CRÔNICAS

Os jegues não voam: o medo de avião

Em: 12 de Agosto de 2007 Visualizações: 9497
Os jegues não voam: o medo de avião

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- Atenção, senhores passageiros, o nosso tempo de vôo até Manaus será de aproximadamente três horas e quarenta minutos. Voaremos a 10.000 metros de altitude e a uma velocidade de 800 km por hora. O comandante Severino agradece a preferência, desejando a todos aqueles que escolheram a Varig uma boa viagem.

Era 1984. O avião acabava de decolar do aeroporto de Congonhas. Estávamos voltando de um Congresso da ANDES – a Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior, realizado em Piracicaba (SP). Sentado a meu lado, na poltrona da janela, o médico Marcus Barros empalidece. Alarmado, quase em pânico, geme com os lábios trêmulos e a voz grávida de emoção:

- Parceiro, você viu?

- O quê? – reajo assustado, perguntando se ele havia notado algum fogo na asa do avião ou um urubu entrando turbina adentro. Marcus aponta a cabine e gagueja, transtornado:

- “É mais grave.! Ele! Ele! Você não ouviu?”. Diante de minha perplexidade, observa aflito:- O nome! O nome dele! Diz isso, ora torcendo as mãos, ora se benzendo. – Ele quem? – indago. Com voz esmorecida, murmura: Severino! Se fosse Séverin (severrán), comandante francês, vá lá! Mas é Se-ve-ri-no! Esse cara só pilota jegue, mas jegue não voa, parceiro!!!

Não. Marcus Barros, ex-diretor do Hospital Universitário, ex-reitor da UFAM, ex-diretor do INPA e ex-presidente do IBAMA não é preconceituoso. Aprecia e respeita o vigor da cultura popular nordestina, da qual faz parte, como neto de cearenses que é. Acontece que o medo é irracional. O encagaçamento transforma as pessoas. Para quem tem medo de avião, qualquer pretexto serve para entrar em pânico.Vamos-e-venhamos: você, leitor (a) voaria tranqüilo com um piloto Severino e um co-piloto Ribamar?

Nessa época, em que fiz várias viagens com meu amigo Marcus, ambos morríamos de medo. No meu caso, foi um medo adquirido, datado, que surgiu com a paternidade. Um desastre de avião acabaria com o sonho de educar minha filha, de embalá-la na rede, cantando para que dormisse como meu pai fez comigo, de vê-la ensaiar os primeiros passos e balbuciar as primeiras palavras.

Foi aí que o medo virou pavor. Para poder viajar, tinha de combatê-lo. Desenvolvi, então, algumas estratégias. Uma delas é reativar a memória da infância, lembrando durante o vôo um texto do livro do curso primário, intitulado ‘Pedrinho e seus amigos’. Numa das lições, Pedrinho sobrevoa uma cidade, olha lá de cima os carros e exclama: “Parecem formiguinhas”. Ora – eu raciocino dentro do avião - se Pedrinho, que naquela época era uma criança, viajava tão tranqüilo, por que eu, agora adulto, vou ter medo?     

Funciona. Sei que a estratégia é absolutamente idiota, mas funciona, talvez porque seja tão irracional quanto o medo. Parece que a serenidade de Pedrinho, no passado, me infunde, hoje, confiança e coragem. Com o cinto afivelado, agora olho pela janela de avião com os olhos do Pedrinho, de quem, afinal, fui amigo da primeira à quarta série. “Olha só, parecem formiguinhas”, eu repito para me acalmar.

Outra estratégia de sobrevivência nas alturas é reparar, durante o vôo, a presença de crianças. Na hora do embarque, se houver crianças, fico sereno, com um raciocínio cristão, bem simplório, que explora o sentimento de culpa:

- “Tudo bem, sou um pecador, transgredi quase todos os mandamentos da lei de Deus, mereço ser castigado, mas se o avião cair, esses inocentes também morrerão, o que será uma grande injustiça. Aquele que disse: ‘Vinde a mim as criancinhas’, não permitirá uma sacanagem dessas”. Ai, viajo em paz, pegando carona na pureza das crianças.

Mas isso só vale para vôos sem escalas. Numa viagem Manaus-Rio, embarquei com mais de 50 crianças. Maravilha! Acontece que quando o avião pousou em Brasília, todas as crianças desceram, acompanhando a então Secretária Estadual de Educação, Inês de Vasconcelos Dias, que havia organizado uma homenagem para puxar o saco do general Figueiredo, o ditador de turno. Aí embarcaram Delfim Neto, um senador e seis deputados corruptos. Nunca uma viagem foi tão infernal como esse trecho Brasília-Rio. Viajei sobressaltado, consciente de que se o avião caísse, o castigo seria merecido.

Tenho certeza de que nem São Francisco de Assis seria canonizado, se tivesse viajado de avião, porque o medo liquidaria sua bondade. Isso ficou claro, para mim, no final dos anos 1970, quando participei de reuniões mensais em capitais do nordeste, viajando em vôos pinga-pinga: Manaus, Santarém, Belém, Macapá, São Luiz, Teresina e por ai vai. Cada aeroporto era um foco de tensão. Invejava os que desembarcavam: “se o avião cair no próximo trecho, eles vão dizer: dessa, nós escapamos.” O estresse era tanto, que na minha vez de desembarcar, olhava com raiva os que ficavam. Um sentimento ruim se apoderava de mim: ”agora, vocês que se danem”.

O medo, que nos torna mais egoístas, não respeita nem a mãe da gente. Tive a oportunidade de viajar de Kiev, na Ucrânia, à Varsóvia, na Polônia, em 1982, sentado ao lado de dona Elisa. O avião era russo, um tupolev ou um antonov desses da vida. Quinze minutos antes de pousar, parecia uma folha de papel soprada pelo vento, um navio balançando de um lado para o outro. A sensação era de que o piloto havia desligado o motor. “Para economizar gasolina” – eu pensei, amaldiçoando os russos mãos-de-vaca..

-O que está acontecendo, meu filho? – perguntou dona Elisa, na maior tranqüilidade, quando me viu empalidecer.

- Não fale comigo, não fale comigo – respondi nervoso, mordendo os lábios e cobrindo os olhos com as duas mãos. Depois do pouso, os ânimos serenados, ela insistiu:

- O que foi?

Respondi:- Fiquei com medo de o avião cair.  Ela não entendeu:

- Meu filho, você que estudou tanto, que já viajou tanto, tem medo de avião? Eu estudei pouco, viajei pouco e nem tenho medo. 

- Acontece, mãe – eu contra-argumentei – que se o avião cair a senhora vai pro céu, ganha a vida eterna. Eu não. Eu vou virar pó.

Dona Elisa, então, jurou que não morreria antes de me ver convertido. Ela morreu. Perdi o medo, apesar dos tempos bicudos e dos jegues voadores das empresas de aviação, que só perseguem o lucro. Duas razões talvez tenham também contribuído para isso. A primeira: o discurso do meu amigo anarquista, Tarcisio Lage, que adora viajar de avião, sob o argumento de que voar tem algo de subversivo e de contestador, porque significa desobedecer a uma lei: a lei da gravidade. A idéia de transgredir a norma estabelecida é sempre fascinante e nos dá coragem.

A segunda razão: minha filha está criada. A ela, com quem aprendi o exercício da paternidade nas canções de ninar e nas histórias que tive que inventar para fazê-la dormir, dedico essa crônica, numa homenagem extensiva a todos os pais, nesse dia em que o comércio fatura em cima de nossos sentimentos e afetos. Incluo aqui os filhos enlutados que não podem celebrar seus pais e os pais que perderam seus filhos, vítimas de tantas congonhas que nos cobrem de vergonha.   

P.S. – Estão abertas as inscrições para a II Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, com homenagem ao padre Casimiro Beksta e ao projeto Vídeo nas Aldeias, através dos cineastas Vicent Carelli e Mari Corrêa, que farão lançamento em Manaus do dvd da coleção Cineastas Indígenas. Podem participar documentários realizados na região pan-amazônica. As informações e inscrições estão no site www.mostraetnografica.ufam.edu.br

 

 

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