CRÔNICAS

A toca de Jesco: o sabor do arquivo

Em: 08 de Abril de 2018 Visualizações: 22048
A toca de Jesco: o  sabor do arquivo

Quem poderia imaginar que seria possível encontrar tantas maravilhas naquele lugar no qual você redescobre o prazer de entrar? Lá, você admira danças cadenciadas por versos improvisados em várias línguas indígenas. Lá, ouve cantos de amizade, de guerra, de pesca, da lua cheia, do timbó, da mandioca, do buriti. Desfruta músicas tradicionais ao som de maracás, além de hinos evangélicos e até mesmo canção de Waldick Soriano na voz de um índio suruí. Escuta poesia, narrativas míticas, discursos de lideranças e conhecimentos de sábios indígenas sobre a flora, a fauna, o mundo.   

Lá, você pode curtir mais de 130 mil fotografias, assistir filmes, ler cartas, consultar 180 diários de campo e outros documentos manuscritos com o registro do contato de índios com a sociedade nacional na segunda metade do séc. XX. Enfim, lá você penetra no universo indígena, como Alice na toca do coelho transportada para um imaginário povoado de sonhos, mas também de pesadelos.

Vale de lágrimas

Essa “toca” fica em Goiânia e guarda o acervo do fotógrafo e documentarista Jesco von Puttkamer (1919-1994), considerado o precursor da antropologia visual no Brasil. Nascido em Niterói, filho de um barão alemão com uma brasileira, ele percorreu, ao longo de 40 anos,  centenas de aldeias indígenas e construiu umas das mais completas coleções audiovisuais etnográficas, documentando diferentes comunidades indígenas, não apenas aquilo que deslumbra e seduz, mas também as tentativas de destruí-las e a resistência organizada à barbárie.

O acervo doado à PUC/Goiás, sob a guarda e conservação do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA), abarca quase todos os aspectos de mais de 60 culturas indígenas: agricultura, artesanato, caça, pesca, arquitetura, saberes tradicionais, culinária, ritos, humor, língua, todo tipo de manifestação artística, sistemas de classificação de animais e plantas.

Mas nem tudo é maravilha. Nas aventuras narradas por Lewis Carroll, Alice passa por crise de identidade causada pela perda da habilidade de recitar poemas, sofre, chora tanto que cria um lago de lágrimas. Na toca de Jesco, esbarramos também no lado obscuro das relações do mundo de fora com os povos indígenas.

A documentação registra os resultados dos projetos desenvolvimentistas dos governos Vargas e JK e depois da ditadura militar, a violência contra os índios, a invasão de seus territórios por madeireiros, mineradoras, garimpeiros, colonos, pecuaristas, a corrupção e a omissão dos órgãos oficiais, os massacres genocidas, o envenenamento de crianças, as epidemias de gripe, os surtos de malária e sarampo, mas também o protagonismo dos índios com suas reivindicações, tudo aquilo que é silenciado pela história oficial do país. 

Guardo ainda a lembrança viva da visita breve, mas frutífera, aos arquivos de Jesco Puttkamer, em abril de 2011, na companhia do xamã guarani Wherá Tupã, ambos guiados pela antropóloga Marlene Moura, por ocasião da Semana dos Povos Indígenas, organizada pela PUC-Goiás. Suas coleções haviam sido premiadas pelo Ministério da Cultura -  IPHAN e pela UNESCO. Sai de lá com uma série de dúvidas e de perguntas, cujas respostas estão discutidas agora no livro Memória das Imagens – Olhares multiculturais sobre o Acervo Jesco Puttkamer, organizado por Marlene Moura e Sibeli Viana com lançamento programado para este mês de abril.  

Chave de arquivo

O livro nos dá chaves para abrir as portas do arquivo, ao avaliar as coleções através de olhares qualificados de 15 pesquisadores, alguns dos quais acompanharam Jesco em expedições à área indígena, como o amazonense Mário Arruda, nascido em Codajás (AM).  Eles contaram com a contribuição de interlocutores indígenas que qualificaram o material do acervo, identificaram personagens, reconheceram eventos, classificaram adornos, instrumentos e utensílios, confirmaram localizações, recuperaram memórias, num processo similar ao já adotado pelo Museu do Índio no Rio de Janeiro.

De nada adianta ter milhares de documentos importantes se não contamos com instrumentos de pesquisa para consultá-los. Os índios foram chamados para dentro dos arquivos, entre eles o cacique Raoni, e lá dialogaram com as imagens de Jesco e com as memórias atuais, tendo suas narrativas acopladas às suas imagens e sons e inseridas no Sistema de Gestão da Informação Media Portal. Ou os arquivos foram até eles em exposições fotográficas nas aldeias. Foi construída uma base de dados documentais digitalizados e informatizados sobre a história de quatro povos: Metyktire (Txukahamãe), Paiter Suruí, Cinta-Larga e Nambikwara.

Além da assessoria dos índios, os autores do livro que tive o prazer de ler usaram os diários de campo de Jesco para analisar as inter-relações entre os diferentes registros do material etnodocumental, classificado com base em princípios avançados da arquivologia. Eles conseguem compartilhar o prazer pela descoberta e identificação do documento, como a foto do Raoni jovenzinho, nos permitindo compreender melhor a historiadora francesa Arlette Farge, em O Sabor do Arquivo”:

"Quem tem o sabor do arquivo procura arrancar um sentido adicional dos fragmentos de frases encontradas. A emoção é um instrumento a mais para polir a pedra, a do passado, a do silêncio". Ela nos adverte, no entanto, sobre a dúvida e a impotência de não saber, às vezes, como usar o documento, além dos inúmeros riscos que podem interferir diretamente na qualidade da escrita da história.

Os olhares sobre o acervo de Jesco focaram a documentação de povos cuja importância é inversamente proporcional ao seu peso demográfico. Se a “toca de Jesco” contivesse registros relacionados exclusivamente à história indígena, seu valor já seria inestimável, porque “a memória de uma nação pequena não é menor do que a de uma nação grande” – como escreve Franz Kafka em seus Diários (1911). Contudo, ela é relevante para a história do Brasil, acendendo uma luzinha de esperança num país tão combalido e adoecido como o nosso.

Para Raoni, citado no livro, “foi muito bom ele [Jesco] ter doado este material para a PUC”, que dessa forma dá uma decisiva contribuição para “repensar, de forma crítica, tanto o passado quanto o futuro dos povos indígenas” como queria o historiador John Monteiro, de saudosa memória, que nos ajudou a redescobrir o sabor do arquivo. 

P.S.1 – MOURA, Marlene e VIANA, Sibeli: Memória das Imagens: Olhares multiculturais sobre o Acervo Jesco Puttkamer. Goiânia. Editora Espaço Acadêmico. 2018.

Os demais autores que aparecem nos quatro capítulos são:

Capítulo 1: ETNOGRAFIA DO POVO METYKTIRE

Vanessa R. Lea-  Os Metyktire Mebngokre

Bepró Metyktire: Os líderes indígenas tradicionais e a luta pela terra

Maria Eugênia Brandão A. Nunes: Jesco e os acervos indígenas: os Metyktire da aldeia Porori

Fernanda Elisa Costa P. Resende: Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer: a participação do povo Metyktire

 

Capítulo 2: ETNOGRAFIA DO POVO PAITER SURUÍ

João Carlos Gomes e Joaton Suruí: Povo Paiter Suruí: Resistência, lutas e conquistas

Mário Arruda: Jesco e os acervos indígenas: os Paiter Suruí

Roque de Barros Laraia: Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer:a participação do povo Paiter Surui

 

Capítulo 3: ETNOGRAFIA DO POVO CINTA-LARGA

João Dal Poz: Notas etnográficas sobre os Cintas-largas da

Amazônia Meridional

Mário Arruda: Jesco e os acervos indígenas: os Cinta-Larga

Celiomar Rodrigues, Marlene C. Ossami de Moura e Sibeli A. Viana:

Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer:a participação do povo Cinta-larga

 

Capítulo 4: ETNOGRAFIA DO POVO NAMBIKWARA

Maria Aurora da Silva e Dulce Madalena Rios Pedroso

Registros Etnográficos sobre o povo Nambikwara

Fernanda Elisa Costa P. Resende:  Jesco e os acervos indígenas: os Nambikwara

Marlene C. Ossami de Moura, Cristiane Loriza Dantas e Sibeli A. Viana:

Qualificação das imagens do acervo Jesco Puttkamer:a participação povo nambikwara

 

P.S. 2 – Duas dissertações defendidas nesta semana se relacionam com o tema, uma delas de autoria de um índio Tupinikim:

1) RODRIGO WALLACE CORDEIRO DOS SANTOS. Pioneiros e duendes: desenvolvimento e integração da Amazônia a partir dos filmes documentários de Jean Manzon - PPGCom – Universidade Federal do Pará. Banca: Ivânia Neves (orientadora), Otacílio Amaral Filho (UFPA) e José R. Bessa (Unirio-Uerj).

2) JOCELINO DA SILVEIRA QUIEZZA Políticas de Línguas em área Tupinikim: o caso da aldeia de Caieiras Velha Aracruz-ES – Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas. Museu Nacional UFRJ. Banca: Consuelo Alfaro (orientadora), Beatriz Protti Christino (UFRJ) e José R. Bessa (Unirio-Uerj).

 

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12 Comentário(s)

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Eduardo R. Ribeiro comentou:
12/05/2018
Como você demonstrou de maneira brilhante em seu artigo sobre Anchieta, a obra de um homem não deve ser vista fora de um contexto histórico-social mais amplo. No caso de "Santo" Anchieta, o linguista brilhante era, antes de tudo, um cruel agente do colonialismo. No caso de Jesco -- um fotógrafo e cinematógrafo de talento, a julgar pelo que dizem os experts aqui --, há fatos desconcertantes em sua carreira que raramente são mencionados em apreciações de sua obra, em geral encomiásticas. Por exemplo, sua incrível familiaridade com os corredores do poder durante uma ditadura sanguinária, ou seu comportamento um tanto predatório junto a povos indígenas. Eu tomaria, então, a liberdade de sugerir a leitura de um texto recente do linguista Denny Moore (Museu Goeldi), testemunha ocular do que ocorria em Rondônia na década de 1970: http://www.etnolinguistica.org/biblio:moore-2017-fieldwork
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Peter Schröder comentou:
24/04/2018
Uma excelente notícia. Tive o prazer de conhecer pessoalmente Jesco von Puttkamer na última fase de sua vida. Até passei alguns dias em sua casa e naquela época ele me convenceu a propor um projeto para publicar seus diários numa editora alema, com eventual financiamento pela DFG, mas esta ideia nao se realizou. Pouco tempo depois de sua morte circularam as mais diversas histórias sobre "urubus" interessados em levar seu acervo. Felizmente hoje em dia temos o prazer de poder conhecê-lo melhor. Parabéns pela publicaçao e pelo artigo.
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Isabela Frade comentou:
11/04/2018
Que beleza! Boas notícias para comemorarmos com mais alegria o já próximo Dia do Indio (já estou vendo a mobilização em muitos eventos, vai ser agora semana) Da próxima vez que for a Goiania vou separar uma tarde para estar lá, espero que seja de acesso livre. um grande abraço Isabela
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Silverio Macedo comentou:
10/04/2018
Muito bom. Precisava apenas informar como é que se pode adquirir o livro. Tenho interesse.
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Nefer Hass comentou:
10/04/2018
Meitire kumaren. Excelente. Deu vontade grande de ir la! Abracao, querido prof.
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Isabela Torres comentou:
10/04/2018
Vou adquirir o livro, com certeza. Acervo maravilhoso! Obrigada, professor, por nos atualizar sobre as pesquisas indígenas. Abraço.
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Fernanda Garcia Camargo comentou:
10/04/2018
O poder de vida das gravações: certa vez, Bessa, vivi uma voz feminina pelos auto falantes, no canto de uma canção tradicional do povo dela; a voz de outro tempo vinha criar-me o efeito ali desde o interior da floresta do Peru.
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Fernanda Elisa Costa comentou:
09/04/2018
Ola Bessa, um prazer enorme ler suas palavras, muito bom artigo, parabenizo sua sensibilidade. Parabenizo a Marlene pela luta por esse livro. E acrescento só uma observação: lá existe o conteúdo extraído de 200 rolos originais de filmes, muitos dos quais o próprio Jesco, que filmou, nunca teve a oportunidade de ver . Após a digitalização desse grande acervo, sua difusão ampla é o maior legado de Jesco, e a maior responsabilidade da PUC. Acesso amplo e irrestrito à pesquisa a aos indígenas, é o que melhor justifica sua preservação.
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Ana silva comentou:
08/04/2018
Excelente crônica, Bessa!! Parabéns às organizadoras do livro.
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Renato Athias comentou:
08/04/2018
Super Legal José Bessa, eu tive a oportunidade de assistir o filme "BUBULA - O CARA VERMELHA" do colega Luiz Eduardo Jorge, de 1999, ainda quando organizamos o Prêmio Pierre Verger da ABA. No filme se pode ver 27 minutos de depoimentos e imagens mostrando filosofia de trabalho do cineasta e fotografo Jesco Von Puttkamer. Vale a pena conferir. Parabéns a Marlene Ossami a Frnanda Elisa Resende e os outros de sua equipe pelo belo trabalho de documentação.
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Fernanda Elisa Costa comentou:
09/04/2018
Obrigada prof. Renato Athias, pela deferência. Vindo de vc é um grande presente. Muito obrigada.
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Aurora Lia comentou:
08/04/2018
Muito bom mesmo, acredito que no próximo mês saíra um livro sobre o Jesco e seu trabalho com os indígenas!
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