CRÔNICAS

Roraima: a batalha das quatro aldeias

Em: 05 de Dezembro de 2004 Visualizações: 6710
Roraima: a batalha das quatro aldeias
Eram seis horas da manhã. Os moradores da comunidade Jauari foram despertados por tiros, gritos, roncos de máquinas, misturados com latidos, ganidos e cacarejos. Não sabiam direito o que estava acontecendo. Assustados, saíram de suas casas, as crianças chorando agarradas nas pernas dos adultos. Presenciaram, então, a invasão de sua aldeia.
Na linha de frente, vinham tratores, que derrubavam as casas, como se fossem tanques de guerra. Detrás deles, marchava a infantaria, formada por 40 homens bem armados, que incendiavam as casas derrubadas, tocando fogo em roupas, redes, comidas e roças, matando galinhas, porcos e cachorros. Feriram gravemente o índio macuxi Jocivaldo Constantino com dois tiros, um deles na cabeça. De lá, as tropas marcharam para atacar mais três comunidades indígenas: Brilho do Sol, Retiro São José e Homologação.
Nas quatro aldeias, os invasores incendiaram ou derrubaram um total de 37 casas. Não respeitaram sequer igreja, escola e posto de saúde, destruindo microscópio, remédios, móveis e outros equipamentos, como os aparelhos transmissores de rádio. Isolaram as aldeias, fechando as estradas de acesso a elas, impedindo o trânsito de pessoas, inclusive de agentes de saúde da FUNASA. Nessa operação de guerra, conseguiram vencer ‘a batalha das quatro aldeias’, sem qualquer baixa em suas fileiras. Nenhum ferido. Os índios não tinham nem mesmo um canivete como arma de defesa.
A cena covarde e brutal parece um relato de um passado longínquo, descrevendo massacres bárbaros do período colonial, quando os bandeirantes - verdadeiro esquadrão da morte - praticavam tiro ao alvo sobre os índios. No entanto, ocorreu debaixo dos nossos narizes, no dia 23 de novembro de 2004, dois dias depois da visita a Roraima do ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos. Merecia ocupar as manchetes dos jornais, com editoriais indignados exigindo a punição dos criminosos. Mas no dia seguinte, os jornais do Amazonas estavam preocupados com a cassação do deputado Cordeirinho, por corrupção, enquanto os de circulação nacional destacavam o almoço do Lula com a bancada do PMDB.
O que está acontecendo com a consciência da nação? Crimes hediondos como esse se banalizaram tanto, que ocupam um pequeno espaço nas páginas internas dos jornais e passam despercebidos da opinião pública. Não conseguem mais despertar a nossa indignação, a nossa ira santa, a nossa fúria e a nossa vergonha. Parece que anestesiaram o nosso sentimento de solidariedade, anulando-o, e nos impedindo de compartilhar o destino de povos que há 500 anos vêm teimando em viver, em preservar culturas e línguas que constituem um patrimônio não só do Brasil, mas da humanidade.
Os ‘heróis’ da ‘batalha das quatro aldeias’ são, na realidade, bandidos. Esses criminosos permanecem impunes, embora sejam todos conhecidos. Segundo o Conselho Indígena de Roraima (CIR), os ‘generais’ que comandaram as tropas são três grandes fazendeiros da região. Um deles, o rizicultor Paulo César Quartieiro, teria disparado o tiro que atingiu o índio macuxi, de acordo com denúncias do irmão da vítima, o tuxaua Junior Constantino. Na tropa de choque havia, inclusive, alguns índios ‘traíras’, mercenários, pagos pelos fazendeiros.
A doutora Joênia Batista de Carvalho, wapixana, formada pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), é a primeira advogada indígena do Brasil. Ela dá aulas de Legislação Indígena no curso de licenciatura intercultural da UFRR. Na qualidade de assessora jurídica do CIR, ela reclamou ao secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e à Policía Federal:
“O estado de Roraima tem uma história de impunidade e de violências contra comunidades indígenas. Eles já fizeram isso antes, não aconteceu nada. Queremos punição. Chega de impunidade! Não basta instaurar os inquéritos. Enquanto essas pessoas estiverem soltas, elas continuarão a comandar ações desse tipo. Queremos a prisão dos líderes desses atos. Se os culpados fossem indígenas, haveria uma caçada permanente”.
Ela tem razão. Se um índio desse uma flechada – merecida – na bunda de um fazendeiro, o Jornal Nacional e a TV Globo fariam um escândalo.
As aldeias atacadas, distantes 150 km de Boa Vista (RR), ficam dentro da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, cuja delimitação foi confirmada por portaria do Ministério da Justiça, em 1998, aguardando apenas um decreto do presidente da República para ter sua homologação efetivada. Como a homologação não foi efetuada nem por FHC, nem por Lula, os fazendeiros pediram a anulação da portaria.
A Justiça Federal de Roraima, totalmente comprometida, mandou reintegrar posse aos arrozeiros, mas uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal derrubou a liminar e assegurou a permanência das comunidades indígenas até o julgamento do mérito da ação judicial.
Lula não homologou a portaria, o mérito da ação não foi ainda julgado, então os fazendeiros se aproveitam dessa situação de indefinição para atacar. “Eles estão tentando derrubar na marra uma decisão do órgão máximo do Judiciário brasileiro”, declarou o advogado do Instituto Socioambiental (ISA), Raul Telles do Vale.
Em recente artigo, a antropóloga Elaine Moreira, da Universidade Federal de Roraima, resumiu com precisão o conflito:
“A homologação da Terra Indígena em área contínua coloca na verdade duas lógicas em oposição; uma defende interesses privados de rizicultores, a outra, interesses sociais e culturais das etnias que vivem na região. Qual é, afinal, a maior riqueza para o Estado de Roraima e para o Brasil: a diversidade cultural, linguística e dos saberes das populações indígenas ou as plantações de arroz? Por que a insistência desesperada em permanecer ali, se segundo a EMBRAPA, existem mais de 28.000 km² de terras livres e aptas para a agricultura no Estado de Roraima?”.
Lula anda muito chorão nos últimos tempos. Chorou porque o frei Beto pediu as contas. Soluçou quando seu assessor de imprensa, Ricardo Kotscho, se picou. No entanto, não derramou nenhuma lágrima pela violência cometida contra os índios na ‘batalha das quatro aldeias’. Se Lula não homologar a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol em áreas contínuas, ficará evidenciado que ele passou mesmo para o outro lado, que ele nos abandonou e está do lado de quem tem grana.

P.S. – Há exatamente 704 dias o presidente Lula vem empurrando com a barriga a homologação em terras contínuas da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol. Os índios e a sociedade brasileira continuam cobrando a reparação de uma injustiça secular..

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