CRÔNICAS

Bom dia, governador

Em: 11 de Fevereiro de 1992 Visualizações: 10784
Bom dia, governador

 (*) Este artigo foi publicado no jornal A CRÍTICA, de Manaus (AM), em 11 de fevereiro de 1992, dia em que o governador do Amazonas, Gilberto Mestrinho abriu solenemente, no Hotel Tropical, o encontro dos presidentes das repúblicas dos países amazônicos: Brasil, Perú, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname e Guiana. O então presidente Collor de Melo esteve presente. Havia um representante também da Guiana Francesa.

Hoje, o governador acordou cedo, preocupado com a reunião dos presidentes dos países amazônicos. Livrou-se do lençol feito de algodão, cuja planta - domesticada na Índia - já era cultivada pela tribo Omagua do alto Solimões antes da chegada do europeu. Levantou-se da cama, móvel originário do Oriente Próximo, mas modificado no Norte da Europa, antes de ser introduzido na América, onde veio competir com a rede de dormir produzida com ténica Karib.

Espreguiçou-se. Enfiou os pés numa sandália de borracha, produto descoberto pelos índios da Amazônia, divulgado na Europa pelo cientista francês La Condamine em 1740 e vulcanizado cem anos depois nos Estados Unidos e na Inglaterra por Goodyear e Hancock.

Entrou no banheiro, entulhado de aparelhos modernosos criados por europeus e norte-americanos. Tirou o pijama de seda, vestuário idealizado na Índia, com tecido descoberto na China. Abriu o chuveiro, de onde caiu água, graças a um sistema de aqueduto inventado pelos romanos e aperfeiçoado pelos russos em Petrogrado, que deu origem à água encanada. Tomou banho com sabonete, inventado - quem diria? - pelos antigos gauleses.

Enxugou-se com uma toalha, peça com a qual o imperador Samudragupta saiu enrolado de um mergulho no rio Ganges no ano 370 da nossa era. Usou escova, pasta de dente e fio dental fabricados por multinacionais. Fez a barba, usando processo similar a um rito masoquista provavelmente dos sumerianos.

Aí, o governador voltou ao seu quarto, abriu o guarda roupa - móvel inventado no sul da Europa - e encontrou seu terno de linho, fibra têxtil usada para envolver múmias no Oriente Próximo, onde foi domesticada. O governador nem desconfia, mas as peças do seu vestuário foram concebidas a partir das vestes de pele originalmente fabricadas pelos nômades das estepes asiáticas. Calçou os sapatos de couro, curtido por um processo bolado no Egito Antigo e cortado segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo.

Sentiu frio. Desligou o aparelho de ar condicionado, inventado (como o bidê) sabe-se-lá-por-quem, mas com certeza não foi por nenhum caboco amazonense. Enquanto pensava no discurso que iria fazer dentro de duas horas aos presidentes dos países amazônicos, o governador deu um nó na gravata, peça concebida a partir das tiras de pano usadas nos ombros pelos croatas do século XVII e refinada pelos italianos. Conferiu sua imagem no espelho, feito de vidro, uma invenção dos egípcios, introduzida na Amazônia pelos portugueses, o que maravilhou os antepassados indígenas de Sua Excelência. Pachequinho, o secretário particular, elogiou desmesuradamente a elegância do governador, um comportamento existente em todas as sociedades com Estado, onde provavelmente surgiram os primeiros puxa-sacos da história. 

O café da manhã já o estava esperando. Sobre a mesa, pratos, xícaras e pires feitos de cerâmica, que foi inventada na China e já era usada no século III a.C. por Che Huang Ti ; facas feitas de aço, liga obtida pela primeira vez no norte do Ceilão; garfos, objetos inventados na Itália medieval e colheres, coisas da Roma Antiga. O governador sentou-se numa cadeira, móvel concebido na Mesopotâmia, cujo desenho foi modificado em Roma.

O governador tem várias opções. Se tiver pretensões regionalistas, como o Sarney, comerá macaxeira, pupunha e pamonha; a primeira, domesticada pelos índios da Amazônia há cinco mil anos; a segunda, aperfeiçoada geneticamente pelos Yanomami; a terceira, feita de milho, domesticado pelos astezcas e incas e adaptado pelos grupos Tupi e Aruak. Mas se o governador imitar o modelo norte-americano, como Collor de Melo, então tomará suco de laranja, fruta originária do Mediterrâneo Oriental ou suco de melão, cultivado pela primeira vez na Pérsia. Pode também comer uma fatia de melancia, produto cujo berço é a África. Experimentará ele o bacon, surgido num ducado da Alemanha medieval e que faria depois o maior sucesso nos Estados Unidos, o paraíso da fastfooderia? 

De qualquer forma, o governador certamente tomará café, planta abissínia, introduzida no Pará via Caiena pelo sargento Palheta no século XVIII. Comerá pão, feito de trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor e talvez desfrutará ovos mexidos de galinha, ave domesticada na Indochina. Ele termina o seu breakfast, sem suspeitar que o seu cotidiano está impregnado da influência das mais variadas culturas, de todas as regiões e de todos os tempos.

Um pouco tenso com a reunião que o espera, o governador olha o relógio de pulso, que é uma engenhoca aperfeiçoada pelos suiços no século XVI, em base a um sistema iniciado séculos antes de Cristo com o relógio solar de Acaz, rei da Judéia. Constata que tem tempo de sobra. Pega o telefone, aparelho inventado por Graham Bell em 1876 nos Estados Unidos, disca um número e pede os jornais do dia, que serão comprados com dinheiro - invenção da Líbia antiga.

Enquanto os jornais não chegam, o governador confere o noticiário matutino da televisão, uma máquina infernal inventada por ingleses e americanos já no século atual, com base em descobertas de cientistas suecos e alemães do século passado. Tira um cigarro e começa a fumar, hábito desenvolvido pelos índios americanos com o tabaco, planta originária do Brasil. Os jornais, enfim, chegam. Ouvindo uma música suave de um compositor austríaco, Sua Excelência começa a ler os jornais locais impressos em caracteres criados pelos antigos semitas, em material descoberto na China - o papel, através de um processo inventado na Alemanha por Gutenberg.

Finalmente, antes de sair em um automóvel, invenção dos gringos que substituiu as carroças, o governador repassa pela última vez o discurso que irá pronunciar na reunião do Hotel Tropical. Ele repete a mesma ladainha de sempre: diz que os índios não são mais índios "autênticos", porque já estão todos "aculturados" e adquiriram tecnologias que não eram originalmente as suas; condena a demarcação das terras indígenas; denuncia o que ele chama de "internacionalização da Amazônia"; ataca os ecologistas que querem, da praia de Ipanema e do Exterior, decidir sobre os destinos da floresta; clama que só os verdadeiros amazonenses enraizados na cultura local podem decifrar a região. E, bom patriota, cheio de coerência, agradece a Deus - uma divindade hebraica, em português - uma língua indo-européia originária do latim e introduzida no Brasil pelo colonizador, o fato de ele, governador, ser cem por cento amazonense.

P.S. - Sua Excelência, infelizmente, não teve tempo de ler este artigo, plagiado descaradamente do antropólogo Ralph Linton, autor de The Tree of culture, publicado nos Estados Unidos, em 1956, com o objetivo de criticar o nacionalismo mesquinho e provinciano de alguns americanalhões. Se cultivasse a tal árvore da cultura, o governador poderia, talvez, descobrir, encantado, que a evolução de qualquer povo só se torna possível com a abertura ao diálogo fecundo entre culturas diversas, com a troca fraterna de conhecimentos e experiências, com o respeito à diferença - que enriquece, e com a convivência com o outro - que gera curiosidade e tolerância, impedindo a discriminação. Aí - quem sabe? - ele mudaria o seu discurso e passaria a ser um cidadão do mundo.

 

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2 Comentário(s)

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Daniel comentou:
21/03/2011
É impressionante como não existe mais nenhuma cultura isolada e como está tudo interligado, como cada cultura empresta e toma emprestado da outra.
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Shanastos comentou:
06/04/2010
Muito plausível a crítica proposta nesta crônica,nós estamos tão aculturados que nem sabemos ou até fingimos não saber a nossa origem-Criticamos os indíos, mas o que faz ser quem eles são, é a cultura interiorizada por diversas gerações que ao transpor aos nossos conhecimemtos nos revela grandes riquezas que só seremos capazes de reconhecer quando aceitarmo-os como cidadãos em nossa sociedade.
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