Filho obteve o título definitivo das terras em 21 de janeiro de 1896. O funcionário do Arquivo Público que assinou o papel jurou que queria ver sua sogra mortinha no inferno se estivesse mentindo. Dessa forma, condenou a velha ao fogo eterno, porque a Procuradoria Geral do Estado (PGE) descobriu que 7 de novembro de 1953 caiu num sábado. A repartição estava fechada. O conteúdo da certidão é, pois, falso. A PGE decretou sua nulidade.
A área usurpada é superior a 6 milhões de m² e vale R$600 milhões. É grana pra cacete. O Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de 2007, deu ganho de causa para o Estado sobre uma área menor, a Gleba Tarumãzinho, que vale R$ 100 milhões. “O povo amazonense ganhou, mas não levou, porque o Estado, que recuperou o domínio jurídico, não pediu o terreno de volta, deixando que continue sendo loteado. Depois de 16 anos de luta, não houve, como era de se esperar, qualquer ação reivindicatória” diz Zeca Nascimento, perguntando: Por que vereadores e deputados não cobram do Executivo a defesa do patrimônio público?
A essas perguntas, acrescento outras: Por que o Zeca Nascimento está denunciando? O que ele ganha com isso? Por que eu e os leitores estamos nos metendo nessa história? Quem são esses empresários inescrupulosos? Afinal, de quem são essas terras? Como identificar seus verdadeiros donos? A única possibilidade de responder essas perguntas é apelar para a história da ocupação da região, cruzando a documentação, tanto oral como escrita. Podemos tentar reconstruir a ocupação desde o início.
Os índios Tarumã
No princípio, não havia nada, só uma enorme escuridão. Dentro dela, existia o espaço frio, o espaço vazio, o espaço triste, o espaço sem idéias. Nesse espaço, surgiu uma voz. Eram músicas, com o corpo invisível em forma de vento, que andavam dançando e fazendo carinho. No meio de uma nuvem branca brilhante, apareceu uma mulher que vivia por si mesma, chamada Ye´pá. Ela fez a cerimônia do sopro e, assoprando e defumando, criou a terra, as humanidades e a vida.
É assim que o mito Tukano, narrado pelo sábio Gabriel Gentil, falecido recentemente, conta como foi a criação do mundo. A terra surge das mãos não de um Criador, mas de uma Criadora, fecundada pela música que andava em volta dela, em forma de redemoinho de vento, e que entrou no seu corpo, acariciando-o. Depois disso, Ye´pá distribuiu a terra entre diferentes etnias, que a ocuparam, enchendo-a de alegria, de luz e de gente. Aos índios Tarumã, coube o território que hoje engloba a Ponta Negra.
Esse relato oral é tão verdadeiro, tão fidedigno, tão poético quanto a Bíblia, mas quem não é capaz de ler nas entrelinhas da oralidade, deve buscar a documentação escrita. Foi o que fez William Denevan, pesquisador da Escola de Berkeley, autor de estudos de demografia histórica do século XVI. Depois de revisar os documentos históricos, ele calculou que os europeus encontraram a Amazônia habitada por aproximadamente 6.700.000 índios, entre os quais se encontrava o povo Tarumã, nome com o qual ficou conhecido parte de seu território.
No século XVII, os missionários tentaram catequizar os Tarumã, mas os índios resistiram. Suas aldeias foram invadidas por tropas de Pedro da Costa Favela, suas malocas incendiadas, muitos morreram e outros foram levados como escravos para Belém. Os sobreviventes fugiram, percorrendo mais de 2 mil km. até chegar ao rio Essequibo, na Guiana Britânica, onde estavam, em 1837, quando por lá passou o alemão Robert Schomburgk. Essa migração foi reconstituída pelo lingüista tcheco Cestmir Loukotka, que estudou a língua Tarumã.
Depois do exposto, ficamos assim combinados: toda a Ponta Negra pertencia aos índios Tarumã, cujas terras foram invadidas pelos portugueses. Sobre isso não existe a menor dúvida. A confusão começa quando nos perguntamos: quem são os herdeiros dos Tarumã? Se eles não têm herdeiros, a Ponta Negra é, então, propriedade de quem? Para saber disso, só consultando os livros de registro de terra e é aí que o fiofó da cotia assovia.
O fiofó da cotia
Em 1977-1978, consultei os Livros de Registro de Terra para uma pesquisa do Mestrado em Desenvolvimento Agrícola, da Fundação Getúlio Vargas, sobre a História da Agricultura Brasileira. Na época, o Arquivo Público do Amazonas não tinha condições para conservar a documentação ali existente. Os funcionários eram gentis, mas sem formação especializada. Quando chovia, as goteiras provocavam desabamento de estantes e transformavam a papelada em substância pastosa. Por isso, a Secretaria de Produção ficou com a guarda dos livros, cujos registros foram feitos a partir de 1926, mas os do período anterior permaneceram no Arquivo.
Constatei que esses livros estavam bastante deteriorados, alguns com folhas arrancadas, como é o caso dos registros de 1895, outros comidos por fungos e traças ou com as fichas rubricadas ilegíveis, rasgadas ou com numeração irregular, como é o caso do Livro de Registro de Títulos Definitivos de 1896, concedidos pelo governador Eduardo Ribeiro, que começa na folha 37, depois da 46 pula para a 27 e por aí vai. Quem pode confiar neles?
Na época, o INCRA microfilmou 49 livros em 30 mil fotogramas. Pude assim consultar os três tomos do ‘Índice Alfabético dos Títulos definitivos expedidos pelo Estado do Amazonas – Projeto Fundiário de Manaus’. Trata-se de fonte imprescindível, mas desfalcada, para estudar a estrutura fundiária da região, as diferentes formas de propriedade, a situação das terras devolutas e o processo pelo qual a terra em Manaus se tornou uma mercadoria cara.
Vão dizer que o Berinho é como a cachaça do Barbosa, toda conversa termina nele. Mas olha só! O Amazonas possui uma Secretaria de Cultura, cujo dono é o Robério Braga. Ele gastou os tubos, trazendo a Manaus 150 “celebridades”, pagando-lhes cachê alto. No entanto, não dá um centavo para a guarda e conservação da documentação, que contém a memória da cidade e do Estado.
Sinceramente, não sei quais são os interesses particulares do Zeca Nascimento nessa história. No momento, porém, esses interesses parecem coincidir com o interesse coletivo. Sua denúncia é séria. Enquanto o Estado não agir, a terra é devoluta. A COIAB pode muito bem entrar com uma ação reivindicando aquelas terras para os índios. Afinal, hoje, o título definitivo da terra, registrado oralmente pela Ye´pá e guardado pelos índios, é muito mais confiável do que o registro escrito sob custódia do Estado. O registro oral não pode ser falsificado como escrituras forjadas em noites de sábado.
P.S.- Quem são as empresas envolvidas? O texto do Zeca Nascimento diz que por decisão judicial ele está proibido de informar. Tudo bem! Como eu não estou proibido, basta ele cochichar pra Chachá, ela me conta e a gente senta a ripa.