CRÔNICAS

O Nheengatu que dá barato

Em: 25 de Maio de 2014 Visualizações: 42779
O Nheengatu que dá barato
Tinha cara de bebê chorão. Morava na Ilha do Governador, no Rio. Não lembro mais o nome dele. Agnaldo ou Agnando, uma coisa assim, mas era conhecido como Pindá. Como qualquer vendedor de drogas em porta de escola, percorria diariamente universidades para abastecer a clientela, cujos vícios e gostos conhecia muito bem. Na UERJ, se esgueirava pelos corredores, qual felino de mansa pisada. Ia de sala em sala, levando a mercadoria. Silencioso e discreto, só abordava os consumidores potenciais sem presença de testemunhas. Um belo dia, sumiu. Dizem que foi preso.
Conheci-o há mais de vinte anos. Quem nos apresentou, se não me engano, foi Gilberto, um professor de engenharia, que era chegado na coisa e da qual era também dependente:
- Esse é Pindá, meu fornecedor. Mercadoria garantida. Pode confiar.
Pindá é anzol em Nheengatu - eu disse, explicando que Nheengatu era uma língua de base tupi falada em todo o Rio Negro, tão viva que se tornaria depois, em 2002, língua cooficial no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Bastou isso para que o tráfico se fizesse carne e habitasse entre nós. Pindá, um profissional sério, jogou o anzol e eu mordi a isca. Ele percebeu que eu, recém transferido do Amazonas para o Rio, passava por crise aguda de abstinência causada por suspensão brusca do uso do objeto do desejo. No dia seguinte, voltou, abriu sua maletinha e deu o bote pingando três pontos de exclamação:
- Olha aqui! Pra você! Coisa fina!
Ficou observando minha reação. Vi a mercadoria armazenada dentro de uma caixa de papel confeccionada sob medida, coberta por camada de pó branco e cristalino. Dava uma overdose.
A dopamina
 - Quanto custa? - perguntei, tentando esconder a ansiedade.
Mas ele percebeu o aumento na frequência dos meus batimentos cardíacos. Era experiente no trato com dependentes. Baseado - baseado mesmo - na vontade do consumidor de experimentar sensações mais fortes, costumava oferecer doses cavalares do produto, cada vez maiores. Deu o preço. Custava os olhos da cara somados ao olho do pescoço em francês. Uma fortuna!
- Muito caro. Quase um mês de salário. Tenho que pedir financiamento no banco - ironizei.
- É coisa rara. Tá todo mundo querendo. A doutora Ruth Monserrat, lá do Fundão, já fez uma encomenda. Aquele alemão, o Wolf Dietrich - conhece? - paga em euro ou em dólar. Não é caro não.
Tentei desvalorizar a mercadoria para baixar o preço:
- Tem até traça... - eu disse, apontando o pó.
- Não é traça. A caixa é de papel alcalino com cola anti-traça - ele disse. Parecia adivinhar que naquele momento meus neurônios já liberavam noradrenalina e dopamina. Ele nos entendia. Durante anos, nos consolou, fornecendo o que cada um de nós precisava.
Soprei o pó, tirei a mercadoria da caixa e comecei a folhear com cuidado. Era o Vocabulário da Língua Geral Portuguez-Nheengatú e Nheengatú-Portuguez, 768 páginas, escrito por Ermano Stradelli e editado em 1929, depois de sua morte, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A edição foi feita com material vagabundo, em papel jornal, mas se trata de raridade bibliográfica, que contém um tesouro, dificilmente encontrado nos sebos.
Disfarcei a emoção desdenhando:
- É. Ainda bem que tenho todo ele fotocopiado.
Mentira. Ele sabia que não era possível fotocopiar sem esfarinhar o livro. Ele sabia que eu ia comprar, eu sabia que ele sabia que eu sabia. O que se seguiu foi jogo de dissimulação, fingimento, embromação, rasteiras, camuflagem. No final, aconteceu o previsível: apesar de muito choro, mordi a isca do Pindá, comprei pelo preço que ele pediu, afinal o dicionário era inacessível, pois nunca havia sido reeditado.
Destino do Pindá 
Agora foi. A Editora Ateliê, de Cotia (SP), acaba de reeditar, em 2014, o dicionário de Stradelli, com revisão de Geraldo Gerson de Souza, orelha escrita por José de Souza Martins (USP) e apresentação de Gordon Brotherston e Lúcia Sá (Universidade de Manchester) que chamam atenção para os usos que pode ter: 
- É possível utilizar o Vocabulário de Stradelli como um dicionário qualquer, procurando termos específicos, concordando ou discordando das definições do autor, estudando a morfologia e a fonética da língua. Isso não impede, todavia, que leitores interessados na Amazônia e sua história percorram as páginas desse impressionante trabalho na tentativa de ampliar seus conhecimentos sobre fauna, flora, medicina, pesca, caça, agricultura, astronomia, história, política, rituais e costumes, além de literatura e folclore indígena caboclo - tudo isso a partir do nheengatu.  
Relembrar a história do Pindá foi a forma que encontrei para anunciar aqui o lançamento de obra tão importante para a Amazônia e para o Brasil. Concluo com três notas: uma pequena crítica sem qualquer demérito para a obra, uma informação sobre o destino de Pindá e uma notícia sobre o nheengatu, que está sendo cada vez mais falado, escrito e até cantado.
A crítica: a bibliografia citada nesta reedição foi atualizada com outros trabalhos, mas não há qualquer menção a muitos autores que pesquisaram o tema, entre os quais Aryon Rodrigues, referência obrigatória quando se trata de línguas tupi, nem qualquer indicação sobre a única história que se tem até hoje do nheengatu - Rio Babel, a história da línguas da Amazônia (Eduerj 2004 1ª edição e 2011 2ª edição) de autoria de um cliente chorão e meio cabotino do Pindá, o fornecedor de livros do professor Gilberto e de toda a Uerj..
O destino de Pindá: foi preso não por vender obras raras por preços exorbitantes, com estratégia de comercialização dos vendedores de droga, que atraem a presa, seduzem e manipulam a dependência. Foi preso por não pagar pensão alimentícia. Sumiu do mapa, levando com ele as fichas dos professores da UERJ que mantinha mais atualizadas do que aquelas que figuram na Plataforma Lattes.
A notícia: no facebook tem um grupo Nheengatu on line, com quase cem membros, onde diariamente se escreve e se troca informações nesta língua. Foi lá que os usuários tomaram conhecimento do dicionário de Stradelli, lançado no momento em que a banda dos Titãs apresenta Nheengatu, seu novo álbum com capa reproduzindo pintura do século XVI - Torre de Babel - de Pieter Bruegel.
No entanto, é uma pena que na divulgação do novo CD se reproduza um erro histórico com a afirmação de que o nheengatu é uma "língua artificial criada pelos jesuítas no Brasil". Nem é artificial, nem foi criada pelos jesuítas, cuja contribuição consistiu em dotar com  ortografia uma língua que já existia - e que foi se modificando com o uso como qualquer língua - possibilitando sua divulgação escrita na catequese e sua expansão pelos rios da Amazônia. De qualquer forma, o esforço dos Titãs por recuperar as raízes históricas do Brasil confirma que o Nheengatu falado, escrito ou cantado até na França ainda pode dar o maior barato, como queria o saudoso Pindá.
 
P.S1.Stradelli, E. Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português. Cotia, SP. Ateliê Editorial. 2014. 536 pgs
P.S.2 - Nheengatu on line
https://www.facebook.com/groups/nheengatuufscarsorocaba/?fref=ts
P.S. 3 - Bessa Freire, José R. A história das línguas na Amazônia. Rio. Atlântica/Eduerj. 2004 (segunda edição Rio, Eduerj, 2011,

 

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30 Comentário(s)

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Eduardo Nakamura comentou:
28/11/2014
E o Pindá tem outro exemplar da 1a. edição? Deve ter desvalorizado um pouco com a nova edição!
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José Bahiana comentou:
05/06/2014
É bom saber da existência de livros sobre o nheengatu. Contato de José Bahiana
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Fernando Fernandes comentou:
28/05/2014
Muito bom Professor!...como sempre excelente nas palavras...Sobre a Crítica, concordo com sua opinião e desabafo...infelizmente...acontecem equívocos que tentam nos impedir de ficar na memória e ainda alguns atropelos que desvirtuam alguns do caminho já traçado por outros...No entanto, aqueles que se entrecruzam, mesmo que nas entrelinhas, jamais serão esquecidos...Paz e Sucessos!...(Fernando Fernandes - PPGHUFAM). Contato de Fernando Fernandes
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gerusa pontes de moura comentou:
26/05/2014
SENSACIONAL !!!! São estas passagens que fazem da nossa própria vida uma grande história.
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Daniele Lopes comentou:
26/05/2014
Não devemos deixar morrer as línguas indígenas que persistem em viver.
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Juarez Silva comentou:
26/05/2014
O início do "causo" foi meio "esquisito" mas sabia que como sempre daria em coisa boa :-), apenas uma curiosidade, imagino que o "Pindá" seja um "conterrâneo" que ganhou esse apelido muito provavelmente devido ao nome da cidade que eu morava antes de vir para Manaus..., PINDAMONHANGABA (no vale do rio Paraíba, interior de SP), que quer dizer "fábrica" de anzóis , ou simplesmente Pinda, para os íntimos :-).
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Paulo Freire comentou:
26/05/2014
Maravilhoso! Agora é ir em busca de um Pindá de concreto - um shopping - e me entorpecer de Stradelli. Obrigado, Mestre. Contato de Paulo Freire
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Hildo Couto comentou:
26/05/2014
Parabéns pela matéria, e pelo modo que a apresentou. Eu sou um curioso em nheengatu, tendo feito o doutorado sobre o guarani paraguaio e estudado tupi antigo com Carlos Drummond, na USP. Agora, sou ecolinguista, preocupado com a diversidade linguística, valorizando a "língua" e o o "território" dos povos. Uma de minhas frustrações é nunca ter podido ir a São Gabriel da Cachoeira a fim de fazer uma radiografia do multilinguismo local. Se quiser dar uma olhada em meu blog, com 20 textos, aqui está: www.meioambienteelinguagem.blogspot.com Um abraço, Hildo.
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Rita Segato comentou:
26/05/2014
Maravilhoso, José Bessa!!! Obrigada!!!!
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Lúcia Sá comentou:
26/05/2014
Saiu?!? Até que enfim! Foram uns quinze anos nas gavetas da EDUSP/Ateliê, tinha até perdido a esperança. Ainda não vi, mas juro que não tive nada a ver com a descrição do nheengatu como língua artificial, e se tivesse visto teria protestado. E você, seu Bessa, achei que tinha decidido se confessar... Contato de Lúcia Sá
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Roberto Abtibol comentou:
26/05/2014
Que criatividade extraordinária meu caro. É, sem dúvida, uma forma muito criativa de despertar nossa curiosidade pelas grandiosa sugestões de leitura. Um forte Abraço querido Bessa. Satisfação. Contato de Roberto Abtibol
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Ana Claudia comentou:
25/05/2014
Bessa, seu danado, usou o pindá pra nos fisgar e prender até o fim de sua ótima crônica. Obrigada pela notícia da publicação do dicionário, importante, com certeza, para qualquer um que se interesse por cultura indígena e brasileira. Pena que esta primeira edição fique reduzida pela falta de citação à referências fundamentais para o estudo e entendimento do nheengatu, como o são os Professores Arion Rodrigues e José Ribamar Bessa Freire.
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Carlos Fausto comentou:
25/05/2014
Querido Bessa, eu também tenho uma dessas preciosidades datadas de 1929, esfarinhando e esfarelando, mas ainda resiste ali, bem de frente de meus olhos, na minha estante. Agora, só falta dar uma companheira -irmã a ela... abraços
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Tiago Gonçalves comentou:
25/05/2014
Muito boa a crônica do professor José Bessa, me faz lembrar um poema que ouvi na 2ª edição do Ocupa Lapa. "Todo poeta é um traficante de armas" (Chacal)
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Eduardo Ribeiro comentou:
25/05/2014
Que legal que tenham republicado o dicionário do Stradelli, Bessa! Vale lembrar também, aos interessados, que a edição original está disponível online: http://www.etnolinguistica.org/biblio:stradelli-1929-vocabularios
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ABEL SANTOS comentou:
25/05/2014
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Hébel Costa comentou:
25/05/2014
Bessa, você foi um dos professores que mais me impressionaram, no tempo que gerenciei a Livraria da EdUerj. Pelos modos, atitudes e pelo jeito de falar "como gente", além de saber escrever com a clareza dos realmente eruditos. Morei uns tempos no pantanal do Mato Grosso do Sul, mas precisamente em Corumbá. Ali , vendo a opressão e exclusão que sofrem nossos indígenas passei a simpatizar com a causa que você defende. Fico feliz com o lançamento do dicionário. Ele com certeza vai ajudar a compreensão daqueles que nos antecederam. E ainda vivem. Contato de Hébel Costa
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Jerfferson comentou:
25/05/2014
Ótimo texto! Kuekatu reté, mbuesarusu! :)
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Maria Sá Xavier comentou:
25/05/2014
Linda crônica... interessante, instigante, informa... maravilha!
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Maria Sá Xavier comentou:
25/05/2014
Linda crônica... interessante, instigante, informa... maravilha!
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Nilda comentou:
25/05/2014
MARAVILHA! Mas confesso que me assustei quando comecei a ler. Pensei: endoidou...até dedurando gente! Mas era só um bom escritor chamando o leitor para dentro do texto. Grande abraço
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Maria Xavier comentou:
25/05/2014
Bessa, que delícia de crônica... vou adquirir o dicionário sim!! Muito me interessa. Até pq trabalho com pop. misturada... e daí para compreender algumas coisas... só este dicionário. Veja ai se encontra Piem... se fala piem... com ~ no 'e'. tem alguma coisa ai..?? queria saber se é indígena ou africana.
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Giane comentou:
25/05/2014
Só tu, Bessa, já morri de rir!!!! Mas, minha turma de Línguas Minorizadas agradece, pois está bebendo muito da sua fonte, que conjugamos com outros autores e vídeos!!! Obrigadaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
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Renato Athias comentou:
25/05/2014
Bessa, muito legal o seu texto. Fiquei super alegre com a reedição do "Vocabulário" de Stradelli. Parabéns pelo seu texto. Muito boa também a referencia do filme Hans Staden também falado em nheengatu.
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Ana comentou:
24/05/2014
Normalmente, os bons escritores nos instigam a ler o texto até o final, mas você, com esse, conseguiu me levar ao final e a releitura, para perceber melhor como me causou o sentimento de susto inicial, claro. Parabéns! Tomara que este livro ainda passe por minhas mãos.
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Ana Stanislaw comentou:
24/05/2014
kkkkk Levei um susto com a história do fornecedor!! Aliás, criativo e divertido. Adorei a crônica e é muito bom saber que podemos ter um exemplar do dicionário do Stradelli. Obrigada Bessa, ficou 'bom à Bessa'!
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ana carla bruno comentou:
24/05/2014
Instigante sua forma de falar do Nheengatu!!! Sua escrita e' melodia para alma...Titas escorregaram, mas legal a tentativa. E a Re-edicao de Stradelli escorregou nas referencias, mas tambem e' dopamina e vicia....Fui fisgada pelo seu TEXTO- Sr. Pinda'. Parabens!!!
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Silvio Tukano comentou:
24/05/2014
Professor não sou um falante de Nhengatu mas meus amigos que falam a lingua usam o termo Pindá pata o homem impotente.
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Jose Ribamar Mitoso comentou:
24/05/2014
Bessa, você é o único ser humano que, olhando na face do mal, nunca chorou para limpar os olhos! Parabéns!
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Vânia Novoa Tadros comentou:
24/05/2014
Artigo muito bem estruturada com estratégia tipo Pindá para fisgar o leitor e segurá-lo atém ao fim. Alegria imensa em saber que o Dicionário do Stradelli foi reeditado. Obrigada Mestre!
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