CRÔNICAS

Museus do Judiciário: Manaus e Freiburg

Em: 20 de Junho de 1995 Visualizações: 8066
Museus do Judiciário: Manaus e Freiburg
De Nuremberg, Alemanha (via fax) - O rio Negro não é o Reno, Manaus não é Berlim, a selva amazônica não é a floresta negra e eu não sou o Thomas Mann de igarapé. Eu sou eu e o boi não lambe. E se lamber? Se lamber, eu corto a língua.
Confesso o meu provincianismo. Olho a catedral de Friburgo e sua torre gótica de 120 metros, como mesmo assombro com que, há 40 anos, alguém, vindo de Eirunepé, olhava deslumbrado o edifício do IAPTEC.
Tomo um trem para Nuremberg. Minha cabeça de caboco suburucu não compreenderá, NUNCA, como é que os alemães conseguem uma precisão tão milimétrica no horário de saída e chegada dos trens. Essa mania de cumprir horários de uma forma tão rígida e intolerante é, certamente, uma doença.
Lá vou eu visitar o Palácio de Justiça de Nuremberg, onde se realizou o julgamento do século, condenando os criminosos nazistas da Segunda Guerra, com sentenças históricas que modificaram completamente as noções de Direito Internacional. De tudo isso, sobraram um museu e um arquivo, com documentos escritos e estenografados em quatro línguas, num total de 5 milhões de folhas de papel, 27 mil metros de fita magneto-fônica e quase 6 mil provas apresentadas pelo Ministério Público e pela defesa.
A TOGA RENDADA
Caminhando pelos corredores do Museu do Judiciário de Nuremberg, meu pensamento voa celeremente para minha noivinha no coração da Amazônia. Quem foi o poeta originalíssimo que comparou Manaus com uma "noivinha": Josué Filho, Lupércio ou algum membro da Academia Amazonense de Letras? Não importa. O que importa mesmo, leitor, é que eu só penso nela, que ganhará um museu igual ao de Nuremberg, segundo anunciou o presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJA), desembargador Roberto Aragão. O 'Museu do Judiciário' de Manaus será instalado no atual Palácio da Justiça, na avenida Eduardo Ribeiro, quando concluírem o esqueleto do prédio do bairro do Aleixo.
Quais são os objetos que podem ser guardados no Museu do Judiciário baré? Bom, tenho algumas ideias que não são de se jogar fora. Logo na entrada, podemos exibir três peças. A primeira é aquele tapete vermelho, colocado na entrada do TJA, de uso exclusivo das autoridades, obrigando a plebe ignara a entrar pelas portas do fundo. Na ficha museográfica, tem de estar escrito que este tapete foi ideia bolada pelo chefe do cerimonial do TJA - cargo criado por Resolução Interna e não por lei, como manda a Constituição. Nuremberg não tem chefe de cerimonial, nem tapete. Manaus 2 x Nuremberg 0.
A segunda peça é aquela "carranca" com a língua de fora, fixada no frontispício da escada. Ninguém sabe para quem ela está dando língua. Finalmente, a terceira peça é uma toga preta rendada do Balieiro, o juiz que se aposentou precocemente, com 36 anos de idade, um fenômeno que não existe em nenhuma lugar do mundo. Baby Balieiro começou a proferir suas sentenças ainda no útero materno. Nuremberg não tem carranca, nem Balieiro: Manaus 4 x Nuremberg 0.
A SALA DOS ACÓRDÃOS
Depois de ver as três peças no hall de entrada, o visitante iniciará o seu percurso pelo salão, conhecido como Sala dos Acórdãos. Como todo mundo sabe, acórdão é a sentença proferida pelos desembargadores nos tribunais. Na realidade, a origem do nome vem do seguinte fato: quando o relator do processo começa a lê-lo, recheando-o com ipso facto, ex-tunc, ad hoc, hic culum cotiae sibilare e data vênia prá lá, data vênia prá cá, os outros desembargadores, embalados por esse latinorum arretado, caem num sono profundo, até que ao terminar a leitura, o relator bate na mesa e todos, assustados, acordam ao mesmo tempo, gritando: 
- "Voto com o relator". 
Estamos colecionando algumas aberrações jurídicas para enriquecer esta sala, que serão apresentadas em uma das próximas crônicas.
Em seguida, o visitante percorrerá a Sala do Pó, onde estão vitrines com caixinhas cheias de cinza. São os restos de documentos queimados em um incêndio não muito esclarecido, ocorrido nas Varas Criminais do Aleixo, justamente onde tramitavam processos contra um senador do Amazonas, cujo nome, assim, Di Cara, não lembro agora, aqui na Alemanha.
A SALA DAS LIMINARES
Agora, leitor, estamos entrando na Sala das Liminares, onde um texto na parede explica que liminar é medida urgente concedida pelo juiz para evitar dano de difícil reparação em vista da demora do processo. São pilhas e pilhas de papéis, subdivididas em liminares cassadas e liminares concedidas.
As liminares cassadas foram quase todas concedidas por juízes íntegros, corajosos, comprometidos com a justiça social. Duraram poucos dias e umas até poucas horas, pois foram decepadas pelo TJA com incrível e surpreendente rapidez.
Olha aqui a liminar concedida em favor do contribuinte contra o aumento abusivo do IPTU! Foi cassada na hora. Olha essa outra em favor do usuário dos transportes coletivos contra o aumento extorsivo da passagem do ônibus! Coitada, morreu ao nascer. Liminares contra a fábrica de asfalto, contra a Construtora Exata, contra o Camelódromo - todas elas em favor do consumidor ou do povo sofrido, tiveram o mesmo destino.
Em compensação, o Museu vai mostrar muitas liminares concedidas que não foram anuladas, mas ao contrário, foram até aplaudidas pelo TJA. Geeeeente! Vejam só que peça liiiinda! É uma liminar protegendo o vereador César Bonfim, acusado de corrupção, para que a Câmara não cassasse o seu mandato. Olhem ali aquela pilha: são liminares concedidas em favor dos prefeitos do interior que cometeram irregularidades.
ABSOLVIÇÕES SUMÁRIAS
A nossa visita continua, leitor, pela Sala das Decisões Desrespeitadas. Esta aqui, neste quadro com moldura, remendada com durex, é um Mandado de Busca e Apreensão, expedido por um Juiz de Direito, mas foi rasgada por um Secretário de (in) Segurança, que cuspiu e pisou nela, antes de jogá-la na lata do lixo. Não aconteceu nada. Bulhufas! O secretário continuou secretariando. Esta outra, relacionada à favela "Meu Bem, Meu Mal", provocou gargalhadas do prefeito, que disse: Nem-te-ligo.
Para entrar na Sala das Absolvições Sumárias, só mesmo com a ajuda de um guia, que tenha sido aluno na Faculdade de Direito do professor José Luiz Ribeiro. O guia, cujo pai nordestino morreu de fome porque a borracha foi levada para o Himalaia, explica que a absolvição sumária ocorre quando um réu acusado de crime doloso contra a vida é absolvido imediatamente pelo juiz, sem precisar se submeter ao júri popular.
Aqui, nesta sala, está o processo de um advogado que assassinou outro advogado dentro do Forum, em plena luz do dia, na presença de 14 testemunhas (entre elas o corajoso Chiquinho Vasconcelos Dias). Com o depoimento de uma única testemunha, o réu foi absolvido sumariamente com a tese de legítima defesa putativa. Manaus 10 x Nuremberg 0.
Putatinga! O que é que é isso? - pergunta o ignorante leitor.
Ora, ora, meu amigo. Não tenho mais espaço para explicar. Vá perguntar ao doutor Celso Gióia, ele adora falar, por isso, desde a infância, tem o apelido de Celso Bocão. Ou então, procura o PAI, movimento de oposição dos magistrados do Amazonas, liderados pelo Paulo Caminha, Ari Moutinho e Iedo Simões. Quanto a mim, termino minha vista ao Museu do Judiciário em Nuremberg pensando que minha "noivinha" foi estuprada. Processo os estupradores? Adianta? Assim que visitar Manaus, vou procurar a Banda da Bica, porque quero encomendar uma música para a inauguração do Museu do Judiciário Baré.
Obs: (Enviado de Freiburg, Alemanha - 02 de junho de 1995)

Essa crônica, enviada da Alemanha, onde seu autor se encontrava, participando de um evento acadêmico, foi publicada em 20 de junho de 1995, em A CRITICA. Alguns leitores solicitaram cópias dela no nosso site, talvez motivados pelo fato de que agora, no início de abril de 2001, o Palácio da Justiça será desativado e nele será, finalmente, instalado o Museu do Judiciário.

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